Em uma sexta-feira 13 de um ano bissexto, uma maldição caiu sobre o PT: Waldomiro Diniz, flagrado extorquindo propinas de um bicheiro quando presidia a Loterj, em 2002. O ex-braço direito do ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, nas relações Planalto-Congresso, afundou o governo Lula em uma tormenta política sem precedentes para o bloco petista, que sempre desfilou ostentando a bandeira da ética. O enredo da semana pré-carnavalesca – o Waldogate – terminou com o próprio acusado desaparecido de Brasília e seu apartamento funcional devassado pela Polícia Federal, em busca de agendas, documentos, disquetes comprometedores e outros adereços. Na segunda-feira 16, Dirceu tentou abrir alas declarando timidamente, na reabertura do Congresso, que as ações de Waldomiro não aconteceram sob o governo Lula. Abatido, dois dias depois o ministro pediu demissão ao presidente, que rejeitou a saída do capitão do time. No Congresso, a bateria era ensurdecedora. A oposição pediu uma CPI para apurar o caso, imitando os passos do antigo PT. Desastrado, o partido perdeu o ritmo ao propor uma CPI ampla, investigando casos de corrupção no governo FHC. O Planalto agora aposta nos tambores de Momo para abafar a barulheira.

Na mais séria crise ética do governo, a inépcia do partido oficial atrapalhou a coreografia que vinha sendo ensaiada com governadores e aliados para abafar a CPI. Os aliados, com os votos decisivos para abortar ou viabilizar uma CPI (PL, PTB, PP e PMDB), já fazem suas
listas para ocupar as principais alas do governo. O PL começa a exigir suas diretorias de estatais. “O Valdemar (Costa Neto, presidente do PL) tem a lista. O PL é comissário de polícia do governo. Só é chamado quando tem briga”, acusa o vice-líder do partido, João Caldas (AL), depois da pressão para os liberais não assinarem a CPI. O PMDB, com 22 senadores, quer os camarotes vips dos dois ministérios que ocupa (Comunicações e Previdência) e nomear os presidentes da Eletrobrás e Eletronorte. “O PMDB vai pular na jugular do governo”, prevê o deputado Luiz Antônio Fleury (PTB-SP).

Dúvidas – O senador Hélio Costa (PMDB-MG), preterido no Ministério Lula e irritado pela aproximação do governador tucano Aécio Neves com a ala petista, rasgou a fantasia e verbalizou o que todos pensam e poucos confessam: “Vamos nos valorizar, dizer que não houve decisão. Vamos aumentar a agonia deles!” Os demais deram as costas para a tese do mineiro. “Levamos tanto tempo para entrar no governo e agora vamos criar problema?”, indagou o senador Ney Suassuna (PB). Gilberto Mestrinho (AM) apoiou: “Não tem explicação para dar. Votamos contra a CPI e pronto.” O líder Renan Calheiros (AL) propôs uma nota oficial. Mas Ramez Tebet (MS) rebateu: “Isso é ridículo. O Zeca do PT (governador do MS) está dizendo que a missão dele é dizimar o PMDB. Que aliança é essa?” Calheiros informou que só dois senadores assinariam a CPI e garantiu a Dirceu que suspenderia os pleitos do partido. “O País não entenderia se o Diário Oficial começasse a publicar nomeações”, justificou. Mas o presidente do PTB, Roberto Jefferson, discordou: “O Diário Oficial da União será a grande notícia de Carnaval.”

A harmonia desandou de vez quando, no meio da concentração, chegou a informação de que os líderes governistas no Senado, Aloizio Mercadante (SP) e Ideli Salvatti (SC) propuseram ampliar a CPI, investigando todas as denúncias de corrupção desde 1994, sintoma de quem quer ver a CPI resultar em pizza. “Eles querem botar fogo no país”, protestou Calheiros. Até aliados do governo dentro do bloco da oposição que até então entoavam o enredo anti-CPI mudaram de tom, como o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), que se irritou ao ouvir o desafinado discurso do deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP). O petista propôs incluir na CPI o filho do governador tucano cearense, Lúcio Alcântara, e um ex-secretário do próprio Jereissati. O tucano rodou a baiana: “Isso só atiça a CPI. Em vez de responder às denúncias, reagem com ameaças.” O senador Pedro Simon (PMDB-RS) ecoou: “Isso é chantagem”.

Para piorar a performance da
escola de samba petista, sua
porta-bandeira, Ideli Salvatti, caiu feio na avenida ao lembrar que o caso Lunus – empresa onde foi encontrado R$ 1,4 milhão na campanha presidencial de Roseana Sarney (PFL) – também seria investigado. A senadora tropeçou dessa vez no maior aliado do governo, o presidente do Senado, José Sarney (PFL-AP). “Eles estão pensando que eu sou moleque? Não sou moleque”, protestou Sarney, em uma discussão com Mercadante, batendo a porta da liderança do PMDB em que ele e Calheiros tentavam afinar os instrumentos no meio da dissonância do bloco vermelho. “Nunca vi tantos erros em um só dia”, lamentou Dirceu, que durante a semana não conseguiu exercer a sua função de gerenciar a máquina governamental.

O enredo que poderia ter o título de “Nero incendeia Roma” ficou tão evidente que Mercadante, mais humilde, voltou aos microfones do Senado para baixar a poeira, enquanto o presidente da Câmara, João Paulo
Cunha (PT-SP), entoava o refrão da paz. “Não quero revanche. Ajudar o Brasil não é apagar o fogo com gasolina”, disse. As labaredas aumentaram ainda mais com a “colaboração” do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Maurício Corrêa. Irritado com a defesa do Executivo de criar o controle externo do Poder Judiciário, ele declarou na tarde de quarta-feira 18 que o ministro-chefe da Casa Civil deveria se afastar
do cargo, dando como exemplo o ex-ministro Henrique Hargreaves (governo Itamar Franco), que ficou 100 dias fora do posto devido a denúncias de irregularidades. A repercussão estrondosa, que abalou
até o mercado financeiro, e os elogios do ex-presidente Itamar Franco a José Dirceu, vindos de Roma, fizeram com que o presidente do STF jogasse água nas suas declarações incandescentes. Horas depois, ele também elogiou Dirceu e culpou a imprensa por ter, segundo ele, interpretado mal suas palavras.

O recuo do PT ajudou a diminuir a intensidade do incêndio, mas deixou a impressão de que o partido repete desfiles de governos anteriores. “Uma CPI neste ano eleitoral tem custo para o governo e para o PT, um prejuízo maior do que dar explicações”, confessou Chinaglia na quarta-feira, depois que sua bancada rechaçou a CPI, que até aquele dia já tinha o apoio de 25 parlamentares (é necessário o mínimo de 27 assinaturas). A solução foi esvaziar a passarela. O Congresso parou na terça-feira 17, guardando-se para quando o Carnaval passar, para voltar a suas atividades 13 dias depois (2 de março). Mas nada garante que o enredo não venha à tona na Quarta-Feira de Cinzas. “O que me preocupa é a paralisia do governo. Vamos ficar em knock-down (nocaute técnico) com este cruzado até depois do Carnaval”, resigna-se Roberto Jefferson. Numa coisa todos concordam: cevado em 24 anos de ataque na política, o PT não sabe ainda jogar na defesa e vive as dificuldades de aprender a governar. Publicada a denúncia, escalou dois ministros (Aldo Rebelo, da Articulação Política, e Márcio Thomaz Bastos, da Justiça) para anunciar a demissão de Waldomiro, trazendo a crise para dentro do Planalto.

Recuo tático – No dia seguinte à declaração de Dirceu, de que Waldomiro não cometeu erros no governo Lula, Bastos confirmou que a PF vai investigar todos os passos que Waldomiro deu na sala ao lado do gabinete do ministro da Casa Civil. Os pecados de Waldomiro pelo menos produziram um efeito inesperado: em meio a uma crise que só aumenta o descrédito da opinião pública com relação à política, líderes de cinco partidos, três governistas e dois oposicionistas, selaram a união em torno da aprovação da reforma política, que tem como coluna vertebral uma proposta que teoricamente acaba com a praga dos escândalos de corrupção que arranham os processos eleitorais: o financiamento público e exclusivo de campanhas. Em um debate sobre o assunto, que reuniu 400 pessoas no 15º andar da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), na avenida Paulista, os presidentes do PT, José Genoino (SP), do PFL, Jorge Bornhausen (SC), do PMDB, Michel Temer (SP), do PPS, Roberto Freire (PPS), e o vice-presidente do PSDB, Aloysio Nunes Ferreira (SP), juraram apoiar o projeto de lei aprovado em dezembro de 2003 na comissão de reforma política, depois de nove meses de debate, e que estava hibernado na Comissão de Constituição e Justiça. “Vale R$ 812 milhões para vacinarmos o sistema eleitoral contra a contaminação dos escândalos do tipo PC Farias ou Waldomiro”, afirmou o relator do projeto, deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO), referindo-se à verba que sairá dos cofres públicos para bancar as campanhas eleitorais, caso o projeto seja aprovado. Pelo apodrecido sistema atual, segundo Caiado, a maior parte do dinheiro que chove nas campanhas é de origem ilícita: brota de desvios do orçamento, do narcotráfico, do tráfico de armas, do roubo de cargas e do jogo do bicho. “O Brasil é o segundo país do mundo, depois da Colômbia, que utiliza verba do narcotráfico para financiar campanhas”, lamentou o relator.

Com a promessa de José Genoino de que o PT vai apoiar o projeto, ele deverá ser apreciado logo no início dos trabalhos legislativos, em março, e, se aprovado, será aplicado já nas eleições de 2006. “A crise é uma boa parturiente”, diagnosticou o médico Caiado. No meio do debate sobre reforma política travado no templo do capital financeiro, Genoino reconheceu que “partido nenhum é composto só por freiras e padres” e afirmou que o financiamento público de campanhas poderá evitar os escândalos: “Hoje é o caso Waldomiro, ontem foi o caso Ricardo Sérgio (ex-tesoureiro de campanhas tucanas). É um jogo de vale-tudo em que qualquer partido está ameaçado.” O País sabe agora que o governo do PT era composto também por Waldomiro Diniz e que, se surgirem novas denúncias, ninguém segura a CPI. Por enquanto, uma CPI mais ampla, sobre bingos, já tem as assinaturas suficientes para ser instalada.