11/02/2004 - 10:00
Escuridão total na passarela. Minutos antes da top model Naomi Campbell fazer sua entrada triunfal, no último dia de desfiles do Fashion Week, a platéia da semana de moda de São Paulo fez seu próprio espetáculo de silêncio e luz. Profissionais da moda, rostos conhecidos e outros tantos aspirantes a celebridade exibiam o visor de seus telefones celulares. Azul, verde, branco, vermelho e roxo, as telas ligadas brilhavam como as chamas dos isqueiros no negrume de um concerto de
música. Mal o desfile começava, a elite do mundinho fashion erguia o celular outra vez. Em vez de bate-papo, o que se via eram os flashes
e os cliques disparados pelo telefone. O estilista Alexandre Herchcovitch aproveitou para ousar. Distribuiu celulares para alguns poucos convidados da primeira fila, entre eles o estilista Marcelo Sommer,
o DJ Johnny Luxo e a consultora de moda Glória Kalil. E prometeu estampar o catálogo de sua coleção outono-inverno com os
modelitos clicados pelos famosos.
As imagens captadas pela minúscula lente do telefone estão longe da qualidade de uma câmera convencional, com filme. Apesar disso, o celular é a nova porta de entrada ao mundo da fotografia digital. A definição ainda não permite uma impressão de qualidade. Ainda. A próxima geração de telefones-câmera deve sair com uma definição de 2 Megapixel, mais do que o suficiente para fazer uma cópia em papel, no tamanho 10 cm x 15 cm. “Isso vai acontecer ainda no Natal de 2004”, prevê o português Luís Avelar, diretor de marketing da operadora Vivo. A moda pegou de surpresa as próprias empresas de telefonia. “No Brasil se envia em média 20 fotos por mês pelo celular. Não esperávamos tudo isso”, confessa o executivo. Glória Kalil é uma dessas entusiastas. Durante os desfiles da semana de moda, que terminou na terça-feira 3, ela usou e abusou dos cliques. “Bato e envio as fotos na hora e, antes mesmo do desfile terminar, elas já estão no meu site”, explica a autora de manuais sobre elegância. Como toda maravilha tecnológica, o celular fotográfico também dá suas mancadas. Entre tanto glamour, caras e bocas, a transmissão de imagem só não deu certo quando Glória mais precisava, durante uma tumultuada visita que o tenista Gustavo Kuerten, o Guga, fez ao templo da moda.
O fenômeno do telefone celular vai agradar aos que já passaram dos 40 anos e têm dificuldade para enxergar os números e as letras na tela diminuta. Para acompanhar a tendência dos celulares-câmera, a tela dos telefones fica cada vez maior, e melhor. Enquanto isso, no universo das câmeras digitais ocorre o efeito inverso, a miniaturização. Um exemplo é a recém-lançada Spy Cam, ou câmera espiã, da Leadership. Do tamanho de uma caixa de fósforos, com 5 cm por 3,8 cm, a máquina tem 8 megabytes de memória interna, funciona com uma pilha tamanho palito (AAA) e arquiva até 65 fotos com resolução baixa, de 300 kbytes. Por R$ 230, ela pode ser usada como chaveiro e vem com um cabo que transmite diretamente as imagens para o computador.
O desconhecimento dos potenciais da fotografia digital ainda inibe os negócios. “Muita gente não sabe que não é preciso imprimir as fotos em casa, que já existem lojas preparadas para isso”, diz Roberto Ricci, diretor no Brasil da Photo Marketing Association, entidade com 80 anos de existência que fomenta negócios ligados à imagem. Mais precisamente, já são 500 as lojas equipadas no País para receber o usuário das digitais. Nelas, o futuro já chegou. E ele é digital, não há dúvida. O passado analógico, porém, há de dominar a cena na próxima década. Hoje, existem 24 milhões de câmeras fotográficas no Brasil – e só um milhão delas não usam filme de película. Os especialistas dizem que há espaço para que o método convencional cresça em paralelo ao avanço da tecnologia digital. O fenômeno da substituição pela fotografia digital, visível nos países desenvolvidos, mal começou por aqui. “Temos 84 milhões de pessoas sem acesso a uma câmera no Brasil”, diz Maria José Ferraz de Barros, diretora de marketing da Fuji. Assim que tiver renda suficiente, esse contingente da população deve iniciar sua caminhada fotográfica com câmeras convencionais. Hoje, as mais baratas custam R$ 100 parcelados, a Kodak estuda lançar uma de R$ 60 e, nos bolsões urbanos onde o contrabando domina, gasta-se ainda menos.
Os equipamentos digitais, embora tenham qualidade em alta e preço em baixa, ainda são artigos de luxo no Brasil. E, como todo produto que atende às classes mais abastadas, esse mercado cresce exponencialmente. A E-Consulting estima que, em 2003, foram vendidas 397 mil máquinas digitais no País. Para este ano, a previsão é de 508 mil. Os varejistas se equipam para receber cartões digitais, CDs ou arquivos de imagem enviados por correio eletrônico. O médico Jorge Antônio Ribeiro Filho, 64 anos, é fotógrafo amador desde 1969 e coleciona cinco mil slides de filmes de 35 mm. Sua evolução para a câmera digital foi inevitável. Agora, suas três mil fotos estão divididas, uma parte arquivada em CD e outra, no computador. “Tenho um celular com câmera, um palm com câmera e uma máquina digital que me acompanham quase 24 horas por dia”, conta o médico do Hospital de Base, em Brasília.
Depois de relutar por muito tempo, Sérgio Jorge, 67 anos e 52 como fotógrafo profissional, também foi obrigado a se atualizar. Ele aderiu à onda digital em 1997, com a chegada de máquinas de definição satisfatória para o mercado editorial e publicitário, e preço mais acessível. Com a digital, tudo mudou, diz Jorge. Seu trabalho ficou menos tenso e o fotógrafo agora pode ver o resultado de imediato, além de corrigir as imperfeições no computador. Jorge já fotografou com praticamente todos os tipos de câmeras do mercado.
O pior do mundo digital, explica, é manter os arquivos em dia. Jorge usa um disco rígido portátil para guardar seu álbum de imagens. Com capacidade para quatro mil fotos em alta definição, o aparelho armazena as fotos que depois serão editadas no computador e gravadas em CDs, devidamente identificados e numerados. Nesta segunda etapa é que Jorge patina e depende da ajuda dos assistentes. “Não pertenço à geração dos computadores, mas minha netinha de sete anos sabe muito bem usar um laptop”, confessa.
Para Fernando Pasquale Scavone, professor de audiovisual da Universidade de São Paulo, a mania das
digitais reflete uma mudança na velocidade
da vida moderna. “O que as pessoas querem
é o retorno mais rápido do que fizeram. Os celulares e palms são uma espécie de bloco
de anotação audiovisual”, explica Scavone.
“As crianças de hoje podem desenvolver uma nova linguagem audiovisual. Antes, o olho do fotógrafo era um espelho eletrônico. Tudo indica que está em curso uma nova linguagem, com o distanciamento do olho do fotógrafo
em relação ao visor da máquina”, especula o professor. Desde que a fotografia surgiu, na França, em 1839, seu desafio permanece o mesmo: guardar memórias e perpetuar um momento. No fundo, o eterno desejo humano de congelar o tempo no espaço.