10/07/2002 - 10:00
Há 42 anos os poderosos que visitam o Planalto se perguntam por que o arquiteto Oscar Niemeyer fez uma rampa na entrada do palácio onde fica o presidente da República. A subida cansa e o suor escorre pelo rosto quando se chega ao topo nos dias de sol quente. Naquela tarde, o Brasil descobriu a utilidade da rampa de mármore branco: um escorregador, destinado às cambalhotas de um moleque brincalhão – que atende pelo apelido de Vampeta – e feliz por ter trazido para casa o caneco de pentacampeão. As largas ruas da cidade também encontraram seu destino: abrigar multidões e servir de passarela aos heróis. Jogadores e comissão técnica, encabeçada por Luiz Felipe Scolari, foram recebidos por uma aglomeração nunca reunida em Brasília: cerca de 500 mil pessoas. Em sua cambalhota, Vampeta quebrou todos os protocolos e virou símbolo e expressão do povo brasileiro. Ronaldo, o Fenômeno, não deixou por menos. Deu um susto no presidente Fernando Henrique ao fingir ter sido espetado pelo alfinete da medalha da Ordem Nacional do Mérito.
“Chegando ao País e recebendo essa energia. Agora, a gente sabe o que é ser campeão do mundo”, concluiu Ronaldinho Gaúcho, emocionado com a recepção. Os viadutos da cidade serviram de arquibancada para quem procurava uma visão privilegiada. Os mais corajosos treparam em árvores ou subiram no teto dos carros. Mas a maioria queria mesmo era estar ao lado dos artistas da bola. A Polícia Militar tentou manter a ordem, colocou quatro mil homens no percurso, mas a bagunça foi geral. Mesmo assim, nenhum incidente aconteceu. Nessa festa, aliás, as regras foram feitas para ser quebradas. Logo de saída, os jogadores dispensaram o tradicional carro do Corpo de Bombeiros. Prevaleceu a companhia da animada Ivete Sangalo no trio-elétrico da Brahma. O domínio da mordomia sobre a tradição magoou os bombeiros. Enquanto a cantora foi muito bem paga pela cervejaria, eles tiraram do próprio bolso o dinheiro para enfeitar os carros com as cores do País. Pensavam em comemorar com brilho especial o aniversário da corporação, ocorrido naquele dia. A praça, que é dos Três Poderes, foi do povo por algumas horas.
Até FHC entrou no clima. Soltou sua “vertente meio mulata, meio de umbanda”, como disse. Chegou a perguntar a Rivaldo: “Você ainda está puto comigo?”, numa referência às declarações do atacante sobre a falta de apoio de FHC quando a equipe mais precisava. Não é sempre que um governante tem a honra de levantar o caneco. A troca de afagos serviu para deixar de lado as divergências entre FHC e o presidente da CBF, Ricardo Teixeira. FHC não economizou esforços para agradecer a presença da seleção. A imagem do presidente com a taça e ar de campeão é tão importante nesse período eleitoral que o Palácio acionou a produtora Bia Aydar. Responsável pelo bom andamento da festa, ela é a mesma que cuida da programação do candidato tucano, José Serra. Mas levantar o troféu terá um preço: a negociação da Medida Provisória (MP) editada há menos de um mês para moralizar o esporte no País. O relator da matéria na Câmara, deputado Ronaldo Cezar Coelho (PSDB-RJ), já tem uma “proposta de convergência”. Ela inclui a não obrigatoriedade de os clubes se transformarem em empresas e a concessão de incentivos para que desenvolvam ações sociais. Entre as vantagens está a renegociação das dívidas com o INSS, cerca de R$ 400 milhões, a perder de vista.
No Rio, até o Cristo Redentor amanheceu salpicado de verde e amarelo. O sol, teimoso como Felipão, ignorou o inverno. O povo foi para as ruas cedo em busca de um bom lugar para ver a Seleção passar. Mas a demora dos jogadores em Brasília acabou empurrando a festa para a noite. Quando os campeões subiram no trio elétrico, às 20h40, os 500 mil torcedores esqueceram o cansaço. Com Felipão, Ronaldo e Cafu à frente, a carreata desfilou ao som de Deixa a vida me levar, de Zeca Pagodinho, e Festa, de Ivete Sangalo.
Às 2h da madrugada, os craques, exaustos, pediram para encerrar o passeio na praia de Botafogo, sem passar por Copacabana, onde
o povo entupia a avenida Atlântica. Mal entraram no ônibus da CBF, torcedores revoltados atiraram pedras no grupo. Do Rio, ainda
seguiram para São Paulo, onde a comemoração acabou às 6h da manhã de quarta-feira 3 no sambódromo.
… Aos trancos e barrancos, lá vou eu. Sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu. Deixa a vida me levar…
Colaborou Eliane Lobato
Kledir Ramil, autor do hilariante texto abaixo, é cantor, compositor e cronista e forma com o irmão Kleiton uma das duplas mais bem-sucedidas da música brasileira. A partir do início dos anos 80, emplacaram sucessos nacionais como Fonte da saudade, Vira virou, Nem pensar, Deu pra ti, Paixão, depois gravados por outros grandes intérpretes da MPB. A Universal acaba de relançar os principais discos da dupla.
Tchê, não é que eu seja bairrista, mas desde que a coisa tomou esse jeitão mais gaudério, comecei a acreditar nas possibilidades da nossa Seleção de futebol. Claro, depois que vencemos a Copa, começou a aparecer muita gente querendo ser o pai da criança. Por isso, desenvolvi um estudo detalhado e totalmente imparcial sobre o DNA da família Scolari, para que não haja mais dúvida a respeito desse assunto.
O Felipão, todo mundo sabe, é lá de Passo Fundo (“está na cara, repare meu jeito”). Foi criado em campo aberto, de bombacha e alpargata, e, dizem, era campeão de guerra de bosta. Essa peculiar modalidade de batalha é uma brincadeira típica dos guris gaúchos e não tem muita regra. Ganha quem acertar o outro com mais quantidade de bosta seca de vaca, munição abundante em qualquer região agropecuária. É um jogo que requer muita habilidade e estratégia e acredito que grande parte da sabedoria tática do nosso treinador (o melhor do mundo) vem dessa experiência de infância. Ali se aprende que antes de atacar é preciso saber se defender. Não é nada agradável ser atingido por um petardo inimigo numa guerra dessa natureza. Também é fundamental ser muito cuidadoso na hora de escolher o seu arsenal. Você precisa saber onde está botando a mão. Depois, como botar a mão, para só então tentar fazer lançamentos certeiros e chegar ao seu objetivo, que é a vitória. Este jogo é uma escola de vida, se você souber ler nas entrelinhas.
O Murtosa é natural de Pelotas. A gente jogava bola quando era criança no Monumental Estádio do Zoca (o campinho dos “ocaliptos”, na praia do Laranjal). Ele é filho do seu Murtosa, que tinha um açougue na esquina da Quinze com a Padre Felício. Fomos criados juntos, frequentando as mesmas escolas, namorando as mesmas gurias… Mas depois ele ficou famoso e foi embora.
O Émerson era a resposta para quem vive brincando com essa história de que nós, de Pelotas, somos homens delicados. O ex-capitão da Seleção é uma experiência de alteração genética realizada no laboratório da Santa Casa de Misericórdia. Já estávamos pensando em produzir em série para vender na Europa, mas depois desse contratempo da luxação vamos ter que rever nossos planos. Quem vai querer um cabeça-de-área com ombros sensíveis? Existe uma cidade no Rio Grande chamada Não Me Toques. Vou tentar vender um desses clones pro time local.
O Lúcio nasceu em Brasília, mas foi criado no Sul, comendo churrasco gordo e matando cachorro a grito (o que lhe deu aquela cara feia). Foi escalado para comandar a defesa nesta Copa, pois é o único capaz de comer churrasco de cachorro e chutar o adversário aos gritos. Tem uma enorme vantagem sobre todos os outros, pois pode bater no peito e dizer com orgulho que foi zagueiro do Sport Club Internacional.
Ânderson Polga nasceu em Santiago do Boqueirão, é gaúcho barbaridade e um digno representante do Estado na Seleção gaúc… quer dizer, brasileira. O Paixão é preparador físico do Grêmio, o que o habilita a estar na comissão técnica. O Luizão é o centroavante gremista. Não interessa onde nasceu: é gaúcho.
A escalação ideal do Felipão começava com Taffarel no gol, mantinha a faixa de capitão no braço do Dunga e colocava o Renato Gaúcho de sunga e óculos escuros tomando sol sentado no banco de reservas. O Falcão só não foi convocado porque a Globo achou que ele ia ficar muito suado para fazer os comentários no intervalo do jogo. E o Carpegianni, chamado para o meio-campo, não chegou a um acordo porque queria o lugar do treinador.
Abrindo um parêntese, a título de ilustração: o Pelé, quando era garoto, foi oferecido para o Brasil de Pelotas e foi desprezado. Toda a carreira brilhante que depois ele fez no Brasil do Brasil foi só para provar para aquela gauchada ignorante que era melhor do que o Joaquinzinho (que foi o escolhido no seu lugar). Ou seja, foi movido pela raiva. Se não fosse o Rio Grande, nunca teria chegado aonde chegou. Fecha parêntese.
O Rivaldo diz que é pernambucano, mas nasceu em Santana do Livramento. O Uruguai, inclusive, tentou convocá-lo para a seleção deles usando um registro de nascimento falso de um cartório de Rivera, cidade que fica do lado de lá da fronteira.
O Ronaldo Nazário é carioca, mas quando criança frequentava o CTG Desgarrados do Pago, em Santa Cruz, no Rio, onde participava do corpo de baile de danças típicas e do Gre-Nal infantil dos domingos (onde defendia com brilho a camisa colorada).
O Kléberson e o Rogério Ceni são paranaenses, e Paraná, em tupi-guarani, quer dizer “Rio Grande”. Tá explicado.
Caetano Veloso decretou há pouco tempo que “a verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul”, portanto os baianos Vampeta, Dida, Júnior e Edílson são trigaúchos.
O Roberto Carlos (não, não tô mais falando de cantores) tem um primo que mora em Santa Maria. A mãe do Cafu tem uma tia que visitou a Festa da Uva.
O Juninho, quando era pequeno (sim, eu sei que ele continua pequeno), fez uma excursão a Gramado pra conhecer a neve.
O Marcos, o Edmílson, o Roque Jr. e o Gilberto Silva, não sei
se pra agradar ao Felipão, tomam chimarrão cada vez que
vão entrar em campo.
Dizem que a falta de qualquer parentesco ou laço afetivo com a região Sul foi a verdadeira razão do corte do Romário. Some-se a isso, como agravante, a bagunça que ele fez naquela boate em Caxias do Sul.
Faltou quem? Ah!, o Ronaldinho Gaúcho. Esse tá na cara, tá no nome. O garoto é a grande promessa do futebol brasileiro. Saiu daqui discretamente, foi morar em Paris, ganhou dinheiro, massa muscular e mudou de hábitos. Começou a usar roupas de grife e fez um negócio chamado “relaxamento nos cabelos”. Ainda bem que é de Porto Alegre. Se fosse de Pelotas iam dizer que é coisa de veado.
O único defeito do guri, além dos dentes, é que jogou no Grêmio. Mas apesar desse detalhe, em breve deve chegar a número 1 do mundo. Afinal de contas, ele é gaúcho e isso já é meio caminho andado.
Não é que eu seja bairrista.
É desnecessário dizer, mas Kledir é gaúcho. Nasceu em Pelotas
Enquanto o mundo acompanhava a luta de Ronaldo para curar a contusão do joelho direito, outro personagem atravessava a tempestade longe dos holofotes. Um dos responsáveis pelo tratamento, o fisioterapeuta Nilton Petrone, 41 anos, teve seu trabalho questionado como nunca. A expressão de dor de Ronaldo na segunda lesão, em abril de 2000, no jogo Internazionale X Lazio, correu mundo e foi explorada pelos adversários dos métodos inovadores de Petrone, o Filé. “Me criticaram sem entender do assunto. Foi covardia”, lembra. Ronaldo manteve a confiança em Filé e retomou o tratamento. Em meio ao esforço para recuperar o artilheiro a tempo de disputar a Copa, ele viveu a tragédia da perda do filho Ulisses, de 15 anos, em março, vítima de distrofia muscular. Apesar de tudo, o trabalho deu certo e a presença do Fenômeno na Copa já foi uma vitória. Mas o melhor estava por vir: Ronaldo foi o artilheiro, fez dois gols na final e dedicou a conquista à família e a Filé. “Foi a vitória do amor e da dedicação. Me desmanchei em lágrimas”, diz. Até hoje os olhos marejam ao recordar a cena.
Filé ficou conhecido nos anos 90 pela forma rápida como
recuperava atletas após graves lesões: Romário, Túlio, Isabel, do vôlei, Renato Gaúcho. Ele inovou a fisioterapia com skates, pés-de-pato, elásticos e caixas de areia. Junto com a fama, veio a polêmica. Os métodos nada convencionais foram criticados por ortopedistas como Lídio Toledo, da Seleção por mais de três décadas. Toledo reclamou quando Filé foi escalado para a Copa de 1994. “Não há milagre, ninguém apressa a cicatrização dos tecidos.” Depois que Ronaldo sofreu a primeira lesão, em 1999, Filé foi contratado pela Inter com um salário de R$ 25 mil. Durante a luta para recuperar Ronaldo, Filé sumiu dos noticiários. Aos que o procuravam, dizia que a hora de falar chegaria. E chegou. Mas quem espera por uma frase agressiva de revanche vai se decepcionar. “Não quero vingança. A recuperação é a prova de que nada é impossível quando a gente acredita.” Depois de tanto sofrimento, ele e Ronaldo acabam de se associar para montar no Rio o mais moderno centro de reabilitação do Brasil, com apoio da Universidade Estácio de Sá.
Francisco Alves Filho