23/06/2004 - 10:00
O polonês Ignacy Sachs é um gringo verdadeiramente apaixonado pelo Brasil. E tem fortes razões para isso. Chegou ao País em 1941, junto com os pais e os irmãos, como refugiado de guerra. Ainda adolescente, estudou no Colégio Liceu, em São Paulo. Depois foi para a Faculdade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, fazer a sua primeira graduação em economia. Em 1954, voltou à Polônia para trabalhar pelo socialismo. Catorze anos depois, foi obrigado a deixar o país por motivos políticos e a renunciar à cidadania polonesa. Desta vez, o refúgio foi Paris, onde se naturalizou francês e começou os primeiros estudos comparativos entre a América Latina e a Índia.
O Brasil entrava de novo em sua vida, agora como objeto de pesquisa acadêmica. Isso lhe valeu uma vasta experiência como consultor sobre o continente latino-americano em quase todas as agências internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU). No início da década de 70, criou e dirigiu durante 13 anos o Centro Internacional sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Fez parte da equipe que montou as conferências sobre meio ambiente, em Estocolmo, em 1972, e no Rio de Janeiro, em 1992. Logo depois da abertura política no Brasil, em 1985, idealizou e dirigiu o Centro de Pesquisas Sobre o Brasil Contemporâneo, uma forma de comemorar a volta dos brasileiros ao regime civil.
Com 72 anos, Sachs não gosta de ser chamado de brasilianista (termo que define os estudiosos estrangeiros do País). Considera-se acima da definição e tem orgulho de conhecer o Brasil como poucos. Tanto que mantém no bairro paulistano de Higienópolis um apartamento onde passa pelo menos três meses por ano. “Quando me perguntam quais são as minhas origens, eu respondo: polonês de nascimento, francês de passaporte e brasileiro de coração.” Na entrevista, Sachs fala sobre os problemas do País que tanto ama e alerta: só crescimento da economia não resolve a questão do desemprego.
Eu não acredito que se possa avaliar um governo em um ano. Portanto, de um lado, não creio que se possa tirar todas as conclusões negativas que estamos ouvindo nem acredito que os sinais de retomada dos últimos meses significam muita coisa. Como disse o economista Paulo Nogueira Batista Jr., essa retomada é equivalente a uma vitória contra a seleção da Venezuela pelo placar de um a zero. Alguns acreditam que o problema do emprego é resultante de uma taxa de crescimento forte e o resto se faz por si. Outros acham que existem duas entradas na questão do desenvolvimento: uma pelo lado do aumento do Produto Interno Bruto (PIB); a segunda pelo lado da geração de empregos. E que temos de usar simultaneamente as duas entradas, porque, se olharmos as estatística da estrutura do PIB brasileiro, temos um país razoavelmente industrializado. Agora, se olharmos as estatísticas pelo lado do emprego, temos um país subdesenvolvido.
Entre essas duas óticas há uma diferença clara e não acredito que se possa atacar o problema do emprego unicamente pela taxa de crescimento da economia. É óbvio que não haverá mais emprego sem crescimento, mas a recíproca não é verdadeira. Ou seja: pode haver um crescimento alto e rápido sem geração de um número suficiente de empregos ou de oportunidades decentes. Um exemplo que vem à mente é a China, que, oficialmente, está crescendo a taxas de 9% ao ano. Por outro lado, os chineses estão lutando contra graves problemas, que são o desemprego e o subemprego. A elasticidade emprego/crescimento é muito pequena. É preciso crescer 10% para gerar 1% de aumento dos empregos.
É, e não por acaso. Apesar do crescimento de 8% e de um sucesso retumbante nas exportações de softwares e de serviços de informática, o governo indiano foi derrotado nas urnas. Esse tipo de crescimento o Brasil conhece há décadas. É um crescimento rápido, acompanhado de uma modernização rápida, sustentado por uma industrialização rápida, porém socialmente perverso, porque concentra a riqueza. Esse é o modelo da China, foi o modelo do Brasil dos generais e do governo derrotado na Índia. Foi derrotado na Índia porque é incompatível com a democracia. Precisamos de outro tipo de crescimento, com maior densidade de empregos. Gostaria de citar um trecho de um artigo do embaixador Rubens Ricupero. “Sem emprego, a equação não fecha. Sem crescimento e industrialização rápida, o Brasil não tem conserto.” Essas são as duas faces do dilema.
A minha resposta é que existem condições objetivas para que o Brasil supere esse dilema. Dá para crescer com um número suficiente de empregos. Como fazer eu não posso dizer, só se tivesse uma bola de cristal. O que tento dizer é que objetivamente há condições para que isso aconteça e sempre existirão no Brasil. É preciso ficar claro que isso não acontecerá no núcleo modernizador da economia, ou seja, nas indústrias modernas de alta tecnologia, nas empresas de classe empresarial, nas grandes companhias. É claro que a expansão desses setores vai concentrar os maiores investimentos, até porque a política industrial é toda voltada para eles. Mas não serão esses setores modernos que irão gerar novos empregos.
É preciso promover uma negociação entre
as grandes empresas e representantes dos empreen-
dimentos de pequeno porte para transformar relações muitas vezes conflitivas em sinergias positivas. Então, eu posso imaginar a expansão do núcleo modernizador com empregos induzidos fora dele. Vai depender da política de salários. Toda a produção de bens não comerciais, ou seja, que não estão sujeitos à competição internacional, gera a possibilidade de eleger tecnologias de menor intensidade de capital e criar mais empregos.
Podemos construir uma estrada importando máquinas modernas e, no outro extremo, construir estra-das de pá na mão. Sem cair nos exageros dos extremos, temos nas obras públicas a possibilidade de eleger tecnologias mais intensivas de mão-de-obra. E também
na construção civil e nos serviços. Mas a maior oportunidade, a meu ver, está na possibilidade de entrar em um novo ciclo de desenvolvimento rural. Todo o país deve definir seu projeto a partir da análise das suas singularidades, dos seus problemas e das suas potencialidades. O Brasil tem a maior biodiversidade do mundo e uma reserva confortável de terras cultiváveis, sem tocar em uma árvore da Amazônia.
Tem clima favorável à alta produtividade primária de biomassa, variedade de ecossistemas e uma dotação razoável de recursos hídricos. E, para completar,
uma pesquisa agronômica e biológica de classe internacional.
Precisa fazer a reforma agrária, assentamentos, um feixe de políticas públicas para que os assentamentos avancem, formar parcerias público-privadas, recuperar a agricultura familiar, buscar produções de biomassa, além de gêneros alimentícios. Quando falo de desenvolvimento rural é apenas agrícola, porque os empregos não-agrícolas vão depender da estratégia que será adotada. Agricultura não é apenas produção de grão ou aquela agricultura mecanizada, que eu incluo no núcleo modernizador, e sim a produção de biomassas que podem ser alimento, ração, energia, fertilizante, material de construção, matérias-primas industriais, fármacos e cosméticos. Eu acredito que o Brasil tem tudo para assumir a liderança mundial na construção de uma nova civilização do trópico que aproveita as vantagens comparativas do clima tropical para produzir biomassa e potencializar essa produção através do uso de biotecnologias que aumentam a produtividade e abrem caminho para a produção de um leque de produtos derivados da biomassa. Isso corresponde ao conceito que eu tento defender de desenvolvimento socialmente includente e ambientalmente sustentável.
Vejo mais uma área onde se pode gerar emprego: poupar recursos. Conservar energia, água, reciclar, recuperar materiais. Isso significa produzir mais a partir do aparelho de produção existente. É uma contribuição ao crescimento da economia que não requer grandes investimentos. E tem uma outra fonte de crescimento que é a manutenção. Através de uma manutenção mais cuidadosa é possível prorrogar a vida útil das infra-estruturas, equipamentos, patrimônio público, parque viário e imobiliário e, ao alongar a vida desse patrimônio, há uma redução da demanda por capital de reposição. Portanto, é liberada uma parcela maior da poupança para novos investimentos. São áreas intensivas de mão-de-obra, e o que elas requerem é uma flexibilização de crédito e uma capacidade das indústrias para atender a essa demanda adicional.
Todo o desenvolvimento de um país como este requer uma série de reformas e um feixe de políticas públicas para alavancar os empreendimentos de pequeno porte. Requer a simplificação e a desburocratização de muita coisa, inclusive da legislação trabalhista. Mas, muito cuidado. Aqueles que estão pedindo a flexibilização do mercado de trabalho, em geral, usam isso para atacar as conquistas sociais. Portanto, é preciso olhar duas vezes o que se faz em matéria de trabalho.
Teoricamente sim. Acontece que a história
das cooperativas de trabalho no Brasil é essencialmente uma história de gatos, uma maneira de substituir a
mão-de-obra formal, com carteira assinada e, portanto, protegida do ponto de vista social, por trabalhadores desprovidos de qualquer benefício. Isso, evidente-
mente, não é desenvolvimento. É o que chamo de mau desenvolvimento. O Brasil é quase um modelo clássico de mau desenvolvimento. Foi um exemplo de um crescimento socialmente perverso. No conceito de mau desenvolvimento é preciso incluir também uma série de critérios ambientais. Nesse ponto de vista, o passado brasileiro não inspira entusiasmo. Houve uma incorporação predatória de recursos naturais no PIB. O verdadeiro desenvolvimento é um crescimento econômico que se traduz em melhoras nos níveis social e ambiental.
Não acredito que o Brasil seja um país predestinado a atrair um grande número de turistas estrangeiros – a não ser os nossos vizinhos argentinos. Acho que o Brasil está longe para o turista americano que quer se bronzear bestamente.
O Caribe e o México estão mais próximos. Para os europeus, o sul do Mediter-
râneo está mais próximo. E tem os países asiáticos, que são incomparavelmente mais baratos. Portanto, não acredito na aposta sobre hotéis cinco-estrelas. Em compensação, acho que um país de 170 milhões de pessoas tem um enorme potencial turístico nacional. Mas, outra vez, turismo significa várias coisas, como uma pessoa de boa renda que vai para um hotel, ou um jovem com mochila que procura uma pousada. Ou pode ser turismo social, como a organização de colônias de férias por sindicatos. E mais: não haverá turismo de grandes distâncias se a passagem aérea continuar nesse preço. A insistência do turismo como uma grande fonte de emprego me parece excessiva. Eu gostaria de ver um bom estudo honesto sobre os empregos do turismo.