Se os dez mandamentos listados na página 93 desta reportagem fossem apresentados a qualquer brasileiro, sem o título, e com a pergunta “quem os inspirou?”, as chances de erro seriam quase nulas. Ele diria: “O homem é Luiz Felipe Scolari, o Felipão.” Exímio administrador de emoções, durão sem perder a ternura, teimoso mas leal, o comandante do penta provou que sabe como poucos anular vaidades, neutralizar recalques e fazer o time cerrar os dentes em busca de uma meta inquestionável – não por coincidência, a meta traçada por ele, o chefe. “Felipão é uma versão elogiável de uma personagem do Chico Anysio chamada Kid Farsante”, teoriza Kátia Rubio, professora de psicologia do esporte da Universidade de São Paulo (USP). “A Seleção teve vários grupos. Nas Eliminatórias, Felipão encontrou imaturidade, e grupos imaturos precisam de líderes autoritários. À medida que os jogadores foram amadurecendo, o técnico revelou-se democrático e levou a equipe à plenitude. Este foi o grande mérito”, completa Kátia. “Todos foram surpreendidos pela forma como se relacionou com os jogadores. Foi compreensivo. Parecia bem aceito e com relação amistosa”, afirma Ana Bock, presidente do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. O curioso é que muita gente importante adota há muito tempo o jeito Felipão de ser para administrar suas equipes em várias áreas profissionais. Nos últimos dias, ISTOÉ assumiu a tarefa de identificar alguns desses “felipões” de fora dos gramados.

O veterano do time é o empresário Antônio Ermírio de Moraes, dono
do grupo Votorantim, uma potência de US$ 4 bilhões por ano. Doutor Ermírio é durão, mas tem o coração mole. Ao modelo “felipesco”, acrescentaria muitas qualidades: tem carisma, não grita, mesmo quando está prestes a arrancar os cabelos, e tem horror à vaidade. “A modéstia engrandece a alma.” Antônio Ermírio é um administrador que, como o técnico, pratica a centralização civilizada. Não monopoliza tudo, mas discute com seus homens de confiança. É assim no Votorantim e no Hospital Beneficência Portuguesa, onde é presidente do Conselho. Trabalha muito para os seus 74 anos.

O jeito Felipão consegue unir personalidades tão distintas quanto o doutor Ermírio e a carnavalesca da escola de samba carioca Imperatriz Leopoldinense, Rosa Magalhães. Como o técnico, Rosa é penta: ganhou cinco dos sete títulos da escola. Ela acha importante ser perfeccionista e exigente no trabalho, mas sem exageros. “Não sei se sou mais rígida comigo ou com os companheiros de barracão. Quando formamos uma equipe, as relações no início são difíceis. Com o passar do tempo, vamos nos conhecendo e os laços de confiança se consolidam.” Para ela, os profissionais que ocupam cargos de liderança não devem titubear em “bater o martelo”. A experiente carnavalesca sempre dá a palavra final, mas acha importante ouvir opiniões. A costureira e aderecista Maria da Conceição Santos, 60 anos, aponta semelhanças entre Rosa e Scolari. “Assim como Felipão, ela é aquilo e ponto final. Cada um tem seu jeito.”

Fama assumida – Outro Felipão de saias conhecido pelo seu perfeccionismo é a bailarina e coreógrafa Deborah Colker. Ela tem fama de durona e não faz a menor questão de desfazer essa imagem. Quem entra para sua companhia de dança sabe que vai encarar uma diretora aficionada por trabalho. Com mão de ferro e disciplina rigorosa, não admite atrasos e submete seus 17 bailarinos a uma rotina cansativa. “Considero-me exigente, mas não desumana.” Para quem já sofreu críticas por ser excessivamente acrobática, Deborah tem o direito de se achar uma vitoriosa. Como o teimoso técnico da Seleção, ela transformou desafetos em admiradores. Hoje, integra o seleto grupo agraciado com o prêmio Laurence Olivier, uma espécie de Oscar europeu das artes cênicas. “Não deixo nada atrapalhar meu trabalho. Costumo dizer que de boas intenções o inferno está cheio. E de bons profissionais o universo está vazio”, provoca. Foi seguindo esse lema que Deborah derrubou o preconceito contra seu trabalho. Às vésperas da estréia de 4 por 4, seu último espetáculo, ela, no melhor estilo Scolari, mudou a coreografia e a iluminação de uma cena. “Alguns bailarinos chegaram a chorar, achando que não ia dar tempo para ensaiar tudo de novo”, lembra Deborah. “Fiquei desesperado”, comenta o bailarino Alex Neoral.

No mundo das artes, há outros adeptos da estética “felipesca”. Luiz Fernando Carvalho, 41 anos, o festejado diretor de minisséries, do filme Lavoura arcaica e da novela Esperança, não deixa de dar razão aos que vêem nele um certo estilo Scolari: “Passamos mais tempo com a equipe do que com as nossas verdadeiras famílias. Para acompanhar meu jeito, é preciso se entregar.” Ele apoiou a postura, para muitos teimosa e prepotente, de não convocar Romário. “É fundamental que o líder trabalhe com o seu ponto de vista. Como dizia (o cineasta sueco) Ingmar Bergman, a posição da câmera é uma questão de moral.” Apesar do rigor, a gerente de produção Maria Alice Miranda acha fácil lidar com o diretor. “Ele faz tudo com antecedência. O seu método de trabalho reduz as possibilidades de erro. É duro, mas dócil, capaz de criar uma verdadeira relação de amizade e admiração”, completa ela.

Exigente, perfeccionista e leal. Nestes três pontos, Carvalho se parece muito com o empresário paulistano Amir Slama, 36 anos, dono da Rosa Chá, uma das grifes mais badaladas do País. Slama é um patrão diferente. Ao conquistar o prêmio Abit-2001, o Oscar fashion brasileiro, fez questão de dividir a glória com a “família”. “Ele levantou o troféu e disse “é nosso”, conta a modelista Suede Batista Silva, 38 anos. Como em time que ganha não se mexe, Amir se esforça para manter a equipe unida e motivada. “Às vezes, temos que trabalhar em finais de semana e feriados. Mas todos vêm sabendo que de alguma forma serão recompensados”, diz Amir. Entusiasta do estilo Felipão, o sargentão da Rosa Chá espera que o exemplo da família Scolari se torne regra. “Quem comanda precisa ser humilde”, afirma o estilista.

Campeonato quente – A exemplo da moda, o mercado publicitário é terreno fértil para os egos inflados. Mas na agência F/Nazca, o carismático publicitário Fábio Fernandes consegue fazer sua equipe funcionar como um verdadeiro time. “Eu apenas trato as pessoas da forma como gostaria de ser tratado”, resume. Fernandes sabe o momento certo de dar liberdade a seus parceiros. “Nos campeonatos de futebol de videogame, o Fábio vive mandando a gente tomar naquele lugar, ir para aquele outro lugar. E fazemos o mesmo com ele. Em que lugar do mundo isso acontece?”, pergunta Eduardo Lima, diretor de criação da agência. Mas o pessoal da F/Nazca corresponde ao tratamento. Em 2001, ela foi eleita a agência do ano no festival de Cannes, na França. “Aqui, não existe espaço para quem começa às oito e vai embora às seis. Dou o meu sangue, mas quero o sangue deles também”, completa Fernandes. Empenho também não falta aos funcionários da Alcatéia, uma das maiores empresas de venda de componentes de informática do País, mas a recompensa costuma vir em festas como a do penta, organizada pelos funcionários. Empregados, gerentes e proprietários caíram no samba ao ritmo da bateria da Mocidade Alegre, de São Paulo. O pagode rolou em plena manhã de segunda-feira, no horário do expediente. “Aqui, qualquer coisa vira motivo para confraternização”, diz José Jerônimo Rodrigues, o sócio mais animado.

Saindo da avenida para o cotidiano, funcionários do hospital Emílio Ribas, de São Paulo, não hesitariam em identificar na infectologista Marinella Della Negra, líder de um elogiado trabalho a favor de crianças portadoras do vírus da Aids, uma típica “felipona”. Marinella é exigente. Abusa dos gestos e até briga, se for preciso. O médico Wladimir Queiroz que o diga. Há 20 anos trabalha com a infectologista. “Para ela, não existem pequenas reações. Marinella é intensa.” Mas a secretária Márcia Giorgi diz que essa característica não a afasta das pessoas. “Quando alguém precisa de um conselho, ela está alerta”, conta. Marinella assume o estilo. “Se ter uma linha de conduta é ser teimoso, sou teimosa. A gente pode até errar, mas que seja pela convicção”, pondera. O médico Roger Abdelmassih, dono de uma clínica de reprodução humana assistida em São Paulo que registra mais de dois mil nascimentos, a melhor marca brasileira na área, concorda com a colega. “Exijo de meus filhos a mesma dedicação e empenho dos outros funcionários. Cobro resultados com firmeza, mas também procuro me aproximar dos meus colaboradores. Chego cedo, saio tarde, mas estou sempre atento aos funcionários. Se um deles traz um problema que eu não identifiquei antes, considero que errei. Se isso é ser Felipão, assumo que sou. E com muito orgulho”, admite o médico, que montou uma verdadeira “Família Abdelmassih” em sua clínica. Hoje, ele trabalha com o filho, o médico Vicente; o genro, o pesquisador húngaro Peter Nagy, e a filha bióloga, Silvana. “Não há um Felipão tão Felipão quanto ele”, atesta Silvana.

Trio da pesada – Até mesmo no universo cerebral das pesquisas há espaço para lideranças que recorrem à emoção. O programa de mapeamento genético brasileiro é um exemplo. São três os pais do projeto. O físico José Fernando Perez é diretor científico da Fapesp, a mais eficiente agência de fomento à pesquisa do País. O médico Ricardo Brentani preside a fundação Hospital do Câncer de São Paulo e o Instituto Ludwig de pesquisa contra o câncer. O inglês Andrew Simpson, biólogo molecular, dirige o Ludwig e coordena o mapeamento do genoma humano do câncer e o primeiro esforço nacional para desvendar os genes de uma bactéria presente na foz do rio Negro, no Amazonas. Em comum, os três cientistas têm personalidade marcante. São teimosos, exigentes ao extremo e apostam na ousadia como filosofia de vida. Com eles, não há meio-termo: é amor ou ódio. “Felipão venceu porque conseguiu tirar de cada jogador sua melhor performance. Assim também conseguimos sucesso no projeto Genoma, extraindo o máximo da capacidade profissional de cada pesquisador”, diz Simpson. “Não é só no futebol que temos competência para formar equipes vencedoras”, diz Fernando Perez. Que a segurança de Perez, de Felipão e de todos os Felipões vença todas as “Alemanhas” que apareçam pela frente.

Colaboraram: Célia Chaim, Darlene Menconi, João Paulo Nucci, Lena Castellón e Natália Azevedo (São Paulo) e Liana Melo (Rio de Janeiro)