30/04/2003 - 10:00
Na tarde da quarta-feira 23, Dia de São Jorge – o padroeiro das Cruzadas –, o ex-governador Anthony Garotinho, apontado como eminência parda do governo de sua mulher, Rosinha Matheus, saiu das sombras e assumiu um desafio que pode determinar, para o bem ou para o mal, o seu futuro político. Mais do que isso, definirá o rumo de um Estado sitiado pelo poder paralelo. “Estou colocando na Secretaria de Segurança o que tenho de mais importante na minha vida, que é o meu marido”, anunciou Rosinha, no Palácio das Laranjeiras, um dia depois de traficantes acertarem com artilharia antiaérea um microônibus da PM que passava em seu “território”. Rosinha vinha resistindo em nomear o marido. “Ele não precisa de cargo”, dizia. O cargo, no entanto, precisou do ex-governador. A entrada de Garotinho, decidida na noite de terça-feira 22, numa reunião do pequeno grupo político que o acompanha, foi ao mesmo tempo um desafio e um arranjo político para exorcizar um fantasma: o risco de uma intervenção federal no Rio, que crescia proporcionalmente à ousadia dos traficantes. Sobre o destino político de Garotinho, a melhor definição foi dada por ele ao taxista que o levou até o aeroporto, na noite de quarta-feira. “E a Presidência?”, quis saber o interlocutor, ciente da obsessão do ex-governador pelo Planalto. Ouviu uma resposta seca: “Se eu não conseguir ser um bom secretário de Segurança do Rio, não vou merecer mesmo ser presidente da República.”
“Com toda certeza Garotinho está mirando na sua candidatura à Presidência em 2006. Ele estava querendo ser secretário de Segurança desde antes da eleição da Rosinha”, afirma o cientista político Luiz Antônio Machado, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). “É a última bala do revólver”, sentencia. A troca de comando fez um estardalhaço no meio político e entre os estudiosos
da segurança. Presidente do PSDB no Rio e antecessor de Garotinho, Marcello Alencar acredita que sua maior ousadia pode também ser a última. “Ele pôs a vida política em risco. Acho que Garotinho pára por aqui”, acredita. “A governadora tomou uma decisão limite diante de
uma situação crítica”, elogia o coordenador do movimento Viva Rio, Rubem César Fernandes. “Agora não há intermediário. Colocaram a
pessoa mais forte do grupo na área”, emenda. “É a cartada mais perigosa que o casal poderia ter jogado. Se não der certo, destruirá a carreira política do Garotinho”, afirma Julita Lemgruber, ex-ouvidora da Polícia
Civil no Rio e diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Cândido Mendes. Para a juíza aposentada
e deputada federal Denise Frossard (PSDB), o cargo de secretário de Segurança foi transformado em um palanque. “O que aconteceu foi
a troca de seis por meia dúzia. Tudo continua na mesma. Garotinho está no poder desde 1999 e a política de segurança que está aí é dele”, critica. As apostas estão na mesa.
Paz e amor – Garotinho não quer desperdiçar essa bala. Desde que foi anunciado, tomou dois cuidados. De um lado, baixou a expectativa: “Não esperem milagres.” De outro, adotou uma postura “paz e amor” com o governo Lula, de olho nos R$ 40 milhões que deve receber da União. “Não existe nenhuma animosidade. Existe uma disposição total de cooperação. Desentendimento só interessa aos bandidos”, discursou cauteloso depois de se reunir em Brasília, na quinta-feira 24, com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Não se encontrou com o secretário Nacional de Segurança, Luiz Eduardo Soares, seu desafeto, demitido há três anos pelo então governador da coordenação da Secretaria de Segurança – uma ferida que nunca cicatrizou. “Sei separar o institucional do pessoal”, garantiu Garotinho. “Essa mudança pode dar energia e começar a reverter o quadro”, comentou, também diplomático, Luiz Eduardo.
Garotinho já decidiu até inscrever o Rio no Sistema Único de Segurança Pública (Susp), cooperação proposta pelo governo federal e já aceita pelo Espírito Santo e pelo Rio Grande do Sul. “Só que o Garotinho não é o Paulo Hartung (governador do Espírito Santo). Ele não pode perder o viés de oposição porque quer ser presidente contra o PT”, lembra Julita Lemgruber. Para ter paz com o Planalto, só falta combinar dentro de casa. Na quinta-feira 24, enquanto Garotinho se encontrava com Thomaz Bastos, Rosinha atacava o governo federal durante a inauguração de uma delegacia em Piraí, no sul fluminense. “Pessoas do governo federal estão tentando avacalhar o meu governo, mas eu não vou permitir isso”, disparou.
O ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, comparou o caso do Rio
com o do Paraná, onde o governador Roberto Requião (PMDB) acumula
os cargos de governador e secretário de Segurança Pública. “Espero
que ele (Garotinho) consiga, com a nossa ajuda e o nosso apoio, e atuando em conjunto, continuar a luta contra o crime organizado e o narcotráfico”, disse Dirceu. Mas, para o prefeito César Maia (PFL), se
o Paraná tem um governador em dois cargos, o Rio tem agora dois
chefes no Executivo. “É como se tivéssemos dois governadores: um
para segurança e outro para as demais funções de governo”, resume
o prefeito. O “xerife” de Garotinho, que será o homem forte da nova cúpula de Segurança no Estado, será o superintendente da Polícia Federal do Rio, delegado Marcelo Itagiba, com os dias contados no
cargo atual. Ligado aos tucanos, foi cotado para dirigir a Polícia Federal em caso de vitória de José Serra nas eleições presidenciais. Será o subsecretário de Segurança Pública.
Continuísmo – Pouca gente acredita que a gestão Garotinho seja
uma guinada na política de segurança pública do Estado, que só entra nas 752 favelas da cidade atirando ou se defendendo de tiros. Mas o “continuísmo”, palavra usada pelo próprio Garotinho, pode vir acompanhado de uma necessidade premente de acertar. Em seu período como governador (janeiro de 1999 a abril de 2002), não conseguiu
reduzir o número de homicídios nem vencer a guerra contra o tráfico,
mas o diagnóstico do que precisa ser feito parece perfeito. Ele promete uma limpeza na polícia, excluindo policiais corruptos – uma das exigências do governo federal para ajudar – e um “choque de inteligência” no trabalho de investigação. As cinco principais delegacias da Polícia Civil serão reformuladas: Roubos e Furtos de Automóveis; Roubo de Cargas; Roubos e Furtos; Homicídios e Armas e Entorpecentes. Para desobstruir as delegacias, quer fazer valer a Lei 9.099, que permite ao policial militar registrar a ocorrência sem precisar levar o caso à delegacia – exceto
para os casos de crimes mais graves. Promete colocar mais polícia nas ruas e criar “corredores especiais de segurança” nas principais vias expressas, como a avenida Brasil e as linhas Amarela e Vermelha,
além de instalar câmeras nos túneis.
Dentro da polícia, a chegada do novo chefe só foi menos saudada do
que a saída do antigo. “Não sei se é a luz no fim do túnel ou um trem vindo na contramão”, ironiza uma alta patente da PM. Em uma delegacia do Rio, tiros de foguete saudaram a queda de Quintal. Políticos do
Estado dizem que a situação do coronel era insustentável e que, fora
dos holofotes, onde sobram elogios, Rosinha e Garotinho definem sua gestão como pífia. Os atritos com o chefe da Polícia Civil, Álvaro Lins, ajudaram a derrubá-lo. Depois de tiros e bombas em shoppings, hotéis e pontos turísticos do Rio, o empurrãozinho final veio na noite de segunda-feira 21, quando um microônibus com 20 policiais, que passava na divisa entre o Morro do Timbau e a Baixa do Sapateiro, na Maré, foi alvejado e tombou dentro de uma vala. A emboscada dos traficantes locais deixou todos na linha de tiro dos bandidos. Cinco policiais foram baleados, além do menino Marco Aurélio Fernandes da Silva, seis anos, morador da favela. Ninguém corre risco de vida.
“Ajudazinha” – Depois de ir pessoalmente ao posto da PM na entrada da Maré, Josias Quintal deu à sua própria polícia um prazo até domingo 27 para que os autores do atentado fossem presos. “Eles vão dizer aos bandidos da região que não se atira em polícia. Senão na segunda estarei dando uma ajudazinha”, proclamou Quintal. Pouco depois, a 500 metros dali, um ônibus que trafegava pela Linha Amarela foi incendiado, ferindo a cobradora Sonia Maria Apolinário de Souza. Desmoralizado, Quintal – que agora vai assumir uma vaga de deputado federal pelo PSB – estava com as horas contadas. Um dia depois de anunciada sua saída, foram presos os primeiros traficantes acusados de envolvimento no atentado: George Rosa da Silva, o Boca, 24 anos, e Fábio Soares Martins, o Fabinho, 23. “O Estado tem de retomar o controle da situação. As boas pessoas estão morrendo. A polícia hoje não tem uma estrutura definida”, aponta Zaqueu Teixeira, chefe da Polícia Civil na gestão de Benedita da Silva. “O Garotinho não tem preparo técnico, mas, como estão apostando tudo para salvar a própria pele, pode dar certo”, pondera Fernando Bandeira, presidente do Sindicato da Polícia Civil do Estado do Rio. “Vamos rezar por ele”, diz. Será preciso mais do que reza forte – mesmo que seja para São Jorge.
Maré de problemas
Um dos mais violentos complexos de favelas do Rio de Janeiro, a Maré está ocupada desde a terça-feira 22 por 200 homens das polícias Civil e Militar. Um mandado de busca e apreensão itinerante permite que policiais revistem qualquer casa. Mas que ninguém se engane. Ali, a PM é a invasora. O território é controlado pelos narcotraficantes do Terceiro Comando (TC) e o “governador” é Paulo César Silva dos Santos, o Linho, que põe todo mês 300 quilos de cocaína nas ruas do Rio. Localizada junto à Baía de Guanabara, o que facilita a entrada e distribuição de drogas, e também junto às principais vias de acesso à cidade (avenida Brasil e linhas Amarela e Vermelha), a Maré é estratégica para o TC, que controla 14 de suas 16 favelas, e objeto de desejo – e disputa – da facção rival, o Comando Vermelho (CV), que comanda as favelas Parque União e Nova Holanda. Ainda que a ocupação da Maré não dure, como em outras incursões do Estado por ali, o fato é revelador. Bastou querer – movido pelo ataque a um microônibus carregado de PMs – e o Estado oficial, pelo menos por alguns dias, recuperou um pedaço de um entre as centenas de territórios onde quem manda é o poder paralelo.
“A Maré está para o TC como a Rocinha está para o CV”, explica Marina Maggessi, chefe da Inteligência da Polícia Civil, referindo-se
a outra megafavela, encravada num morro entre a Gávea e São Conrado, na zona sul, dois dos mais caros bairros da cidade. Longe
de ser uma ocupação permanente do mar de casas e ruelas formado por 130 mil pessoas espremidas em 800 mil metros quadrados no bairro de Bonsucesso, zona norte, a invasão policial foi uma resposta militar a mais uma ousadia de traficantes. “Os policiais estão na Maré para preservar a vida das pessoas de bem”, explica o coronel da PM Ubiratan de Oliveira, comandante do Batalhão da Maré, que ainda
não foi instalado, mas pode ter sido a causa do atentado. Na linha
de tiro de duas facções, conhecida como Faixa de Gaza – referência ao território de confrontos entre israelenses e palestinos –, o quartel faz parte de uma estratégia de ocupação policial das favelas. Receberia 800 policiais e contaria com uma torre de observação blindada, de 20 metros de altura, com câmeras de vídeo voltadas
para as 17 favelas. “Seria uma espécie de Big Brother da Maré”, compara Manuel Rosa da Silva, presidente da Empresa de Obras Públicas do Rio de Janeiro (Emop). “Qual bandido quer batalhão
na sua favela?”, pergunta Marina Maggessi.
Só a força policial não será suficiente para reocupar o território perdido, que na década de 80 era cantado em suas mazelas pelos Paralamas do Sucesso, na música Alagados. Entidades responsáveis por projetos sociais no complexo, como a Vila Olímpica da Maré, acham que investir em educação é tão ou mais importante do que prender traficantes. Só assim podem tirar o tráfico do horizonte desses jovens. Quase 7% das 16 mil crianças estão fora da escola – o triplo da média do município. Dois em cada dez moradores são analfabetos e apenas 0,6% tem curso superior. “Só a educação pode tirar essas pessoas da exclusão”, diz Lourenço César, diretor do Centro de Ações Solidárias da Maré (Ceasm), que oferece cursos pré-vestibular comunitários. Em cinco anos, a ONG ajudou a colocar nas universidades 300 “mareenses”. Morador da Vila do João, Lourenço formou-se em geografia pela PUC e nunca deixou de morar na Maré. “Não podemos renegar nosso passado. Só assim construiremos nosso futuro.”
Ricardo Miranda
“É o maior desafio da minha vida”
ISTOÉ – Como o sr. vai enfrentar o poder paralelo dos narcotraficantes?
Anthony Garotinho – O primeiro passo para enfrentar o crime organizado será expulsar os maus policiais de suas corporações. Quero acabar com uma certa conivência de uma parcela da polícia com o crime. Bandido será tratado como bandido e o policial fora da lei será tratado como um bandido igual. Também será preciso reestruturar a Corregedoria de Polícia, que criei em meu governo e é diretamente ligada ao gabinete da governadora.
ISTOÉ – Para quem já foi governador e concorreu à Presidência, não é estranho ocupar agora uma secretaria?
Garotinho – Ao contrário de achar que estou retrocedendo, prefiro pensar que estou demonstrando ter muito respeito pelo povo do meu Estado. Fui prefeito (de Campos) duas vezes, secretário de Estado da Agricultura, um bom governador, porque fiz minha sucessora, e candidato a presidente com 15 milhões de votos. Eu não podia faltar nessa hora de dificuldades pela qual estamos passando. Seria egoísta demais se pensasse só no meu projeto político. O homem público não deve ser avaliado pelo tamanho das posições que ocupa, mas pelo resultado do seu trabalho.
ISTOÉ – Que medidas o sr. vai anunciar?
Garotinho – Vou implementar rapidamente um programa que vai dar maior visibilidade para a força policial. Vou transformar os túneis da zona sul e as vias expressas em corredores especiais de segurança, com câmeras de vídeo e viaturas baseadas ao longo do percurso. Vou dar força ao programa de modernização da polícia, com novas delegacias e a conclusão de postos de polícia técnica, que foram iniciados no meu governo e paralisados na gestão da Benedita. A polícia técnica do Rio estará no patamar das melhores do mundo. Também vou implantar um programa novo de blitz orientada.
ISTOÉ – O que o sr. diria à população que vive com medo?
Garotinho – O povo do Rio pode ter certeza de que vou trabalhar 24 horas por dia, vou dar o melhor de mim para devolver a tranquilidade aos cidadãos do Estado. Tenho convicção de que não vou resolver todos os problemas, não sou um milagreiro, mas tenho fé de que vou conseguir avançar muito.
ISTOÉ – É uma aposta política?
Garotinho – É meu maior desafio político, o mais difícil da minha vida.
Ricardo Miranda