23/10/2002 - 10:00
Quem pisa em Bagdá sem saber das ameaças de um possível ataque americano demora a acreditar que o Iraque está prestes a entrar em guerra. No mercado de Al Mutanaby, centenas de pessoas circulam em corredores apertados, disputando espaço com vendedores de livros, comida, roupas e sapatos. No meio de muito barulho e de um calor de 44 graus à sombra, os pôsteres da Seleção Brasileira pentacampeã saltam aos olhos. Cada um custa 900 dinares, 50 centavos de dólar. Os iraquianos também são apaixonados por futebol e assistiram à Copa como se estivessem em qualquer outro país do mundo. Não ignoram as reais possibilidades de um ataque maciço ordenado por George W. Bush, mas não mudam sua rotina. Nesta semana, superando a própria tradição eleitoral, 100% dos 11 milhões de eleitores iraquianos disseram “sim” a mais um mandato de sete anos de Saddam Hussein.
Na rua Al Rasheed, as crianças brincam até o sol se pôr, quando a temperatura fica mais amena, cai para 38 graus, e uma nuvem de
poeira do deserto cobre Bagdá. O comércio só fecha à meia-noite e os restaurantes oferecem excelentes refeições por US$ 2. As peças de teatro em exibição na cidade estão lotadas. “O povo iraquiano é muito forte e bravo. Não temos medo de um ataque americano”, explica Saddik Oaid, dono de uma pequena loja de carimbos e pai de três meninas.
“As pessoas falam sobre isso, mas não mudam suas atitudes. Há muitos abrigos na cidade e, mesmo assim, todos preferem ficar em casa”, afirma. “Faz 11 anos que os americanos dizem que vão nos atacar. Não temos medo porque já estamos acostumados a isso”, diz a comerciante Kátia Zaier. “No sul e norte do país, os bombardeios são quase diários. Já temos muita experiência em viver em guerra”, acredita. Se há algo que a população faz para se preparar para um ataque é comprar velas. No último bombardeio à capital, em 1998, a eletricidade foi cortada
por mais de 40 dias.
Uma nova ação dos Estados Unidos no Iraque surge nas conversas nos bares, mercados e cafés de Bagdá. A declaração da possibilidade de
um ataque vindo do Ocidente, justificado pela guerra ao terrorismo iniciada por Bush, pode levar o ditador a dar o primeiro passo para o conflito. Do outro lado, Washington discute uma invasão que tem como objetivo final tirar Saddam Hussein do poder e destruir o suposto arsenal de armas de destruição em massa.
Os iraquianos rezam a Alá por uma solução pacífica do conflito com os Estados Unidos, mas estão prontos e armados para contra-atacar, se os americanos pisarem em solo árabe. O policiamento nas ruas e revólveres disfarçados na cintura de qualquer pedestre denunciam que o país espera por uma nova guerra. O Exército de Saddam Hussein tem 425 mil soldados, mas o combate às forças de George W. Bush será feito nas cidades, nas ruas, com civis armados. Em Baiji, a 200 quilômetros de Bagdá, uma parada cívica lembra um acampamento de guerra. Homens, jovens e mulheres, divididos em batalhões, cantam hinos a Saddam e carregam fotos do presidente. Com fuzis em punho, fazem um “V” de vitória. As crianças se fantasiam de soldados e agitam a bandeira nacional. Quatro grupos de professoras, vestidas de preto e com o rosto coberto, usam faixas com a frase “vamos destruir o inimigo”. “Estamos aqui arrumadas para o nosso exército. Este é o nosso uniforme. Vamos ajudar no que for preciso”, conta uma delas.
O ódio à política americana é estimulado pelos discursos de Saddam, que incitam a população ao conflito armado, e personificado na família Bush. No hotel Al Rasheed, o mais luxuoso da capital, os hóspedes são obrigados a pisar em um mosaico com o rosto do ex-presidente George Bush para chegar até à recepção. À frente da Casa Branca durante a guerra do Golfo, o pai do atual governante americano é acusado de ser o responsável por um míssil que caiu no hotel em 1993 e matou uma funcionária. Quando o prédio foi reconstruído, sua imagem foi colocada na entrada com a frase “Bush é criminoso”.
Reconstruir o país, apesar das ameaças americanas cada vez mais frequentes, foi a única opção que restou aos 24 milhões de iraquianos. Metade deles tem menos de 16 anos e não conhece outra realidade. Ignorar o medo da morte é condição para seguir vivendo. “Isso é uma reação psicológica, um mecanismo de defesa, como acontece na Colômbia”, conta Oscar Gómez-Villa, colombiano, subdiretor do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação Humanitária no Iraque. O escritório é responsável, entre outras atividades, por avaliar o impacto do embargo econômico na vida da população. Impostas pelo Conselho de Segurança da ONU em 1990, as sanções foram flexibilizadas em maio deste ano, mas as novas regras não foram colocadas em prática ainda. Só serão suspensas quando o Iraque provar que não possui armas de destruição em massa e mísseis de longo alcance. Sistematicamente, a cúpula do regime culpa o embargo por todos e quaisquer problemas sociais e econômicos do país.
Segundo dados do governo, mais de 1,5 milhão de crianças já morreram vítimas das sanções. A mortalidade infantil, que entre 1984 e 1989 era
de 56 para cada mil nascimentos, hoje é de 131. Centenas de doenças que estavam erradicadas no final dos anos 80 voltaram a atacar a população. Os casos de cólera, não registrados em 1989, saltaram para 825 em 1993 e atingiram um pico de 2.398 em 1999. A rubéola explode e a febre tifóide não pára de crescer. Em dez anos, o país caiu da 91ª para a 126ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano. Os hospitais de Bagdá estão com os estoques de medicamentos vazios. Quando chegam, a grande maioria já está com a data de validade expirada. As farmácias fecharam suas portas.
A indústria de remédios Samara, nos arredores de Bagdá, é uma das poucas em funcionamento no país. Há dois anos, a chegada de novas máquinas, adquiridas através do programa Petróleo por Alimento, fez sua produção crescer para 45% da capacidade total. Mas isso representa apenas 15% do total de remédios e suprimentos médicos necessários à população. O restante precisa ser importado. Muitos desses suprimentos não chegam ao país porque estão numa lista de 332 páginas de produtos de “uso dual”, embargados pelas Nações Unidas por terem características que podem vir a ser usadas para fins militares. Cerca de US$ 5,2 bilhões em bens já foram bloqueados pelo Conselho de Segurança da ONU.
Somos um dos países mais ricos da região e não podemos usar nossa fortuna para salvar o povo por causa das sanções”, disse o ministro de Ensino Superior do Iraque e Pesquisa Científica, Humam Abdulkhalik Abdul-Ghafoor. “Não precisamos de dinheiro, mas sim de cooperação internacional”, afirmou Abdul-Ghafoor.
Exclusão – O isolamento político e econômico do Iraque fez o país parar no tempo. Passear pela capital é como entrar num filme dos anos 80. Tudo parece ultrapassado, das latas de refrigerantes aos modelos de televisores e automóveis. O Passat brasileiro, importado pelo país até 1988, é o carro que mais circula em Bagdá. A exclusão da comunidade internacional também destruiu a moeda local, o dinar. O salário mínimo, oito mil dinares, não vale cinco dólares. Na rua Arafat, uma das mais movimentadas de Bagdá, um tênis é vendido por 3.800 dinares. A comida, subsidiada, é mais barata. Com mil dinares o iraquiano compra arroz, feijão, açúcar, óleo e leite em pó para o sustento mensal de uma pessoa.
Mas a inflação não deixa de subir e a taxa de desemprego chega a 60%. A maior parte dos homens trabalha em dois lugares para garantir o sustento da família. Udai Al-Alwan, dono de uma loja de tapetes, conta que, depois do embargo, precisou diminuir em 75% o preço de seus produtos por falta de clientes. “Acabaram os vôos comerciais e ninguém vem para cá. Às vezes, passo uma semana sem vender um tapete”, conta Udai, que se orgulha de ter o mesmo nome do filho mais velho do presidente.
O litro da gasolina é um dos poucos bens que não sofrem com a inflação ou as sanções econômicas. Custa 50 dinares. “Encho o tanque com dois dólares”, conta um motorista de táxi. O país possui a segunda maior reserva de petróleo do mundo e produz 2,5 milhões de barris por dia. Isso lhe rende US$ 10 bilhões em exportações ao ano, 95% do capital que entra no Iraque. Na estrada que liga Bagdá a Aman, capital da Jordânia, os caminhões que transportam o produto quebram a monotonia da paisagem do deserto. São 1.200 veículos por dia, que viajam 910 quilômetros carregando 26 mil litros de petróleo cada um. Na fronteira de Karama, que separa os dois países, a fila é grande e a espera, demorada.
Um motorista pode esperar até quatro horas para ser liberado. Em meio ao carregamento oficial, vistas grossas para os traficantes. Todos os anos, US$ 2 bilhões escapam do controle da ONU. O dinheiro vai para os bolsos da elite iraquiana, para a qual o embargo faz pouca diferença.Depois de duas guerras nos últimos 20 anos e de mais de uma década de sanções, as necessidades do Iraque são enormes. Talvez a maior delas seja ensinar sua população a viver em paz. Há um ditado que diz que quem nasceu e morreu em Bagdá nunca saiu do paraíso. Os iraquianos parecem acreditar nisso, mesmo se o céu da capital estiver coalhado de caças vindos do Ocidente.