Correndo no meio-de-campo, Chico Buarque de Hollanda passou pelo zagueiro e recebeu a bola lançada
por Vinícius França, seu empresário
e centro-avante da equipe. Com intimidade, acalmou a redonda e chutou rasteiro, à direita do goleiro. Foi um dos mais belos gols da partida em que o Polytheama, time de peladas criado há 25 anos, venceu por 6 a 5 uma equipe mista. Aos 60 anos completados no sábado 19, o compositor, cantor, escritor e dramaturgo provou no jogo da segunda-feira 14 que ainda mantém a forma de um artilheiro que tem no currículo futebolístico a marca de três mil gols, segundo a discutível contabilidade dos peladeiros. Em campo, Chico também exercita um humor que o público desconhece. Não raramente, ele pode ser visto tremendo o corpo todo para fingir medo diante de um adversário, ou comentando ironicamente quando a bola é chutada sobre a rede de proteção: “Eu não disse que 17 metros não eram suficientes?”

Ao final da recente partida, a cervejinha reuniu os colegas que jogam religiosamente às segundas, quintas e sábados. Chico não estava na roda. Às vésperas do seu aniversário, foi um dos primeiros a sair, mesmo tendo certeza que ali estaria livre do fatídico Parabéns pra você, como comenta Ruy Faria, ex-vocalista do MPB4 e atacante do Polytheama. “A turma sabe que não é o estilo dele.” E não é mesmo. Procurado por ISTOÉ para falar sobre o assunto, ele respondeu: “J’aime Paris au mois de juin” (eu amo Paris no mês de junho), disse, com seu humor implícito, sugerindo que estaria solitariamente recolhido na Cidade Luz, onde mantém um apartamento para os momentos – constantes, aliás – de exílio verbal. Na verdade, Chico está mesmo é se divertindo com a especulação em torno do seu aniversário, pois é muito provável que drible a todos e fique no Rio de Janeiro ou na sua casa de Petrópolis. “Não vejo a menor graça em fazer 60 anos”, propagou ele aos curiosos de plantão.

Entrevistas – Só que o Brasil não pensa assim. Nas semanas antecedentes ao aniversário, ele descartou 120 pedidos de entrevistas e algumas homenagens. Em função da data, também escapou da badalação à volta dos trabalhos recentes que levam sua marca – o best seller Budapeste (160 mil exemplares vendidos) e o premiado filme Benjamim (90 mil espectadores) – e dos eventos e lançamentos de livros e discos, relembrando sua importância na música popular brasileira. Esperto, para não deparar com jornalistas, Chico ainda descartou as caminhadas matinais no calçadão do Leblon, zona sul do Rio.

Há quem diga que a efeméride não é a causa única da recusa em dar entrevistas. Ele quer evitar opiniões sobre o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, para quem fez campanha. Da última vez que tratou de política, reclamou que foi mal interpretado ao dizer que nem o próprio Lula deveria estar gostando do governo. Carlinhos Vergueiro, cantor, compositor e também peladeiro, duvida que ele esteja se esquivando do debate. “Bobagem, Chico não é de se omitir.” Bem, Chico não fala sobre Lula, mas Lula fala sobre Chico, fazendo coro às homenagens. “Na sua geração, ele representa a mais perfeita união do talento com o compromisso do artista com seu povo”, disse o presidente a ISTOÉ. É a certeza de pessoalmente encarar elogios superlativos como este que levou o compositor a se teletransportar, seja para Paris, seja para Petrópolis. Sua implicância, no entanto, não é só com aniversários, como segreda a filha, a atriz Silvia Buarque. “Ele não gosta de datas comemorativas, Natal, réveillon, essas coisas.”

Até mesmo quando está na capital francesa, que ele tanto adora, o recolhimento é quase total. “Meu pai tem poucos amigos por lá”, conta Silvia. Nos últimos cinco anos, quatro aniversários foram passados em Paris. Seu refúgio é um pequeno apartamento de quatro cômodos no quarto andar de um prédio que, apesar de antigo, é mais moderno que os imóveis vizinhos, datados da Idade Média. Fica no Marais, bairro charmoso onde moram personalidades como o sociólogo Edgar Morin e o ex-ministro da Cultura da França, Jack Lang. O traçado sinuoso de suas pequenas ruas mantém-se como há 300 anos. “Paris é aconchegante, pode-se andar de olhos fechados”, definiu Chico na entrevista ao cineasta José Henrique Fonseca, no DVD As cidades. Talvez por sentir-se tão à vontade é que ele aterrissa na cidade quando vive momentos cruciais. Em fevereiro de 1997, pouco depois de se separar da atriz Marieta Severo, com quem viveu 30 anos, estava no Marais, jantando no restaurante Miravile. No ano passado e no anterior, usou o apartamento para escrever uma parte de Budapeste. Munido de óculos de leitura, era visto à sacada do apartamento, estudando o mapa da capital húngara, que, como se sabe, nunca visitou.

No Marais, o zelador de seu prédio, o português José Vaz, 52 anos, o define como “um gentleman”. Vaz estava em Portugal em abril de 1974, época da Revolução dos Cravos que pôs fim à ditadura salazarista. “É linda a música que Chico fez em homenagem à revolução”, elogia Vaz, referindo-se à canção Tanto mar, cuja execução foi proibida no Brasil pelos militares. Como é praticamente desconhecido em plagas francesas, o autor de A banda pode tranquilamente ser flagrado nas redondezas comprando uma baguete na padaria da esquina das ruas St. Paul com St. Antoine ou, algumas raras vezes, no Bar de Jarente, com simpáticas mesinhas na calçada. Também pode surgir em visita a Les Bouquinistes, barraquinhas de livros à beira do rio Sena. Mas seu ponto preferido é o restaurante L’Enoteca, casa de vinhos italianos onde geralmente come um risoto. O local é frequentado por gente de esquerda, como o próprio dono, Gianni Mainardi, que deixou a Itália há 15 anos. “Quando Chico vem aqui, imaginamos formas de criar um mundo melhor”, define Mainardi. Segundo o restaurateur, apenas um assunto o mobiliza mais que as desigualdades sociais. “Ele é apaixonado por futebol.”

Chico e Mainardi se conheceram há 13 anos. Foram apresentados pelo casal de escritores Jorge Amado e Zélia Gattai, que eram seus vizinhos. “Não acredito
que ele esteja fazendo 60 anos”, brinca Zélia, viúva
de Jorge. “Está mentindo a idade para mais.” Sua filha, Paloma Amado, é outra admiradora. Participante
da mais nova rede de relacionamentos da internet, o Orkut, Paloma integra um grupo de duas mil pessoas cujo principal tema de discussão é justamente Chico Buarque. Paloma não escreve muito. Prefere ler o
que os outros discutem. “Tenho um contato mais ou menos próximo com ele e poderiam achar que sou metida a besta”, diz.

Desejado pelas mulheres, fazendo com que cada um de seus raros shows se transforme em eventos, o compositor que tem trocado a música pela literatura acrescentou outras mudanças de hábito ao seu cotidiano. Controlou o vício do fumo – de um maço inteiro passou a fumar cinco ou seis cigarros diários –, trocou o uísque pelo vinho e tem evitado a boêmia. “Não preciso mais tomar uísque para conversar com os amigos. Agora é restaurante, e não bar”, disse ele à jornalista Regina Zappa, autora do livro Chico Buarque: para todos. Talvez pela reclusão exigida pelo ofício de escritor, ele esteja ficando mais tempo no seu apartamento no Leblon, localizado numa tranquila rua sem saída. Ali, na sala adornada de fotos antigas nas quais aparece ao lado de Tom Jobim, ficam o piano e o violão, um tanto abandonados, pelo menos enquanto acompanha os trabalhos de tradução de Budapeste – os direitos do livro já foram vendidos para 15 países. É grande a distância do lançamento de seu último disco de estúdio, de 1998. “Talvez a música popular seja uma arte de juventude”, justificou ele, em entrevista ao site do jornalista Geneton de Moraes Neto. “Quando você tem 20 anos, tem um baú de músicas inéditas. Depois, as músicas vão escasseando. Você fica mais exigente.

Canções – Lentamente, contudo, ele esbarra nas
pautas e notas musicais. Tem à sua espera um pu-nhado de canções enviadas por autores que lhe pedem uma letra. Entre elas, uma relíquia: a melodia criada
por Tom Jobim, para a qual o compositor decidiu não escrever nenhum verso. “Não tem sentido, o Tom não está mais aqui.” A verdade é que seus flertes com a música têm sido esporádicos. Há dois meses, partici-pou de uma happy hour no apartamento da atriz Maria Paula e do músico João Suplicy, seus vizinhos de pré-
dio. “O Chico chegou todo simpático, João mostrou umas composições e ele ficou cantando com a gente
um tempão”, conta ela. Recentemente, participou dos CDs de Carlinhos Vergueiro e da portuguesa Eugénia Melo e Castro, que está gravando um CD recheado apenas de canções assinadas por Chico, sem parceria. Timidamente, novos trabalhos começam a surgir. Na última semana, numa rara inversão de funções, Chico entregou a José Miguel Wisnik uma melodia para que
ele colocasse letra.

A expectativa em relação aos seus próximos trabalhos musicais é saber se vão manter a linha dos discos mais recentes. O jornalista e escritor Humberto Werneck – autor do saboroso livro Chico Buarque – letra e música, lançado pela Companhia das Letras em 1989 – avalia que, depois de o compositor se ver livre do fardo dos temas políticos, sua música está mais sofisticada, sua letra mais elaborada. Quando ainda fazia críticas veladas à ditadura, Chico recebeu de Glauber Rocha o apelido de Errol Flynn, numa alusão ao ator de cinema que interpretava heróis de capa e espada. Nos anos de chumbo, entretanto, nem tudo eram elogios. Em 1968, no IV Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, ele foi vaiado pela platéia adepta dos tropicalistas e chamado de “superado”. Trinta e seis anos depois, Gal Costa, a musa do movimento, exorciza as diferenças. “Que bom que Chico continuou no caminho que achava o certo. O que é moderno? O que eu prezo é a boa música.”

Mas entre os nós do passado, o artista ainda tem um para desatar. Ele não sabe se está vivo ou morto um meio-irmão nascido na Alemanha de um relacionamento do pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda (que decidiu abolir um dos “eles” do nome), anterior ao casamento com Maria Amélia. “Uma vez, quando fui a Berlim, tinha a impressão de estar vendo um irmão sempre em alguma parte. Alguém que pudesse parecer comigo ou com meu pai”, contou Chico recentemente. Chegou até a procurar o nome do irmão – que ele não revela – nas listas telefônicas da capital alemã. Não teve sucesso. Se tivesse, talvez encontrasse um motivo bastante forte para comemorar os 60 anos que ele quer esquecer, mas os fãs insistem em lembrar, muito para agradecê-lo pelo inquestionável valor da sua obra