26/06/2002 - 10:00
Em tempos passados de guerra, artefatos de metal em geral tinham como destino certo as forjas de fabricação de armamentos. Nem as matrizes em cobre de gravadores famosos escapavam das intentonas. Durante as batalhas napoleônicas, por exemplo, a família Basan – grande comerciante francesa deste tipo de impressão – foi obrigada a derreter pelo menos 3.500 placas de cobre belamente cobertas de incisões. Curiosamente, 81 matrizes assinadas pelo mestre holandês Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606-1669) foram poupadas. O motivo é simples. Apesar de Rembrandt ter entrado para a história da arte como o autor de pinturas monumentais, como A ronda noturna e Lição de anatomia, ele era mais conhecido em sua época pelos exímios trabalhos em gravura. Mais ainda: nesta especialidade, Rembrandt se impunha como o maior entre os maiores. Sua habilidade no uso de verdadeiras massas pictóricas e na exploração dos contrastes claro-escuro pode agora ser apreciada de perto pelos brasileiros, a partir da segunda-feira 24, na mostra Rembrandt e a arte da gravura, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Brasília. Em 7 de setembro, as 83 obras, que pela primeira vez deixam o Museu Casa Rembrandt de Amsterdã chegam ao CCBB de São Paulo.
Trata-se de uma seleção criteriosa, que abrange todos os temas e motivos trabalhados pelo artista barroco que só abandonou a gravura no final da vida, quando se voltou para o classicismo, depois de eternizar uma grande variedade de temas em suas obras. Autor de incontáveis auto-retratos em óleo – um deles pertencente ao acervo do Museu de Arte de São Paulo –, Rembrandt trouxe o mesmo hábito para o trabalho gráfico. São
justamente cinco auto-retratos que abrem a atual mostra. O maior deles, Auto-retrato, apoiado num muro de pedra (1639), o apresenta como um nobre. Vaidade, talvez, mas ele geralmente se colocava na pele de modelo com o intuito de estudar expressões faciais e a distribuição da luz nos rostos, conhecimento mais tarde utilizado em suas grandes telas. Tanto é que a mesma pose de perfil, nitidamente inspirada em Rafael e Ticiano, foi usada num óleo, um ano depois.
É nos temas bíblicos, no entanto, que Rembrandt demonstra total domínio da arte do buril, comprovado nas 28 obras do segmento religioso, o maior da exposição. Ocupa lugar de destaque a famosa gravura Cristo pregando, considerada o equivalente em papel de sua impressionante tela A ronda noturna. A obra era tão conhecida no século XVII que, segundo a lenda, foi apelidada de Gravura dos cem florins, preço que o próprio artista teve de pagar por um exemplar. Rembrandt levou seis anos para sintetizar a complexa composição dos versículos do capítulo 19 do Evangelho de São Mateus, tamanha a riqueza de detalhes e o fantástico uso de luz e sombra.
Traços pessoais – Durante a vida, Rembrandt produziu cerca de 290 gravuras, 250 das
quais pertencentes ao Museu Casa Rembrandt. A mais antiga delas é Busto da mãe de Rembrandt (1628), trazida para a exposição e incluída na série de cabeças de pessoas idosas que ele costumava retratar no início de carreira. Já nestes trabalhos notam-se traços bem pessoais, especialmente em relação ao sombreamento e aos efeitos de claro-escuro, influência das pinturas de Caravaggio. No início concentrando-se apenas na técnica água-forte, Rembrandt passa mais tarde a usar a ponta-seca e o buril em busca de superfícies aveludadas, especialmente nos retratos de burgueses, como Retrato de Jan Six, e nas paisagens – segmento esplêndido da mostra – representadas pela gravura Omval (1645), que mostra a primeira panorâmica na qual o artista usa sistematicamente as novas técnicas. Além de um módulo com estudos de nus e de dois outros dedicados aos predecessores e seguidores de Rembrandt, há os blocos Cenas de gênero e Mendigos e figuras de rua, que, através de tipos e flagrantes do cotidiano, reportam à miserável vida de parte do povo das abastadas cidades holandesas de então