Marilena Lazzarini é a maior autoridade brasileira em defesa do consumidor. É reconhecida internacionalmente. Tanto que foi eleita presidente da Consumers International (CI) para os próximos três anos. Trata-se da principal federação de entidades do setor no mundo, fundada em Londres, em 1960, e com representantes em 130 países. Há 16 anos, Marilena ajudou a criar o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), no qual manterá um cargo de atribuições institucionais enquanto estiver à
frente da CI.

Casada, mãe de três filhos, ela troca a vaidade de ter atingido um posto tão alto numa instituição internacional pelo sonho de ajudar o consumidor a não fazer papel de bobo. É difícil, demora, mas ela é persistente. Aos consumidores que se vêem prejudicados em alguma situação, ela não hesita: tem que ter persistência, não desistir e, quando necessário, ser chato e briguento. “Não é fácil”, diz nesta entrevista a ISTOÉ. “Mas sempre vale a pena.”

ISTOÉ – O consumidor brasileiro está mais exigente?
Marilena Lazzarini –
Ele vem mudando. Com o controle da inflação,
as pessoas passaram a ter um pouco mais de condições de observar outras questões, como a relação preço-qualidade, por exemplo. Elas compram com mais informação e isso, de certa maneira, veio com o Código de Defesa do Consumidor. Mudou, mas ainda falta muito. A questão é formar uma consciência crítica. Não adianta você apenas
olhar os produtos que está comprando. Deve se perguntar: será que
eu devo comprar esse produto? É preciso se habituar a relacionar a questão do consumo com a questão ambiental. O padrão de consumo para quem pode gastar é inviável se for mantido. Nós precisaremos ter alguns planetas Terra para dar conta da demanda de recursos naturais. Há famílias em que todos têm carro, o consumo de energia é descontrolado. É um modelo de desperdício.

ISTOÉ – É um padrão baseado no comportamento americano?
Marilena –
É, mas isso também acontece na Europa, que sempre teve
um padrão mais controlado porque passou por guerras. Mas isso vai
se perdendo com as novas gerações. O pior é que esse padrão se reproduz nos países mais pobres. A classe média vive no padrão americano. Mesmo as pessoas que têm renda menor às vezes deixam
de ter uma alimentação saudável, mais adequada, para comprar o
tênis da moda. Há nisso uma distorção muito forte que não é tratada
de forma adequada com políticas públicas. Não se pensa em criar
uma consciência crítica na criança, no jovem.

ISTOÉ – O caso dos transgênicos, que enfrentaram protestos em boa parte do mundo, mostra como o consumidor brasileiro é conformado com os problemas que enfrenta no seu cotidiano?
Marilena –
A questão dos transgênicos deveria ser mais debatida e conhecida pela população. Há sim um grau de conhecimento, mas muito pequeno. Esse assunto acabou sendo tratado por quase toda a mídia como algo que se relaciona apenas com a área científica e ficou muito ideologizado. O que não deveria ter acontecido, mas aconteceu em razão de todo o esforço de marketing que é feito pelas grandes empresas interessadas. É uma situação complicada para o cidadão comum, para ele se inteirar do que está por trás disso.

ISTOÉ – Quem se contrapõe aos transgênicos está sendo atacado como alguém que é contra o avanço da ciência…
Marilena –
É verdade, isso acontece com as organizações da sociedade que estão se opondo a essa liberação apressada. O que vejo é que estamos diante de um novo paradigma científico e que o homem está usando ferramentas que nunca foram usadas, o que permite a ele transpor determinadas barreiras que a natureza não transpôs. O que nós defendemos é que haja uma avaliação mais rigorosa, é um conhecimento que tem de ser desenvolvido.

ISTOÉ – Os consumidores europeus são mais conscientes?
Marilena –
Em geral, na Europa o consumidor é mais consciente. Dentro da Europa, os consumidores dos países nórdicos são os mais esclarecidos. Eles se preocupam com a questão do consumo responsável, do consumo sustentável. Eles olham para os produtos que não causam impacto no meio ambiente. Eles vão ao supermercado com a sacola que não é descartável, é um novo tipo de comportamento.

ISTOÉ – A sra. não acha que num país com tanta miséria como
o Brasil as pessoas estão mais preocupadas em comer,
seja o que for?
Marilena –
É lógico que as pessoas que não têm acesso à comida só pensam em conseguir alguma coisa para comer. Mas, no momento em
que essas pessoas passarem a ter uma renda, elas terão como
referência esse modelo que tem uma distorção. Essas pessoas têm acesso à televisão e o apelo desse modo de consumo entra nas
favelas, dentro de casa. Muitas vezes, tendo uma pequena renda,
as pessoas vão deixar de comprar um alimento que é importante para
sua saúde para comprar besteira.

ISTOÉ – As empresas evoluíram na questão do respeito ao consumidor?
Marilena –
Eu acho que sim. Nas empresas, os avanços em geral
são reações a regras que são impostas. É muito difícil hoje encontrar
um rótulo de produto que esteja em desacordo com o Código do Consumidor. As empresas se adaptaram, criaram serviços de
atendimento ao cliente e ao mesmo tempo foram vendo que têm um controle, mas que esse controle acontece principalmente nos casos individuais. Então elas procuram resolver o problema daquele consumidor chato, que reclama. Poucas foram as empresas que introduziram
esse mecanismo de ouvir o consumidor.

ISTOÉ – O consumidor tem de ser chato para ser respeitado?
Marilena –
Ele não pode deixar de exercer o seu direito, apesar de ser cansativo. Todos os dias as pessoas estão comprando e em muitos lugares. É um exercício desgastante, mas acho que, dentro do possível, o consumidor tem que exigir seus direitos.

ISTOÉ – Além de chato, o brasileiro não deveria ser mais briguento como consumidor?
Marilena –
Brigando individualmente, em alguns casos, as pessoas conseguem resolver seus problemas. Mas é importante também lutarmos juntos, participarmos mais. É um processo, a gente não vai mudar da noite para o dia.

ISTOÉ – Algum setor é especialmente complicado para o consumidor?
Marilena –
Em geral, planos de saúde, bancos e empresas de telefonia. Os planos de saúde não querem idosos porque teoricamente são as pessoas que mais usam os serviços médicos. Eles querem atender as pessoas que têm saúde.

ISTOÉ – As pessoas devem reclamar diretamente com a empresa?
Marilena –
Essa prática de reclamar com a empresa é contínua, mas há muitos problemas que dificilmente a pessoa resolve sozinha, como discutir comportamentos lesivos. Aí é importante ter por trás uma associação.

ISTOÉ – O caso da Parmalat, além de ser de polícia, não afeta de alguma maneira o consumidor?
Marilena –
Eu não parei para analisar, mas é um exercício que eu quero fazer. Hoje, o que está acontecendo também é a questão da responsabilidade social das empresas, que vem sendo adotada por muitas companhias. Essa responsabilidade social não significa apenas que ela vai atender aos dispositivos legais e às questões ambientais, entre outros. Vai além disso. Uma empresa vai se diferenciar por ter atitudes e comportamentos que mostram um compromisso com a sociedade da qual ela faz parte. Exatamente o que não aconteceu na Parmalat, que causa um dano ao consumidor através da corrupção na gestão. Quando um executivo aloca recursos com esse fim, ele está desviando dos produtos, da empresa em si, desrespeitando seus funcionários, fornecedores. É uma empresa que não tem responsabilidade social.

ISTOÉ – A responsabilidade social da empresa influi nas decisões do consumidor?
Marilena –
Nos países desenvolvidos, isso já está acontecendo. O consumidor prefere seus produtos. O consumidor tem que direcionar seu poder de compra para empresas que têm responsabilidade social. O que não é fácil, porque muitas usam essa bandeira como marketing.