30/10/2002 - 10:00
Naquele tempo em que Lula ainda era um líder metalúrgico do ABC e o PT apenas engatinhava, havia no universo da esquerda ortodoxa brasileira uma gama de adjetivos que causavam urticária nos militantes. Dois deles, especialmente, soavam quase como palavrões: “revisionista” e “social-democrata”. O primeiro designava qualquer herege que ousava criticar os mandamentos do credo marxista, a saber: o caráter inevitável da crise do capitalismo, a polarização entre a maioria proletária e a minoria burguesa e a consequente revolução socialista, que aboliria a propriedade privada dos meios de produção, trazendo a redenção da humanidade trabalhadora na face da Terra. O segundo se referia aos seguidores do revisionismo, os tradicionais partidos de centro-esquerda europeus, considerados “traidores da classe operária”, justamente por se contentarem apenas em reformar o capitalismo, deixando o ideal da revolução socialista para um futuro improvável.
A polêmica que agitou o PT em seus primórdios teve origem na Europa há mais de um século. Em 1896, Eduard Bernstein (1850-1932) chocou o Partido Social Democrata da Alemanha (SPD), a mais tradicional e poderosa organização da esquerda européia, ao afirmar que, ao contrário das previsões catastróficas de Karl Marx, o capitalismo não estava condenado à bancarrota, nem a classe operária era destinada a forjar uma nova sociedade. O capitalismo, dizia Bernstein, desenvolvera mecanismos de auto-regulação não previstos pelo autor de O capital. Por isso, os socialistas deveriam abandonar a idéia de revolução e passar a lutar, dentro dos parlamentos, para democratizar a sociedade burguesa, tornando-a mais igualitária. Os cardeais do SPD lançaram as teses de Bernstein ao purgatório e o partido manteve a ortodoxia. Afinal, a Primeira Guerra Mundial e a continuidade das crises do capitalismo pareciam desmentir as idéias revisionistas. Mas, à medida que o SPD crescia eleitoralmente, mais pragmático ficava, aumentando a distância entre a intenção revolucionária e o gesto reformista.
A Revolução Bolchevique de 1917 consolidou a ruptura da esquerda mundial entre revolucionários, que insistiam na derrubada do capitalismo pela violência, e social-democratas, que acreditavam que reformas democráticas poderiam superar gradativamente o regime burguês de propriedade privada. Depois da Segunda Guerra Mundial, o SPD – já então um partido extremamente moderado – continuou a crescer eleitoralmente, mas o poder sempre lhe escapava às mãos. Em 1959, no Congresso de Bad Godsberg, o SPD finalmente adequou a teoria à prática: deu adeus ao marxismo, abandonou a idéia de ruptura com o capitalismo e de partido dos trabalhadores transformou-se em “partido de todo o povo”. Era o reconhecimento tardio das teses de Bernstein. Dez anos depois, Willy Brandt se tornava o primeiro chanceler (primeiro-ministro) social-democrata da Alemanha Ocidental.
Enquanto era oposição, o PT podia se dar ao luxo de ficar no meio caminho entre a reforma e a revolução. Para conquistar o poder, ele teve que atravessar o Rubicão. Mandou o socialismo às calendas gregas – ou seja, o partido fez o seu Bad Godsberg. Aos setores radicais, dentro e fora do partido, restam três alternativas: o aggiornamento com a orientação moderada da direção, o isolamento político ou a ruptura com o governo de Lula. Situação, aliás, semelhante às já vividas por partidos europeus de centro-esquerda que passaram pelo teste do poder, como o PS francês, o PSOE espanhol e o Labour Party britânico.