30/06/2004 - 10:00
Repousam sobre as terras que formam o Reino da Arábia Saudita duas importantes responsabilidades. Uma é histórica e religiosa, já que essa nação árabe é a terra sagrada da região islâmica – berço do islamismo e onde se encontram Meca e Medina, cidades que, ao lado de Jerusalém, compõem a trinca sagrada do Islã. Outra característica que torna o solo saudita – predominan-temente desértico – tão importante é a presença de 25% de toda a reserva mundial conhecida de petróleo, literalmente, sob os pés da monarquia saudita. Com tamanha importância econômica e religiosa, a relativa estabilidade de poder nesse reinado sempre chamou a atenção em uma região tão afeita a instabilidades políticas e conflitos religiosos. Por mais que houvesse suas disputas internas (e como havia), todo o sistema de poder sempre esteve sob o bastião da casa de al-Saud (como é conhecida a família real saudita), que implementou, em 1932, uma autocracia baseada no Islã. Quaisquer fatores sobre uma hipotética queda do regime seriam mera especulação, mas é fato que a monarquia saudita nunca enfrentou tanta instabilidade quanto à causada pelos sistemáticos ataques terroristas da rede Al-Qaeda em seu próprio solo. Desde maio do ano passado foram mais de 20 atentados, o que fez com que a Arábia Saudita saísse da passividade com que muitas vezes encarou os militantes radicais islâmicos.
Na quarta-feira 23, o príncipe Abdullah bin Abdu Aziz al Saud foi anunciar na tevê uma “anistia” aos militantes radicais – presumidamente com ligações com a rede de Osama bin Laden, para que largassem as atividades terroristas e enfrentassem a “lei de Deus”. Essa tímida ação foi uma resposta de Riad ao aumento sistemático da ação terrorista. Quatro dias antes do anúncio, a Al-Qaeda ofereceu na capital saudita mais um espetáculo macabro com a decapitação do engenheiro americano Paul Johnson. Ele trabalhava para a Lockheed Martin. O olho por olho prevaleceu. A resposta da realeza à decapitação do refém foi a morte a tiros de Abdul al Muqrin, chefe da Al-Qaeda na Arábia Saudita e o provável responsável pela barbárie. No final de maio, o mesmo grupo terrorista já havia provocado uma chacina na cidade petrolífera de Khoba, matando 22 pessoas.
Instabilidade – O que tanto preocupa a comunidade internacional nesses aten-
tados é a possibilidade de desestabilização da família real saudita. A revista
britânica The Economist chamou a atenção para o fato de a violência dos terro-
ristas não mais estar atada aos supostos inimigos do Islã, mas buscar também “derrubar a família al-Saud”. Entretanto, as preocupações com a situação política
da Arábia Saudita vêm de longe. O ex-assessor de combate ao terrorismo dos
EUA, Richard Clarke, que serviu a quatro presidentes na Casa Branca, afirmou
que “a ameaça ao mundo político e econômico apresentada pela instabilidade saudita é maior do que a apresentada pelo Iraque”. Clarke fez ainda uma comparação entre a atual Arábia Saudita e o Irã pré-revolução islâmica de 1979.
“A analogia com o Irã faz certo sentido, mas não chega a representar a realidade
dos fatos. Primeiro porque os clérigos sauditas não são tão organizados quanto eram os xiitas revolucionários do Irã. E também porque a maioria da população saudita depende financeiramente da família real”, avaliou em entrevista a ISTOÉ o professor Alexander Knysh, da Universidade de Michigan. “Há um crescente sentimento de que a monarquia não representa mais os valores do povo. Os governantes se acham legítimos seguidores do Islã; entretanto, os radicais dizem que devido à cooperação com os EUA, os governantes sauditas abandonaram
a fé e por isso têm de ser depostos”, completou Knysh.
Dentre os 19 terroristas que sequestraram os aviões nos ataques de 11 de setembro, 15 eram sauditas. Isso acabou provocando um sério mal-estar entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita, que historicamente é o principal aliado americano na região (excetuando-se Israel). “Bin Laden é popular na Arábia Saudita porque ele desafia a família real a parar de cooperar com os EUA. E é muito difundida a visão de que os líderes da monarquia são marionetes na mão da administração Bush. Além disso, as reivindicações dos discursos de Bin Laden são aplaudidas, não só na Arábia Saudita como em todo o mundo árabe onde há a exigência de que os EUA parem de apoiar Israel. A comunidade árabe não se contentou com a saída das tropas americanas da Arábia Saudita (em abril de 2003), ela deseja também a saída das empresas americanas”, analisou Knysh. Durante a primeira guerra do Golfo, no início da década de 90, com o exército iraquiano de Saddam Hussein perto da fronteira com a Arábia Saudita, os próprios sauditas ofereceram seu território para servir de principal base para a aliança militar que derrotou Saddam. Porém, ao final do conflito, as tropas americanas continuaram no país, causando descontentamento na população.
A Arábia Saudita é um país que permite poucas liberdades. Não há como se falar em conceitos como democracia e liberdades individuais. O poder é controlado por uma gigantesca máquina burocrática. Nada menos que sete mil pessoas da família al-Saud fazem parte dessa sinuosa estrutura. No topo absoluto da hierarquia, como primeiro-ministro vitalício, aparece o rei Fahd. Há ainda mais 20 ministérios, que são ocupados pelos parentes próximos do rei. De fato, desde meados da década de 90, quando o rei Fahd sofreu um derrame, quem governa a Arábia Saudita é o príncipe herdeiro Abdullah. O terceiro na sucessão hierárquica é o príncipe Sultan, irmão de Fahd e Abdullah e responsável pela importante pasta do Ministério da Defesa.
Wahhabismo – Os costumes do povo saudita são pautados por um movimento islâmico chamado wahhabismo. Criado por Mohammed al Wahhabi ainda em meados do século XVIII, preocupado com práticas como a oferenda de sacrifícios e a reza a santos, que considerava deturpações no Islã, o wahhabismo tem uma visão purista e bastante literal do Corão. Ainda nos dias de hoje, as mulheres são proibidas de dirigir e obrigadas a usar o chador, o véu que as encoberta. O álcool e tabaco são banidos do país e crimes punidos com mutilações e decapitações em praças públicas. A influência do wahhabismo vem desde a fundação da Arábia Saudita por Abdul al Aziz al Saud, em 1932. Ao unir os reinos de Hedjaz e Nejd, o patriarca da nação (de onde vem o Saudita do nome do país) cortou os impostos que tribos mais frágeis militarmente tinham de pagar às tribos mais fortes e unificou a nação sob a doutrina do wahhabismo.
Com a família real dominando todos os aspectos de poder de decisão no reino, aqueles que conquistavam a confiança dos al Saud poderiam ser muito bem recompensados. Entre as principais famílias da aristocracia local uma se destacava: a família de Bin Laden. O patriarca, Mohammed Bin Laden, imigrou do Iêmen na década de 30 e, dizem, ganhou a confiança do rei Abdul al Aziz, ao construir palácios para a família real. Com a proximidade entre as duas famílias, Bin Laden ganhou exclusividade nos principais contratos de construção civil e reforma das cidades sagradas. A partir daí, Mohammed Bin Laden ergueu um império bilionário alimentado pelos gastos exorbitantes do governo saudita, então em fase de deslumbramento com os petrodólares (o petróleo foi descoberto em 1938, e sua prospecção começou na década seguinte). O dinheiro do petróleo transformou um país atrasado e desértico em uma das nações mais ricas da região. Mas, como em toda tirania, o povo pouco viu a riqueza do ouro negro, que serviu para custear a vida nababesca dos milhares de príncipes e amigos dos príncipes. Um deles, chamado Osama, o 17º entre os 52 filhos do xeque Mohammed, herdou cerca de US$ 300 milhões com a morte do pai em 1968 e décadas depois viria a colocar o sobrenome Bin Laden na história da infâmia da humanidade.