Ele já não fazia tanto sucesso e sofria derrotas uma atrás da outra: para presidente em 1994, para prefeito em 2000, para senador em 2002. O PDT não parava de minguar e poucos liam seus artigos inflamados. Mas o infarto de Leonel de Moura Brizola, 82 anos, na segunda-feira 21, mereceu rituais reservados às mais grandiosas biografias e o elevou ao panteão dos mitos. Uma fila de 30 horas varou duas madrugadas no velório no Palácio Guanabara, o Congresso adiou a votação do salário mínimo e três dias de luto foram decretados pelo presidente Lula, que se deslocou para os funerais com sete ministros. O cortejo fúnebre engarrafou o centro do Rio de Janeiro e 50 mil pessoas se despediram dele no Palácio Piratini, em Porto Alegre. A pequena cidade de São Borja, onde foi sepultado na quinta-feira ao lado da mulher, Neusa, de Getúlio Vargas e de João Goulart, atraiu as atenções do País. Os críticos recuaram diante do corpo embalsamado e políticos de todas as correntes se derramaram em homenagens. Foi a derradeira ressurreição de Leonel Brizola, que em uma das mais longas e emocionantes carreiras políticas do Brasil protagonizou várias vezes a lenda do pássaro que renasce das cinzas.

Mesmo acamado, com dores e febre de uma infecção intestinal, Brizola se manteve fiel à obsessão pela política até o fim da vida. No domingo 20, de pijamas, tomando soro no quarto de seu apartamento, recebeu a governadora Rosinha Matheus, seu marido e secretário de Segurança, Anthony Garotinho, e o deputado Moreira Franco para costurar uma aliança com o PMDB. “Essa gente é só falar de política que melhora”, brincou Rosinha, ajudando-o a se acomodar no travesseiro. Garotinho e Moreira Franco, desafetos do ex-governador, o convidaram para concorrer à Prefeitura do Rio este ano. No dia seguinte, pouco antes de ir para o hospital, o velho caudilho deixou um grito de guerra para os amigos: “Vamos encilhar o cavalo.”

Brizola relatava a visita dos desafetos como uma estripulia. “Você não acredita quem esteve aqui: Garotinho, Rosinha e até esse Moreira. Ah, a política”, brincou com Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, presidente da Força Sindical, que recebeu pouco antes de ir para o hospital. “Ele reclamava de cãibras nos pés, cansaço e falta de ar, até pediu que eu abrisse a janela do quarto”, contou Paulinho. No Hospital São Lucas, em Copacabana, submeteu-se a exames e, às 21h20m, foi fulminado por um infarto agudo do miocárdio. Uma fatalidade, segundo os médicos, mas os amigos desconfiam. “Até eu achei que ele estava com sintomas de infarto”, comentou Paulinho. “Estou com uma pulga atrás da orelha”, fez coro o vice-presidente do PDT, Carlos Lupi.

Desmaios – Quando o sol reapareceu, centenas de pessoas já estavam na fila da despedida. O caixão ficou no Salão Nobre do palácio, ao lado de um quadro de Getúlio Vargas. Os brizolistas eram a imagem do desconsolo. Há três dias com uma rouquidão que roubou-lhe a voz, a militante Maria Alice Faria já atribuía ao ídolo uma cura repentina. “Brizola fez seu primeiro milagre”, exagerou, falando sério. “Mataram o Brizola”, soluçava Janete Collier. Ao entrar no salão, às 13h30, o presidente Lula recebeu uma vaia impiedosa. Ao lado do caixão, transpirando muito, foi chamado de traidor e se retirou em menos de cinco minutos. No fim da tarde, 20 crianças de rua protagonizaram momentos emocionantes, depositando flores vermelhas sobre o esquife. Samara, quatro anos, vinha à frente com um cartaz no pescoço: “Leonel Brizola, o guerreiro contra a exclusão social.” Algumas mulheres desmaiaram e as escadarias ficaram cobertas de pétalas vermelhas.

Na manhã de quarta-feira, o cortejo seguiu para o Aeroporto Santos Dumont, no centro. O carro do Corpo de Bombeiros com o caixão parou para homenagens em frente ao Ciep Presidente Tancredo Neves, o primeiro feito por Brizola. “Ele cuidou das pessoas mais simples como ninguém. A dor é muito grande”, chorava a aposentada Maria Inês da Silva, 74 anos, que saiu de Niterói e esperou três horas pelo corpo do herói. Milhares seguiram a pé o cortejo entoando “Brizola, guerreiro do povo brasileiro”, e os policiais tiveram dificuldades em impedir que a multidão de invadisse a pista do aeroporto cantando o Hino Nacional. Hinos não faltaram: o Nacional, o da Independência, o da Internacional Socialista, o da Legalidade… Nem podia ser diferente. Apesar de arredio às técnicas modernas do marketing, Brizola usava símbolos como armas poderosas de seu arsenal de sedução. Os Cieps, desenhados pelo amigo Oscar Niemeyer, estão em 513 pontos como monumentos eternos à sua fixação pela educação pública. O lenço vermelho dos maragatos, a rosa vermelha socialista, os apelidos inspirados no mundo animal para carimbar os inimigos e o culto à personalidade de Vargas marcavam um estilo único, que impunha respeito e medo às vítimas de sua oratória demolidora.

Em seis décadas de política, o ex-governador do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul “morreu” várias vezes, para ressuscitar. “Talvez seja prudente deixar uma cuia com mate quente perto da sepultura, por via das dúvidas”, escreveu o colunista Luis Fernando Verissimo. Nascido com o nome de Itagiba, ele começou a driblar o destino já na infância, no interior gaúcho, quando se salvou da pobreza de berço. Tinha um ano quando o pai foi morto, alfabetizou-se fora da escola, tornou-se Leonel em homenagem a um revolucionário, foi jornaleiro, engraxate, ascensorista e jardineiro até entrar na faculdade de engenharia. Aos 22 anos, a política estudantil o elegeu deputado estadual pelo PTB. Sua cassação como governador era certa em 1961, quando os militares tentaram impedir a posse do cunhado João Goulart na Presidência. Foi aí que Brizola ergueu o marco mais nobre de sua biografia de democrata, liderando a reação que adiou o golpe por três anos.

Em 1964, deputado pela Guanabara, tentou repetir a façanha, mas Jango cedeu. O exílio durou 15 anos e seu nome se tornou maldito, proibido nos jornais e livros de história. Ao voltar, em 1979, perdeu a sagrada sigla do PTB, mas, contra todos os prognósticos, se tornou governador do Rio em 1982. Derrotado pelo sucesso do Plano Cruzado, não conseguiu eleger o querido amigo Darcy Ribeiro em 1986. Tudo parecia acabado em 1989, com a derrota nas eleições presidenciais, mas no ano seguinte receberia uma votação consagradora para voltar ao Palácio Guanabara.

Educação – Desde que chegou à política estudantil, enfrentando os “burgueses
com punhos de renda” e os comunistas, Brizola nunca pensou em mais nada.
A ponto de o filho mais velho, José Vicente, lamentar, ao lado do caixão, a lacuna criada pelas ausências do pai, que rompeu com ele há quatro anos, desde que ingressou no PT. “Ele não era só o meu pai, era pai do povo brasileiro”, resignou-se Neuzinha Brizola quando o cortejo, seguido principalmente por pessoas humildes, passava pelo Palácio do Catete, onde Getúlio, o “pai dos pobres”, se matou em
1954. Carismático, Brizola atraía multidões de despossuídos para os embates ideológicos, popularizando conceitos como soberania nacional, democratização da comunicação, educação integral, concentração de renda e “perdas internacionais”, tudo misturado na receita de seu “socialismo moreno”. Orador brilhante, talhava frases para a história, como nos comícios das Diretas-já, ao afirmar que “a democracia que queremos é a da convivência pluralista do povo brasileiro, onde não haja banquetes nem migalhas”.

O pensador brasilianista Thomas Skidmore o definiu como o político mais carismático do Brasil no século XX, e o jornalista Elio Gaspari afirmou que sua morte encerra o século XX como a de Dom Pedro II encerrou o século XIX, porque ambos “foram derradeiros depositários dos sonhos, dos pesadelos e das desgraças que fizeram a história de seus tempos”. Para a socióloga Maria Victoria Benevides, da USP, a morte abriu três orfandades: do trabalhismo getulista, do nacionalismo radical e do socialismo moreno. Para o brasileiro comum, acostumado a vê-lo sorrindo e fazendo rir, a desprezar benesses do poder para atacar os governos, a grudar apelidos cruéis nos desafetos, a discursar com paixão e a estar sempre” de lança em riste e pronto para a peleja”, como definiu o presidente do Senado, José Sarney, sua morte diminui, e muito, o encanto e a graça da política.