“Você está sentindo medo do seu companheiro ou da sua companheira?” é a pergunta que não quer calar em uma campanha do governo do Rio de Janeiro para combater uma rotina trágica que marcha no mesmo ritmo da violência nas ruas. Delegacias especializadas no atendimento à mulher estão perplexas com o número de casos de maridos espancando esposas, namorados batendo em namoradas, pais esmur-rando filhas. Em 2003, foram 31 mil ocorrências policiais no Estado do Rio, enquanto delegacias paulistas somaram nesse período 87 mil atendimentos só de casos de lesão corporal – a ponta de um iceberg de histórias dramáticas, que não escolhem idade, escolaridade nem nível social, apenas o gênero da vítima: invariavelmente, mulheres.

No primeiro trimestre deste ano, mais 22 mil casos de lesão corporal e 21 mil
de ameaças contra mulheres chegaram às delegacias paulistas. Na pesquisa
mais abrangente já feita sobre o tema, há três anos, pela Fundação Perseu
Abramo, 11% das mulheres, com 15 anos ou mais, admitiram já ter sido vítimas
de espancamento – sete milhões de brasileiras agredidas ao menos uma vez.
Todo dia, uma mulher é assassinada pelo companheiro. Para enfrentar este
que é considerado um problema de saúde pública, o presidente Lula assinou na quinta-feira 17 lei que coloca a violência doméstica no Código Penal. Agressões cometidas contra “ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro”,
antes enquadradas como lesão corporal, são agora um crime específico, com
pena de detenção de seis meses a um ano.

“Temos que erradicar a violência contra a mulher”, desafia a professora Nilcéa Freire, a “ministra” da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres. “É hora de dar um basta à impunidade”, faz coro a deputada federal Iara Bernardi (PT-SP), autora do projeto. Os sintomas desse mal estão por todos os lados. Na Pontifícia Universidade Católica (PUC), na Gávea, zona sul carioca, o “agravamento da violência doméstica na cidade”, como explica em edital, levou à criação de cadeiras como “entrevistas no caso de abuso sexual” e “violência doméstica entre os pais”. Já foram formados 300 especialistas no atendimento a vítimas de violência em casa. A banalização desses crimes domésticos também está estampada numa pesquisa feita pelos institutos Noos e ProMundo com 749 homens entre 15 e 60 anos de bairros bem distintos: Botafogo, na zona sul, e Bangu, na zona oeste. Um quarto deles admitiu já ter agredido a companheira. “A violência é tão corriqueira que muitos homens não a identificam. É uma geração que foi criada para não levar desaforo para casa”, avalia o psicólogo Fernando Acosta, um dos coordenadores do Noos.

No Centro de Referência à Saúde da Mulher do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, 80% das 165 mulheres ouvidas afirmavam já ter sofrido algum tipo de agressão. No Rio, o Centro Integrado de Atendimento à Mulher (Ciam) atende 140 casos por mês, 90% de violência doméstica. As relações familiares se tornaram tão complexas que são atendidos todos os casos de agressão nas relações afetivas, e os algozes vão de maridos, pais, ex-namorados a amantes. “Para se proteger da violência nas ruas, as pessoas se cercam de grades e ficam dentro de casa. Mas o que fazer quando a casa é justamente o lugar mais perigoso?”, pergunta a psicóloga Cecília Soares, diretora do Ciam. “Para as mulheres e crianças brasileiras, o espaço privado é mais perigoso do que o público”, concorda a assistente social Ceci Prestrello, presidente da ONG pernambucana Coletivo Mulher Vida. “Esse problema é tão grave quanto a fome. O governo devia criar uma tolerância zero para a violência doméstica”, sugere ela. Com 1,3 milhão de habitantes, Recife tem apenas duas delegacias de atendimento à mulher, enquanto Porto Alegre, com 1,5 milhão, tem uma única. “Apesar de todos os avanços, a violência doméstica continua existindo regularmente em todo o País”, lamenta Denise Dourado Dora, assessora do Programa de Direitos Humanos da Fundação Ford e fundadora da Themis, ONG que presta orientação legal gratuita a mulheres em Porto Alegre. Em seis anos, atendeu cinco mil casos. Do outro lado dessa rede de proteção está São Paulo, que tem 125 Delegacias de Defesa da Mulher, 40% das 315 unidades em todo o País. “É uma epidemia nacional”, lamenta Rosmary Correa, deputada estadual e primeira titular de uma DDM em São Paulo.

Golpe de sandália – Além da tipificação da violência doméstica, outra lei pode ajudar a vencer essa guerra. Aprovada em novembro passado, e aguardando regulamentação, uma lei obrigou hospitais e postos médicos a comunicarem à polícia casos que resultem em “dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher”. “Vivemos uma desgraça endêmica com muitos óbitos”, afirma a psicóloga Dinalva Tavares, autora de um estudo que é uma referência nacional, “Violência Doméstica: uma questão de Saúde Pública”, da Universidade de São Paulo (USP). No livro Gênero, patriarcado e violência, lançado recentemente, a socióloga Heleieth Saffioti vai mais longe. Ela afirma que a violência sofrida pela mulher é um crime tão hediondo quanto aquele cometido contra negros ou judeus. “O racismo e o sexismo são gêmeos univitelinos”, aponta.

“Eu ainda o amo, mas não aguento mais apanhar”, desabafa Andréa, 34 anos, moradora do Méier, na zona norte do Rio, espancada no meio da rua pelo namorado quando voltavam do ensaio de uma escola de samba. Ele já a agredira outras vezes, mas a força da última surra – que incluiu chutes, pontapés e golpes de sandália – levou-a até a Delegacia da Mulher, no centro. Na mesma delegacia, a estudante Carmem, 19 anos, que vive em Copacabana, zona sul, apareceu com o olho direito marcado por um soco desferido pelo pai. “Tive muito medo”, conta ela. Ana Carolina, 28 anos, moradora de São Cristóvão, zona norte, conseguiu há um ano se separar do marido violento, com quem viveu por três anos, mas até hoje ele a persegue, entre juras de amor e ameaças ferozes. Ana elaborou uma cartilha onde tenta se prevenir de novos companheiros violentos. “É preciso detectar pistas de um futuro agressor”, explica. “Humor instável, ciúme doentio, medo de rejeição, acessos de raiva, intolerância”, lista ela. Cerca de 4% das mulheres que denunciam seus companheiros já apanhavam há mais de dez anos. A delegada Marta Rocha, presidente do Conselho da Mulher no Rio, afirma: “Só quando fica insuportável é que a mulher quebra a barreira do silêncio.” Pensando nisso, a polícia do Rio elaborou um “manual de sobrevivência”, distribuído ao público. “Se a violência for inevitável, defina uma meta de ação: corra para um canto e agache-se com o rosto protegido e os braços em volta de cada lado da cabeça, com os dedos entrelaçados”, aconselha o manual. “Evite locais como cozinha e banheiro, onde há facas e objetos cortantes”, ensina.

São nove delegacias da mulher no Rio e sua distribuição geográfica é o retrato da estratificação dessa tragédia. A pioneira, inaugurada em 1986, fica na praça Tiradentes, no centro. Todas as outras estão espalhadas por áreas que concentram famílias mais pobres, como a Baixada Fluminense. Não há delegacias de atendimento à mulher na zona sul do Rio. “A grande maioria de nossas clientes tem baixo poder aquisitivo. As mulheres mais aquinhoadas resolvem tudo em clínicas particulares ou direto na Justiça”, explica a delegada Catarina Elizabeth, titular da delegacia do centro. Foram 4,8 mil casos em 2003, contra 4,3 mil em 2002. Na delegacia mais concorrida, que abrange áreas pobres da zona oeste, como Realengo, Bangu, Campo Grande e Santa Cruz, os cinco mil atendimentos de 2001 saltaram para seis mil em 2003.

Violência sexual – Nove em cada dez mulheres que comparecem a essas delegacias especializadas são de famílias pobres. Oferecendo privacidade,
o Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Gama Filho tem estimulado mulheres de classe média a também denunciar. “É um engano achar que só marido pobre bate no filho e na mulher”, explica a psicóloga Fernanda Maria Amaral, coordenadora do serviço. “No início, atendíamos eminentemente pobres. Hoje, as classes média e alta representam metade dos nossos atendimentos”, conta. O aspecto mais sórdido talvez seja a violência sexual. Funcionando em São Cristóvão, zona norte, o Instituto Municipal da Mulher Fernando Magalhães atende mulheres vítimas de violência sexual, incluindo aí casos de abusos domésticos. Hoje, dos 40 casos atendidos por mês, 20% aconteceram dentro da casa da vítima. É só uma pequena parte da realidade. Muitas mulheres registram a agressão dos companheiros, mas não o estupro.

Com a lei sancionada por Lula, grupos de defesa dos direitos da mulher querem agora substituir as multas e cestas básicas, punições consideradas brandas e inócuas para os agressores, por penas educativas, como serviços à comunidade e participação em grupos de reflexão. Prisão, só em casos extremos, como estupro, que é crime hediondo. “A sociedade deve decidir se quer prender esses agressores ou recuperar essas famílias”, opina a socióloga e antropóloga Bárbara Musumeci Soares, autora do livro Aspectos da violência doméstica no Brasil. O Instituto Noos é o único no País a receber da Justiça homens que cometeram violência doméstica. Para o psicólogo Fernando Acosta, do Noos, essa “cultura da violência”, que passa de geração em geração, pode ser interrompida.

Dos 192 homens que já passaram pelo Noos, só 5% continuaram suas agressões. “Apanhei do meu pai e do meu padrasto. E durante um ano bati quase diariamente na minha mulher”, lembra Reginaldo, 34 anos, adestrador de cavalos no Jockey Clube. Batia também nas amantes. Frequentando as reuniões que discutem desde paternidade até direitos humanos, se diz “curado” e até reatou com a mulher. Como os demais, assinou um “compromisso de convivência”, renovado a cada mês, onde dá a palavra que não voltará a agredir. O Noos checa em casa se a paz é de verdade. “É estranho dizer isso, mas agora me sinto mais homem”, diz Reginaldo, que se apresentou espontaneamente e nunca foi denunciado pela mulher. “É como um renascimento”, concorda o taxista Martins, 34 anos, que vivia em pé de guerra com a mulher e a filha. Outro dia, Martins ouviu da filha, hoje com 11 anos, um elogio que vale mais do que qualquer compromisso. “Você agora é realmente meu pai.”