A promessa de que as prefeituras do PT serviriam como importante peça de marketing eleitoral para a quarta campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva parece estar condenada ao esquecimento. As vitrines estão se transformando em vidraças. E seus estilhaços já começaram a fazer estragos. Um dos principais golpes contra a candidatura Lula até agora veio justamente de seu berço político, a região do ABC. A bomba que caiu em cheio no QG petista foi detonada na quinta-feira 20, com a divulgação, pelo jornal O Estado de S.Paulo, de um suposto esquema de propinas encabeçado por assessores do prefeito de Santo André, Celso Daniel, sequestrado e assassinado em janeiro. Nos bastidores petistas já se suspeitava que havia algo de podre na vitrine de Santo André, nas mãos do PT desde 1988, com a primeira eleição de Celso Daniel. Quando Daniel foi morto, as suspeitas, que já vinham sendo comentadas dentro do partido, vieram à tona com toda a força, alimentando a crença de que sua morte estivesse ligada a brigas de máfias incrustadas na máquina da prefeitura. No entanto, a polícia concluiu, no final das investigações, que se tratou de crime comum.

O que surpreendeu os petistas foi a origem da denúncia, o médico oftalmologista João Francisco Daniel. Ele envolveu o nome do próprio irmão morto, acusando o esquema de desvio de verba em depoimento ao Ministério Público de São Paulo. “Eu acho que ele foi assassinado barbaramente porque, apesar de saber desse tipo de esquema, ele quis dar um basta nisso,” afirmou. Mais ainda, João Daniel jogou lama na direção de dois importantes coordenadores da campanha de Lula, o presidente nacional do partido, deputado federal José Dirceu (SP), e o ex-secretário nacional de Comunicação e ex-secretário-geral do PT Gilberto Carvalho. Sem apresentar provas, João Daniel disse que Gilberto lhe contou que entregou R$ 1,2 milhão a Dirceu para campanhas petistas. “A gente sabia que viria alguma bomba nesta semana para cima do PT. Mas não que partiria do irmão de Celso Daniel. E muito menos que seria uma história absurda dessas”, comentou um dos integrantes do governo de Santo André. Os petistas contam que João Daniel não tinha boas relações com o irmão, além de sempre ter sido ligado a políticos do PTB, partido que faz oposição ao PT na cidade. Mas Celso Daniel chegou a tentar uma reaproximação com o irmão em outubro, quando convidou João a viajar com ele para a Itália. Em 1997, o diretório nacional decidiu, em comum acordo com o próprio Celso Daniel, enviar Gilberto Carvalho para Santo André com o objetivo de limitar a ação dos assessores de Daniel que estavam “extrapolando” suas funções. Nos corredores do partido, comentava-se que Daniel sofria muitas pressões e não conseguia livrar-se da enrascada. Gilberto Carvalho – um militante católico ligado às Comunidades Eclesiais de Base – assumiu a Secretaria de Comunicação de Santo André em março de 1997, e depois tornou-se secretário de Governo. Só abandonou a prefeitura no início deste ano para ser um dos coordenadores da campanha de Lula.

Reação – Gilberto e Miriam Belchior,
ex-mulher de Celso Daniel, também citada na denúncia de João Daniel, apresentaram-se diante das câmeras de tevê no final da tarde de quinta-feira 20 para ler uma nota oficial. Explicaram que não iriam responder perguntas dos jornalistas por orientação dos advogados, um deles o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias. Na nota, eles negam todas as denúncias, e informam que João Daniel apresentava-se a seu irmão como representante de uma empresa de Transporte de Santo André, a Expresso Guarará, “solicitando a mudança nas regras do contrato que esta empresa mantém com a prefeitura”. Mas não houve acordo entre as partes. “Neste momento preferimos atribuir as declarações do senhor João Francisco ao desequilíbrio emocional visível que se abateu sobre ele desde a morte do irmão, percebido por aqueles que com ele convivem de perto”, diz a nota. Uma das duas irmãs de Celso Daniel ligou para Gilberto na própria quinta-feira, chorando, chocada com a atitude do irmão. Dentro do partido e até fora dele o comentário era de que por trás das denúncias há o dedo de inimigos políticos. Corre nos bastidores a informação de que os tucanos paulistas montaram, desde as eleições de 1998, uma verdadeira fábrica de dossiês contra as administrações petistas. O candidato a presidente do PPS, Ciro Gomes, foi direto: “Não tenho a menor dúvida de que as acusações partem de forças políticas ligadas à candidatura de Serra (José Serra, candidato do PSDB)”. José Dirceu emendou: “Ciro Gomes deu o nome aos bois quando apontou o nome de Serra como a origem da armação contra o PT”.

Bomba armada – Engana-se quem pensa que o estopim desse furacão foram as declarações dadas pelo irmão do prefeito ao Ministério Público. João Daniel é, sim, peça-chave nas investigações, mas, segundo os promotores, se não fosse o depoimento de Rosângela Gabrilli, empresária do setor de transportes em Santo André, essa história talvez nunca viesse à tona. Nem mesmo pelo irmão do prefeito, que prestou seu depoimento somente após um convite da Promotoria, no final de maio. O desabafo da empresária veio muito antes. No dia 24 de janeiro, quatro dias depois da morte de Celso Daniel, Rosângela foi atrás do procurador José Reinaldo Guimarães Carneiro para revelar detalhes sobre o suposto esquema de propinas. Contou tudo porque estava assustada. Achava que o crime tinha relação com a máfia formada para arrecadar dinheiro das empresas de ônibus. No dia do enterro de Celso Daniel, chegou a ouvir de João: “Você viu o que fizeram com o Celso e com o seu pai? Os próximos seremos nós.” Foi a gota d’água para abrir o jogo.

No depoimento, Rosângela deu nome e endereço das vítimas do então secretário de Obras Klinger Luiz de Oliveira Souza e dos empresários Sérgio Gomes da Silva e Ronan Maria Pinto. Segundo ela, os três cobravam todo mês uma caixinha de R$ 40 mil das empresas de ônibus, duas delas sob sua administração. Rosângela dirige a Expresso Guaraná e era sócia da Viação São José, cujo dono, Sebastião Passarelli, teria perdido a participação por não concordar com a ação da máfia. Os promotores apuraram que a São José não só foi obrigada a transferir cotas de graça a um empresário ligado a Klinger como perdeu uma importante linha dada para uma concorrente. Sérgio, amigo de Celso Daniel, dirigia a Pajero no momento do sequestro do prefeito. Ele e Klinger chegaram a ser apontados como tesoureiros da campanha de Celso.

Rosângela mostra, como prova da caixinha, cópias de correspondências trocadas com a rubrica dos empresários, em que em um dos campos aparece a sigla “D.A.” – a senha para o pagamento. Cada empresa tinha de arcar com R$ 500, em média, por ônibus. Essa versão foi repetida nos demais depoimentos requeridos pelo promotor. Num deles, o empresário João Antônio Braga disse que a propina era chamada de “custo político”, pois destinava-se a “funcionários públicos municipais”. Noutro, os promotores souberam que o esquema recebera o apelido de “Ali Babá”. Os receptadores do dinheiro seriam Irineu Bianco, empregado de Ronan, e Luís Marcondes Júnior, gerente da Associação das Empresas de Ônibus de Santo André, presidida pela mulher de Ronan. Estima-se que o total recolhido desde 1997 foi de R$ 2 milhões.

Os nomes de José Dirceu e de Gilberto Carvalho não aparecem na denúncia oferecida na quinta-feira. “As acusações que o PT recebeu parte desse dinheiro foram encaminhadas ao Ministério Público Federal”, explica o promotor Carneiro. No entanto, segundo os promotores, os empresários disseram que Celso Daniel era conivente com essa prática desde que o destino da caixinha fosse para fins políticos e não pessoais. Quando Rosângela recorreu a Celso Daniel, na semana em que ele foi sequestrado, recebeu resposta de Klinger: “Não adianta recorrer nem a ele, nem ao bispo, nem ao papa.” Mais pedradas são esperadas na direção das vidraças petistas. Em Santo André, por exemplo, denúncias sobre contratos com empresas de lixo e obras prometem dar mais dores de cabeça para Lula.

Gol no fim do jogo

Às 19h50 da última quarta 19, o presidente do Partido Liberal, Valdemar Costa Neto (SP), surpreendeu uma dezena de deputados do PL. Costa Neto confirmou a aliança com o PT e o senador José de Alencar (PL-MG) como vice. A demolição da aliança era tão certa que Lula já havia sondado Patrus Ananias, ex-prefeito de Belo Horizonte (PT), para vice e remoia os desdobramentos. “Vão dizer que não queremos dividir o poder.” Costa Neto mandou abrir a sala aos jornalistas e pôs um ponto final na novela. “A aliança está certa. Agora vamos resolver os problemas estaduais”, decretou. No canto da sala, emburrado, o segundo homem da Igreja Universal do Reino de Deus, Bispo Rodrigues (PL-RJ), que trabalhava para exorcizar a coligação com o PT, recebeu uma ligação do candidato Anthony Garotinho (PSB-RJ). Bispo entregou os pontos: “Vou aconselhá-lo a renunciar. Acabou a candidatura.”

A safra de más notícias tinha também origens domésticas. Na mesma quarta, os deputados do PSB organizaram um encontro secreto. A reunião foi uma catarse, concluindo que a candidatura adernava. Só a bancada do Rio e o líder, José Antônio de Almeida (MA), não aderiram à pressão para Garotinho jogar a toalha. O deputado Beto Albuquerque (RS) contou que recebeu uma ligação de Garotinho, na qual o próprio candidato desabafava: “Estou angustiado com este isolamento no partido e na Igreja.” Miguel Arraes (PE), diante das pressões, escalou o governador Ronaldo Lessa (AL) para fazer um levantamento das insatisfações no PSB. O diagnóstico será levado para reunião da executiva nesta quarta-feira, em Brasília. O PSB, diante das notícias de que o acordo PL-PT poderia fracassar, animou-se com a possibilidade de indicar Rosinha, mulher de Garotinho, para vice de Lula. Agora é esperar pelos próximos lances.

Weiller Diniz