26/06/2002 - 10:00
A guerra aos traficantes do Rio de Janeiro, que vinha se limitando a retóricas e ações esporádicas, teve na quarta-feira 19 uma ofensiva digna dos melhores momentos dos promotores italianos que combatem a Máfia. A escuta telefônica de marginais presos em Bangu I, feita pelo Ministério Público estadual com autorização judicial, culminou com a decisão da juíza Sonia Maria Gomes Pinto de determinar inspeção nas celas e pedir o afastamento do diretor, Durval Pereira de Melo, e de todos os funcionários do mais famoso presídio de segurança máxima do País. O trabalho rendeu informações estarrecedoras, como a conversa em que o traficante Chapolim, preposto de Fernandinho Beira-Mar, negocia pelo celular com uma pessoa identificada como Rubinho, de São Paulo, a compra de um míssil Stinger, usado pelo grupo terrorista al-Qaeda, de Osama Bin Laden. “Quando estiver com eles, pergunta isso. Se eles sabem o que é Sting (sic), aquele que a al-Qaeda estava usando, tá ligado?”, consulta Chapolim. A inacreditável negociação é apenas uma das surpresas das fitas. A coleção de gravações expõe de forma inédita o modus operandi do tráfico: seus contatos internacionais, a alta tecnologia, as impressionantes somas de dinheiro e a mecânica da corrupção policial. Tudo na voz dos próprios bandidos.
Apesar de bem-sucedida, a atuação do MP e da juíza da 1ª Vara Criminal de Bangu foi criticada pela governadora Benedita da Silva (PT) e pelo secretário de Justiça, Paulo Saboya. Nenhum deles foi comunicado sobre a operação. Saboya chegou a ser impedido de entrar em Bangu I quando os promotores Valéria Videira, Jorge Vidal, Rogério Sá e Cláudia Condack revistavam as celas. “Isso não pode acontecer. Depois da governadora, eu sou a maior autoridade aqui”, esperneou.
Para Benedita, foi “abuso de autoridade”. A juíza reagiu: “O secretário não devia se irritar, mas tentar descobrir como esse farto material entrou lá.” Foram apreendidos na sala do diretor um aparelho de fax – que pode ter sido usado, segundo os promotores, para enviar as ordens dos traficantes presos –, fitas de vídeo e uma fotocopiadora. Na sala de custódia, onde ficam os pertences dos presos, havia cinco celulares e 16 balas de calibre 38. No cano do vaso sanitário de uma cela havia mais dois telefones celulares protegidos por um preservativo. E mais 300 gramas de maconha nas quentinhas dos presos. O maior achado, no entanto, foi mesmo o conjunto de diálogos do grampo.
X-9 – Nas 400 horas de gravações feitas em 20 dias, a corrupção policial é escancarada. Numa das conversas, Chapolim e Beira-Mar explicam aos traficantes que os representam em uma favela de Duque de Caxias (Baixada Fluminense) como neutralizar com dinheiro a repressão da PM. Determinam que sejam gastos no máximo R$ 4 mil em propinas para três oficiais e soldados de “seis Blazers” (cada viatura circula com cinco homens). Através de Chapolim, Fernandinho se nega a pagar a um oficial da região e diz que, se ele atrapalhar a venda de drogas, terá que sair do bairro. As condições para incluir o oficial na lista de suborno são claras: “Para dar alguma coisa a ele (o PM), tem que vender algum X-9, deixar umas armas”, ensina Chapolim. Ou seja, o policial só será aquinhoado se revelar o nome de alguém que denunciou a quadrilha ou se repassar armamento aos bandidos.
A prática da polícia de revelar aos bandidos quem os denuncia é comum. Em outra conversa, um traficante de fora do Rio identificado como César reclama com Marcos Niterói (preso em Bangu I) que perdera uma carga de entorpecentes. “Ele (o delator) entregou um carregamento nosso para ganhar três quilos de farinha (cocaína)”, afirma. “Entregou para a polícia… foi feito um acerto e a própria polícia caguetou (denunciou) ele.” Ou seja, alguém denuncia à polícia a existência de um carregamento de drogas, recebe como pagamento uma parte da droga, mas acaba tendo seu nome revelado aos criminosos pela própria polícia. Os traficantes mataram o delator. Parece incrível, mas é exatamente isso, uma completa confusão dos papéis desempenhados por bandidos e agentes da lei, numa promiscuidade que ajuda a explicar como o narcotráfico anula o poder do Estado.
Reveladora também é a fala do marginal que o Ministério Público
identifica como Leomar. Ele explica ao chefão Beira-Mar por que
seu bando não consegue vencer o grupo de Carlos Cabral, conhecido como Líder, traficante rival da fronteira do Brasil com o Paraguai. “Estavam com muito material bélico e com o apoio da polícia. O carro deles tava andando escoltado lá por dois carros dos homi, irmão. Tanto civil quanto militar… O cara chefe dos militar é compadre do Líder, batizou o filho do Líder.” Nesse caso, a colaboração entre bandidos e policiais chega a laços familiares.
As fitas confirmam a amplitude da influência de Fernandinho Beira-Mar. De dentro de Bangu I, ele fala com comparsas de São Paulo, Paraguai, Goiás e um outro Estado, que seria Mato Grosso do Sul. Há ainda uma menção ao Pará. Em Goiás, seu representante era Leonardo Mendonça (traficante de fama internacional com mandado de prisão expedido nos Estados Unidos), intimado a pagar uma dívida: “Se ele não me pagar, vou matar a família dele toda, só vou liberar as crianças. Família, secretário dele, vou matar tudo. Vou dar até o final do mês para ele contar quantas pessoas eu vou matar da família dele.” Também chamou a atenção dos promotores uma das formas de vingança alardeada pelo chefão: “Vou arrumar uns 30 inquéritos pra ele. Todo mundo que rodar em cana no Rio vai botar o nome dele, pra ele ser preso. Vou botar o nome dele, do sócio dele, do irmão dele, pra eles ir em cana, pra ver como se respeita homem.” Assim, Beira-Mar jogaria sobre Leonardo e seus familiares a culpa de crimes de seu bando.
As fitas mostram a dimensão econômica que o negócio das drogas atinge nos morros do Rio. Em um trecho, o traficante Marcos Niterói reclama do mau desempenho de seu ponto de venda de drogas e manifesta desconfiança com seu “gerente”. Numa das raras vezes em que um marginal revela rendimentos, ele cita cifras estratosféricas de apenas uma boca-de-fumo: “Dei o negócio pra ele arrecadando R$ 700 mil por semana… Pô, o cara tá arrecadando 84 mil por semana…” Acostumado a um rendimento mensal de estratosféricos R$ 2,8 milhões, o bandido não se contenta com um faturamento de quase R$ 340 mil. É também Marcos Niterói quem revela a facilidade de fazer entrar drogas na penitenciária. Ao perguntar a um comparsa do morro sobre a qualidade da droga vendida em sua área, recebe uma oferta: “Quer que eu mande umas bolinhas pretas de haxixe?” O chefe recusou o presente, já satisfeito: “Veio pra mim, irmão.” E dá sua opinião de expert: “É boa.”
Resta um importante ponto obscuro na operação: a identidade do homem que diz ser Rubinho, de São Paulo. Ele afirma ter contatos em todo o mundo, inclusive com terroristas do Líbano, alardeia ser capaz de vender um míssil Stinger e oferece aos bandidos equipamentos de última geração, como um bloqueador de detectores de metais, um software com 35 mil linhas telefônicas que dificulta o rastreamento e um dispositivo que muda o timbre de voz no telefone. Em uma frase incompleta, Rubinho se diz informado sobre a ação dos terroristas afegãos e levanta a possibilidade de os responsáveis pelo atentado no World Trade Center terem conexão em território nacional: “Não, a al-Qaeda estava usando bases aqui do Brasil, as bases de comunicação com o…” Nesse ponto, a fala é interrompida pelo interlocutor. Apesar de conferir a si próprio tamanha importância, Rubinho continua no anonimato. “Nunca ouvimos falar nele. Deve ser algum vendedor de armas como tantos outros na cidade”, diz o promotor Roberto Porto, do Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado de São Paulo, como se fosse comum encontrar mísseis à venda nas esquinas paulistanas. É interessante a forma como Rubinho recebe suas encomendas de aparelhos eletrônicos, como embaralhadores de vozes, enviadas dos Estados Unidos – não através de complexas operações, mas por um prosaico sedex, dos Correios. “Se eu não tiver dinheiro, o carteiro não libera”, diz.
Demora – As informações levantadas nas gravações serão
muito úteis caso a polícia queira realmente cumprir sua missão de investigar. Na contramão, no entanto, o melindrado secretário Saboya ameaçou na quinta-feira 20 excluir os promotores da força-tarefa, uma reunião de tropas municipais, estaduais e federais contra o narcotráfico no Rio de Janeiro. Enquanto isso, a cidade continuava manifestando em atos públicos sua revolta com o assassinato do jornalista Tim Lopes. Ele foi torturado e executado por traficantes em 2 de junho, quando fazia uma reportagem para denunciar venda de drogas e cenas de sexo em um baile funk da favela Vila Cruzeiro, no Complexo do Alemão, zona norte. O corpo do jornalista continuava desaparecido. Apesar da vitória parcial da lei contra o império de Bangu I, a semana terminou parecida com a anterior, com a polícia longe de controlar a situação na cidade. Depois que dois supostos traficantes foram mortos pela PM na favela Vila Cruzeiro, um protesto de moradores incentivado pelo tráfico resultou em seis ônibus incendiados na noite de quarta-feira 19. Traficantes voltaram a impor luto à comunidade e ordenaram o fechamento do comércio e das escolas. Mais uma vez os bandidos foram obedecidos e 7.300 alunos ficaram sem aula.
Colaborou Madi Rodrigues
A operação comandada pelo Ministério Público no presídio Bangu I, que descobriu celulares usados pelos presos, pôs os advogados na berlinda. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio, Octávio Gomes, anunciou na quarta-feira 19 que adotará uma espécie de rito sumário diante das denúncias de envolvimento de profissionais do direito com o narcotráfico, agilizando ao máximo a suspensão do exercício da profissão pelo Tribunal de Ética da entidade. Desde o ano passado, 12 deles foram suspensos no Rio com base no artigo 70 do Estatuto da OAB, que prevê a punição do profissional envolvido em fato que comprometa a dignidade da advocacia. Poucos comprometem tanto a profissão como os chamados “pombos-correio”, que fazem a ligação entre traficantes presos e suas quadrilhas. Octávio Gomes foi enfático: “Estamos dando nossa contribuição à sociedade para que o compromisso ético seja respeitado e para que o jornalista Tim Lopes não tenha morrido em vão.” Em contraposição à morosidade que o corporativismo sempre imprimiu a processos do gênero, ele citou como exemplo de ação rápida da OAB a suspensão de Sylvio Guerra, que defendia o pagodeiro Marcelo Pires Vieira, o Belo, flagrado em conversas mais do que suspeitas com o traficante Vado.
As suspeitas sobre o advogado de Fernandinho Beira-Mar, Hélio Rodrigues Macedo, é que levaram o Ministério Público e a Polícia Federal a investigar Bangu I. Macedo foi preso na quarta-feira 19. A repercussão do episódio pôs em cheque o privilégio dos advogados de não serem revistados na entrada e saída dos presídios. São raros os profissionais que admitem perder a inviolabilidade de seus bolsos e pastas. Todos os 11 advogados consultados por ISTOÉ em São Paulo se declararam contra o fim do privilégio, previsto na Lei Federal 8.906/94.
“A revista humilha o advogado honesto e prefiro que o honesto seja preservado”, disse Antônio Cláudio Mariz de Oliveira. Para Carlos Miguel Aidar, presidente da OAB em São Paulo, “a pasta e a bolsa são extensões dos escritórios dos advogados”. O presidente do Conselho Federal da OAB, Rubens Aprobatto Machado, não deixa por menos: “A revista pessoal viola o preceito legal do sigilo do advogado.” Faz coro com os defensores da inviolabilidade Mário Sérgio Mungioli, representante legal do advogado Anselmo Neves Maia, acusado de envolvimento com o PCC e detido desde o dia 23 de maio. “Não são os advogados que estão colocando celulares dentro das cadeias. São os próprios funcionários do sistema prisional. Não vou citar nomes porque não sou dedo-duro, mas por qualquer R$ 50 eles levam para dentro das celas aparelho com carregador e tudo”, afirma.
São raríssimos os profissionais que fazem coro com os cidadãos indignados com o privilégio e a cumplicidade de advogados com o crime. Um deles é Gustavo do Rego Monteiro: “Para que tantas visitas de advogados a traficantes?”, indaga. Rego Monteiro faz uma crítica tímida à máxima de que advogado não deve rejeitar clientes por suposição de culpa: “Não me imagino pedindo à Justiça regime de prisão aberta para traficantes ou assumindo a defesa de marginais como o assassino de Tim Lopes.” Outra que critica o privilégio é Yara Gandra, segundo a qual “deve se abrir mão desse privilégio em nome dos padrões éticos e morais que o crime organizado ameaça”.
Os advogados suspensos pela OAB fluminense, denunciados pelo Departamento Geral do Sistema Penitenciário (Desipe) por envolvimento com o tráfico, são Marcelo Carvalho Bianchi, Lázaro Manoel do Nascimento Filho, Dênis Barbosa Moreira Francisco, Darcy dos Santos Barreto, Jair Muniz Cavalcante, Paulo Roberto Fernandes Pontes, José Ricardo Florentino da Silva, Glória Fernandes Abraão, Rita de Cássia Lima da Silva e Fabiano Ferreira da Silva Gomes. Outro advogado, Miguel Nogueira, foi suspenso por seu envolvimento no escândalo da prefeitura do município fluminense de São Gonçalo.
Hélio Contreiras e Madi Rodrigues