26/06/2002 - 10:00
Em grande fotógrafo não rouba imagens da realidade. Espera que elas se ofereçam por um instante único, que nunca mais se repetirá. E a técnica? “Ora, a técnica a gente aprende e depois esquece”, ensina o fotógrafo e cineasta húngaro, naturalizado brasileiro, Thomaz Farkas, 77 anos, e mais de 60 de carreira, que na terça-feira 25 abre a retrospectiva Fotografias de Thomaz Farkas no Instituto Moreira Salles carioca. “Quando a técnica desaparece, o olho se transforma, mostra o que você quer ver”, pontua Farkas, que por mais de duas décadas também foi professor de fotojornalismo na Escola de Comunicação e Artes da USP. Nas 60 fotos feitas entre os anos 40 e 90, nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, o fotógrafo viu o que quis. Um recorte construtivista na fachada do antigo prédio do Ministério da Educação, no Rio; um bambual de ferragens na estrutura que sustentava o concreto armado da Catedral de Brasília; um desenho hipnótico nas sombras projetadas sobre o viaduto Santa Ifigênia, na capital paulista. Viu também multidões comemorando o fim da guerra e outras, ainda mais entusiasmadas, saudando a inauguração da capital federal.
No entanto, mesmo no calor dos acontecimentos ele nunca deixou de ser um solitário. “Você está sozinho com você, o que é maravilhoso. É você e o que você está sentindo no momento”, diz o fotógrafo, dono de um acervo de 100 mil negativos e cujo estilo privilegia sombras e contrastes. Farkas lembra até a hora do dia em que tirou determinada fotografia, como a série realizada durante um passeio num final de tarde pelo casario da rua do Jogo da Bola, antiga área residencial carioca, vizinha da praça Mauá. Ali, ele clicou algumas de suas imagens preferidas do Rio dos anos 40: uma criança soltando pipa; um velho sentado na calçada; as janelas abertas. “A gente fazia excursão, ficava dois dias fotografando”, recorda Farkas, à época praticante do fotoclubismo, em que imperavam as naturezas-mortas e o estilo pictórico. Além dos lances do cotidiano, começou a abstrair o que via à sua frente. Dá para imaginar, então, a reação dos companheiros quando ele chegou numa reunião com uma foto na mão de telhas empilhadas, mais parecida a uma gravura contrastada de espirais de caderno. Os fotoclubistas a chamaram de costelas de minhoca, um epíteto abominável, mas perdoável. Afinal, eles não sabiam que ali estava sendo gestado o modernismo na fotografia brasileira. A novidade, obviamente, não passou despercebida a Pietro Maria Bardi – então diretor do Masp, falecido em outubro de 1999 –, que convidou Farkas para fazer a primeira exposição fotográfica do museu paulista.
Quando estudava engenharia na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, profissão que nunca exerceu, Farkas costumava reunir os amigos, montar refletores, improvisar um estúdio e compor estranhas cenas surrealistas. Uma delas mostra uma perna e quatro cabeças alinhadas. A primeira à esquerda é do gravador Marcelo Grassman. Este impulso experimental sempre acompanhou Farkas. Ainda menino, revelava fotos com papel especial, à luz do sol. Mas é no documental que sua marca se mostra por inteiro, como prova seu fabuloso registro da construção de Brasília, produzido entre 1957 e 1960. Há três anos, voltou à capital federal a trabalho, convidado pelo jornal Correio Braziliense. O ensaio revela ângulos do cerrado que parecem parados no tempo. Basta olhar o pequeno templo evangélico feito de madeira, idêntico às construções do antigo Núcleo Bandeirantes.
No decorrer dos anos, Farkas não abriu mão do preto-e-branco. Diz que o colorido é muito duro de trabalhar. Contudo, a fotografia como um todo está no seu DNA – o avô já era um homem do ramo. “Húngaro ou vira músico ou vira fotógrafo”, brinca o paulistano nascido em Budapeste, que chegou à cidade aos cinco anos. Ele lembra que foi das margens do Danúbio que saiu gente como Brassai e André Kertész, gênios das lentes entre os pioneiros da fotografia moderna. Farkas gosta tanto de Kertész que, ao visitar uma mostra de seus trabalhos em 2001, teve de conter o ímpeto para não levar um deles. “Fiquei maluco, só não roubei porque não consegui”, brinca. Melhor sorte teve com uma velha faca de prata, toda carcomida. Ficou encantado com o utensílio enquanto almoçava com a mulher num restaurante de Praga, na República Tcheca. Não deu outra. “Pus no bolso e a trouxe para casa.” A imagem, desta vez, foi roubada.