O cantor e compositor inglês David Bowie, 55 anos, mora na área da baixa Manhattan, em Nova York. Foi lá que ele passou os últimos três anos enfurnado, curtindo uma espécie de pausa sabática na sua fulgurante carreira. Mas seu recolhimento também poderia ser entendido como o homem certo, na hora e lugar certos. Afinal, o hoje angustiado filósofo do rock habita o quadrante geográfico onde ocorreu a tragédia de 11 de setembro de 2001. Deste afastamento, surgiram duas das suas melhores produções recentes. A primeira foi o nascimento de Alexandria Zahra Jones, a filha de um ano e dez meses que teve com sua mulher há uma década, a ex-modelo somali Iman – um acontecimento feliz que, paradoxalmente, o levou à reflexão desesperançada em relação à catastrófica situação planetária que ela herdará. A segunda é o recente álbum Heathen (pagão ou bárbaro em inglês), seu melhor trabalho de estúdio desde Scary monsters (1980), que tem lançamento brasileiro previsto para a terça-feira 25. Além da qualidade sonora – respaldada pelo produtor Tony Visconti, colaborador nos soberbos Young americans e Heroes, dos anos 70 –, Bowie se mostra profético nas melancólicas 12 canções que profetizaram tempos sinistros. É bom afirmar que ele compôs nove destas músicas antes da queda das torres gêmeas, que assistiu da janela de seu apartamento, sofrendo com a concretização de seus pesadelos.

Bowie revela-se um profeta do apocalipse já na primeira faixa, Sunday, na qual se acompanha de teclados e percussão eletrônica (leia quadro). Em Slow burn, a guitarra pungente de Pete Townshend faz o contraponto: “Nós teremos de viver nesta cidade terrível.” E por aí vai a poética ameaçadora de quem, confessadamente, sempre foi obcecado pelas incertezas do futuro. “Os temas de Heathen são medo, abandono, vingança, isolamento”, conta Bowie. Mesmo assim, o disco não afunda no baixo-astral. O rock star consegue o equilíbrio em covers de sucesso, como Cactus, da banda Pixies, uma de seus preferidas; I took a trip on Gemini spaceship, do grupo Legendary Stardust Cowboy; e o clássico de Neil Young, I’ve been waiting for you, que fazia parte do repertório de seu conjunto Tin Machine e agora ganhou versão mais compassada. No show de promoção de Heathen, acontecido na terça-feira 11, em Nova York, Gemini spaceship fez uma eclética platéia composta desde gente de meia-idade até adolescentes da tribo gótica dançar com um vigor que há muito se mostrava ausente nas apresentações de Bowie. Prova de que nem tudo no mundo é sorumbático.

Mas neste espetáculo apresentado no Ballroom-Roseland – cavernosa casa de espetáculos em Manhattan – infelizmente o que se viu e ouviu foi o oposto do bom trabalho realizado no disco. O lugar lembra um hangar de avião da Transilvânia, característica que deve ter agradado aos góticos. Trata-se de um espaço nada condizente com a performance intimista de alguém que é um crooner por excelência. Até o figurino escolhido para a série de apresentações é indicativo do pedigree de Bowie: camisa branca, calça, colete e paletó pretos – o paletó ele arranca depois da primeira canção. Para piorar a situação, a engenharia de som errou criminosamente na equalização. A voz de Bowie simplesmente desapareceu, abafada pelos decibéis vindos da banda. Tanto que a primeira parte foi quase toda instrumental, resultado da percepção do experiente astro de que seus esforços não atingiam os ouvidos da platéia. Depois do intervalo, parte do problema foi corrigida, mas ainda assim a qualidade não estava à altura de um show de David Bowie. Em certos momentos, o concerto dava a impressão de que iria descambar para o terrível tecno-rock com que o cantor e compositor submeteu seus fãs nos anos 90, que é o oposto do recente álbum.

De certo modo, Heathen é a evolução dos tons melancólicos já apresentados em Hours (1999). As diferenças estão no aprimoramento das letras e nas boas doses de energia retrô. São ecos dos anos 70 nos quais é possível notar semelhanças com Heroes, por exemplo. Esta primeira colaboração do produtor Visconti, em duas décadas, é descrita por Bowie como “uma conversa entre dois velhos amigos que se reencontram”. A retomada da parceria aconteceu em bom momento. Ele deixou a Virgin em troca de seu próprio selo, Iso, que é distribuído pela Sony Music. Naturalmente mais maduro, Bowie também abandonou sua famosa galeria de personagens mutantes, nem todos interessantes. E o retorno ao rock experimental revigorou sua voz. Heathen, porém, não é renascimento. É um redescobrimento de talento.