Uma equipe que busca o título em uma Copa do Mundo tem a obrigação de superar seus fantasmas. E a Seleção Brasileira tinha pela frente muitas dessas sombras, dentro e fora dos gramados: a crise moral, financeira e administrativa que assolou o futebol brasileiro nos últimos anos, o medo do desempenho da defesa, a falta de jogadas pelo meio campo e a força dos ingleses que, pela campanha nos quatro primeiros jogos da competição, chegaram para a partida decisiva nas quartas-de-final como favorita aos olhos de muita gente. Mas, na vitória sobre a Inglaterra por 2 a 1, na sexta-feira 21, em Shizuoka, no Japão, a família Scolari mostrou que não tem medo de fantasmas nem de craques do quilate de David Beckham e Michael Owen e muito menos de adversários poderosos.

A apatia dos últimos dois anos e a falta de coragem que marcou a campanha medíocre nas Eliminatórias foram compensadas por uma atuação valente, uma emocionante combinação de raça e técnica que resgatou a dignidade incorporada ao uniforme canarinho pelas gerações de 1958, 1962, 1970 e 1994. A falha de Lúcio, o gol de Owen que colocou a Inglaterra na frente no placar, a expulsão de Ronaldinho Gaúcho aos 12 minutos do segundo tempo, quando ele era o melhor em campo, tudo foi superado com garra, emoção e algumas atuações brilhantes. Ronaldo Fenômeno não se encontrou em campo, mas seu dia de infelicidade foi compensado pelo excelente desempenho de Ronaldinho Gaúcho, Edmílson, Roque Jr., Gilberto Silva, Roberto Carlos e, sobretudo, de Rivaldo. O atacante do Barcelona fez um belo gol no empate da Seleção, lançou, catimbou, prendeu a bola, tocou com precisão e cavou faltas nos momentos mais importantes da partida. Em resumo, fez pela Seleção uma partida digna das expectativas que gerou nos brasileiros.

O amarelão, ao que tudo indica, voltou a ser apenas a cor do consagrado primeiro uniforme da equipe. O grande english team está morto na competição. Que Beckham, Owen, Schoels, Seaman e seus companheiros tenham um bom retorno para Londres. Primeira equipe a assegurar uma vaga nas semifinais, o Brasil volta a jogar na quarta-feira 26), às 8h30, contra o vencedor do confronto entre Turquia e Senegal, que se enfrentam neste sábado. A Seleção manteve a escrita de nunca ter perdido para a Inglaterra em Copas do Mundo. Em 1958, empatou em 0 a 0. No torneio seguinte, em 1962, venceu por 3 a 1. No tricampeonato de 1970, a vitória foi apertada, por 1 a 0, gol de Jairzinho.

O Brasil entrou em campo com Kléberson no lugar de Juninho. Felipão não chegou a treinar o time com o novo titular para não dar informações ao adversário. As equipes começaram o jogo com muita cautela, uma estudando os movimento da outra. Com uma linha de cinco jogadores na intermediária, a Inglaterra reduzia os espaços. A Seleção tinha mais tempo de posse de bola, virava os jogos entre as laterais, mas não conseguia furar o bloqueio. Os ingleses também não conseguiam ameaçar o gol brasileiro. Mas, aos 22 minutos do primeiro tempo, o adversário ganhou um presente. Após um lançamento do atacante Heskey, Lúcio falhou feio e matou a bola, que sobrou para Owen. A jovem estrela inglesa partiu livre com a bola, entrou na área, esperou Marcos escolher o canto direito e tocou no lado oposto. Inglaterra 1 a 0.

Ronaldinho decide – O Brasil, que era melhor em campo, sentiu o gol e perdeu o controle da partida. Mas o talento individual fez a diferença no momento em que o Brasil mais precisava. Aos 46 minutos, Ronaldinho Gaúcho, em grande jogada, na primeira vez em que um ataque brasileiro foi organizado de forma clássica pelo meio campo, puxou um contra-ataque, deu um drible desconcertante no ala Sinclair e
lançou Rivaldo, que bateu para o fundo das redes. O Brasil, que tomou o gol quando jogava melhor, foi salvo pelo talento de dois de seus gigantes quando era dominado. Revigorada pelo empate, a Seleção voltou para o segundo tempo disposta a buscar o resultado. Aos quatro minutos, Ronaldinho Gaúcho brilhou mais uma vez. Numa cobrança de falta do lado direito do ataque, ele encobriu, com um chute preciso, o goleiro Seaman, que esperava um cruzamento. A bola entrou no ângulo direito de Seaman, que parecia não acreditar no que via. O english team começava a ruir. O craque do Paris Saint-Germain
era o nome do jogo e o Brasil parecia estar próximo do terceiro gol. Mas, aos 12 minutos, num lance ingênuo, Ronaldinho Gaúcho passou o pé por cima da bola e atingiu o tornozelo do zagueiro Mills diante dos olhos do árbitro mexicano Felipe Ramos, que o expulsou na hora. Mesmo com um jogador a menos, a Seleção conseguiu manter a vantagem. Para isso, contou com a disposição de Rivaldo, que segurou a bola no ataque até o término da partida.

O apito final do juiz mexicano foi a senha para a explosão de alegria que tomou o País no final da madrugada e se espalhou pela manhã da sexta-feira 21. Na rua Alzira Brandão, na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, a festa parou o trânsito. Após o empate, o estudante Tiago David chorou de alegria. “Eu falei que ia ser de virada”, gritava ele. No início do segundo tempo, Ronaldinho Gaúcho marcou para aliviar a aflição. Cleberson Oliveira, 23 anos, estava com uma fantasia apropriada para acompanhar um jogo na madrugada. Foi para a rua de pijama, gorro, travesseiro e com um acessório peculiar. “Eu penduro o despertador no pescoço para não perder a hora do jogo”, brincava. Quando o juiz apontou o centro do campo, as dez mil pessoas que ocupavam a Alzira Brandão explodiram num só grito: “Pentacampeão, pentacampeão!” A manhã de sexta-feira estava começando e os torcedores não pareciam preocupados com o horário de trabalho. A comemoração no Alzirão seguiu quente, ao ritmo do samba.

Em Brasília, um autêntico pub inglês improvisado na Embaixada da Inglaterra amanheceu de luto. Rostos tatuados com as cores inglesas, caras e perucas vermelhas, camisetas brancas molhadas de suor e cerveja, as línguas afiadas agora quietas. O dia clareava quando uma legião de 20 fanáticos torcedores do english team trocou a cerveja por café e chá e o otimismo quase arrogante por cumprimentos cordiais aos vitoriosos. Capitaneados por sir Roger Bone, embaixador britânico no Brasil, viu seu melhor time em anos ser despachado. “Venceu o melhor”, disse ele com aparente sinceridade. “Agora quero que o Brasil seja campeão”, decretou o embaixador, entre beijinhos numa bandeira do Brasil desfraldada assim que o juiz apitou o final da partida. Convidados para assistir ao jogo em um telão, lado a lado com os patrões diplomatas, cerca de 30 funcionários brasileiros da embaixada, ainda que por alguns instantes, jogaram para o alto a hierarquia e tomaram conta daquele pedacinho do território inglês. “Ahá – Uhú. A embaixada é nossa!”, gritavam em coro motoristas, vigias e copeiros. “Agora ninguém segura o Brasil”, comemorou Donato Soares da Cunha, churrasqueiro oficial da embaixada.

Em São Paulo, a temperatura de 15 graus não desanimou os torcedores. A lei municipal que obriga o fechamento de bares à 1h foi solenemente ignorada. Na casa de forró KVA, na zona oeste, a música e o arrasta-pé pararam para dar lugar ao grito de alegria da torcida, que se reuniu diante de um telão. “Sofri muito, mas a Inglaterra já era!”, comemorava o autônomo Roque Gonçalves, 27 anos. A festa contagiou até os porteiros e manobristas da casa, que pararam para comemorar. No pub O’Malley, 800 brasileiros e ingleses dividiram espaço. “Infelizmente, a Inglaterra não teve forças para vencer”, lamentou o professor de geografia Nicholas Thody, há cinco anos no Brasil, um dos que ajudaram a reduzir a zero o estoque de bebida do bar. Na Inglaterra, os pubs reservaram cerveja suficiente para servir cinco milhões de pints na manhã de sexta-feira 26. Queriam um feriado para comemorar, mas a ressaca teve que ser curada no trabalho.

Com reportagem de Henrique Fruet e Lino Rodrigues (SP), Ricardo Miranda (Brasília) e Marcos Pernambuco (Rio de Janeiro)