13/06/2002 - 10:00
Fantasiados de verde-e-amarelo, um grupo de amigos se reúne ao redor de um balcão. Uma voz em off explica que, nesta Copa, é preciso beber determinada marca de cerveja e torcer para o Brasil. Ou, então, preferir outra bebida e torcer para outro time. Em uma das quatro peças publicitárias criadas pela F/Nazca para a Skol, esta é a senha para que um torcedor do México apareça no vídeo ao lado de uma garrafa de tequila. Nos demais filmes da série, um torcedor russo bebe vodca e um francês, champanhe. Na quarta versão, a voz em off anuncia um torcedor da Argentina. A mesa onde ele deveria se sentar aparece vazia. O locutor não perdoa: “Bem, ninguém quis fazer o papel de argentino neste comercial. Obrigado.” Ponto para o humor brasileiro.
Em tempos de bancarrota econômica, fazer piada com o vizinho se tornou uma prática politicamente incorreta. Haja vista a reação da opinião pública à recente declaração do presidente uruguaio, Jorge Batller, que ousou classificar os argentinos como “um bando de ladrões”. Mas, em plena Copa do Mundo, fica difícil deixar barato. Recentemente, Maradona foi eleito o dono do gol mais bonito na história das Copas, chutando Pelé para a terceira colocação. Dá para aceitar? Esta foi a última vitória da Argentina em uma lista extensa de disputas. Brasil e Argentina somam o mesmo número de pontos no ranking da Fifa, aquele que coloca a França na liderança. A Argentina leva vantagem nos confrontos diretos, e o Brasil venceu mais vezes em Copas do Mundo. “Quero ver quando pegarmos a Argentina. Espero que isso só aconteça nas semifinais. A gente torce para eles se darem mal no meio do caminho, mas isso nunca acontece”, revolta-se o estudante de administração Felipe Lachowski, 18 anos, goleiro no time da faculdade e de um clube de São Paulo. “Eu odeio argentinos. Eles são muito arrogantes. Principalmente os jogadores do Boca Juniors, que já eliminaram duas vezes o Palmeiras da Libertadores da América”, exalta-se o palmeirense.
Felipe era muito pequeno em 1990. Não acompanhou a Copa da Itália nem assistiu ao triste jogo que eliminou o Brasil ainda nas oitavas-de-final. “Maradona roubou a bola, passou por Dunga e Alemão e lançou para Caniggia, que fez o único gol da partida. O Maradona é assim, em três segundos ele faz chover”, lembra Careca, craque do Brasil naquela breve campanha. “Foi uma decepção. Maradona estava acima do peso e o time era muito inferior ao nosso”, conta. Depois disso, Careca conviveu durante quatro anos com o craque argentino na linha de frente do Napoli. Ousado, elogia a garra e o patriotismo da equipe rival, mas não deixa de tirar sarro. “Eles têm um jeito diferente. São cabeludos, usam tiara e gostam de gozar de tudo”, diz.
Piadas – Ultimamente, no entanto, nem todos encontram motivação para se divertir. Até os brasileiros baixaram a guarda e reduziram as chacotas. “Ainda bem que pararam de fazer piadas. Hoje, não aceito gozação, nem dos amigos”, confessa a argentina Ana Massochi, 51 anos, dona do restaurante Martin Fierro, em São Paulo. Apaixonada por seu país, Ana prefere fechar o restaurante quando Batistuta entra em campo. “É claro que eu torço para a Argentina. Mas não vou colocar uma tevê no restaurante e chamar os amigos para comemorar. Isso é provocação”, diz. Da mesma maneira, Ana não leva desaforo para casa. “Uma vez, bateram no meu carro e, quando o motorista percebeu que eu era argentina, me chamou de gringa e perguntou o que eu fazia em seu país. Seu país? Perguntei se ele era yanomâmi”, contou ela.
A explicação histórica para a inevitável disputa entre vizinhos está na competição entre os dois países, iniciada no século XIX, após a Guerra do Paraguai. “Brasil, Argentina e Uruguai se uniram na tríplice aliança para combater o Paraguai, que, naquele momento, era comercialmente independente e representava uma forte ameaça. Ao liquidar com ele, Brasil e Argentina passaram a liderar a disputa pela hegemonia no continente”, ensina o professor de história da América da PUC de São Paulo, Adilson José Gonçalves. “A Argentina se industrializou mais rapidamente e alcançou um nível educacional invejável”, diz. O lapso cultural se faz sentir, inclusive, no Brasil. O balneário fluminense de Armação de Búzios, por exemplo, deve aos argentinos grande parte de sua fama e, até o ano passado, metade do fluxo de turistas. “Eles começaram a chegar em 1970 e trouxeram uma infra-estrutura enorme”, comentou o secretário de Turismo do município, Isac Tilinger. “Os argentinos correspondem a 1.200 dos 20 mil habitantes e são proprietários de 30% das pousadas, 40% dos restaurantes e do único cinema. Na rua das Pedras, onde se concentra
a vida noturna de Búzios, os estabelecimentos mais disputados são
de argentinos”, diz.
Para os ufanistas, reconhecer os benefícios trazidos pelos gringos é uma ofensa. Mas, se os argentinos não superassem o Brasil em alguns pontos, não haveria competição. É esta a análise do psicanalista Jorge Forbes, para quem o sentimento de rivalidade é típico de todo ser humano. “Brasil e Argentina são como os irmãos que brigam nas festas de Natal. A Argentina é a melhor alteridade para o Brasil, já que apresenta vitórias e derrotas não apenas no futebol. Paraguai e Estados Unidos não competem com o Brasil. A Argentina, sim”, explica. Na psicanálise, por exemplo, Forbes tem que reconhecer que os vizinhos levam vantagem. “Em Buenos Aires, há a maior concentração de psicanalistas por metro quadrado do mundo. Para se ter uma idéia, existe até um bairro chamado Vila Freud e um bar com o mesmo nome. A partir de 1975, muitos desses psicanalistas foram perseguidos pelo governo e pediram guarida no Brasil, principalmente em São Paulo”, conta, justificando por que há tantos terapeutas argentinos no Brasil. Para Forbes, eleger a Argentina como rival é, no fundo, uma homenagem. “Dessa forma, reconhecemos que ela está à nossa altura. Logo após a morte de Senna, Alan Prost declarou que ia abandonar as pistas porque não tinha mais com quem competir”, compara. E desta vez? Entre Ronaldinho e Batistuta, será que
levamos a melhor?