Uma das coisas mais fáceis de encontrar hoje no Brasil é alguém insatisfeito com seu plano de saúde. Já virou assunto comum ouvir histórias de pessoas que tenham passado por problemas no relacionamento com as operadoras. Sem contar com um sistema público de saúde de qualidade, os brasileiros que podem pagar um plano estão à mercê das empresas privadas. São 45 milhões de usuários que dispensam em geral boa parte de sua renda mensal para receber um tratamento que deveria ser superior ao oferecido pelo governo. Mas as conversas do dia-a-dia e os números de serviços de defesa do consumidor mostram o contrário. De acordo com o Procon de São Paulo, por exemplo, os planos são os campeões de queixas no setor de saúde. Só no ano passado, foram 3,6 mil reclamações. Na Comissão de Defesa do Consumidor da Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo, as confusões entre usuários e as empresas são os casos mais frequentes. Por lá, atendem-se em média 30 conflitos por mês. São clientes furiosos com aumentos que consideram descabidos e pacientes desesperados à procura de autorização para a realização de algum procedimento ou exame, entre outros problemas.

Há três semanas, mais um capítulo dessa conturbada história foi ao ar. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão do governo que fiscaliza planos e seguros de saúde, iniciou uma campanha – trazendo como protagonista o conceituado médico Drauzio Varella – para informar os usuários com contratos firmados antes de janeiro de 1999 que eles podem migrar para um contrato novo ou fazer uma adaptação no antigo. Naquele ano passou a vigorar a Lei 9656/98. A legislação trouxe várias conquistas para os clientes, como a cobertura de exames e tratamentos que antes não eram pagos pelos convênios.

O objetivo da campanha é fazer com que os benefícios sejam estendidos a quem já tinha um plano antes da aprovação das mudanças. O problema é que na prática mais uma vez o consumidor sairá perdendo, pois ele próprio precisará arcar com o custo se quiser ter os mesmos direitos dos usuários que contrataram planos depois de 1999. Por isso, é preciso ter cautela. Alguns advogados especializados recomendam que o usuário deve comparar com atenção o contrato e o custo da mudança para ver se vale a pena. O próprio médico Drauzio Varella reconhece que a propaganda deveria ser mais clara. “A ANS teve boas intenções, mas faltou esclarecer que migrar para o novo plano ou adaptar o contrato é um ato que deve ser feito depois de uma avaliação. A pessoa precisa decidir se isso será bom. Recebi e-mails de gente reclamando exatamente disso. Uma pessoa me contou que se migrasse deixaria de pagar R$ 300 por mês para arcar com R$ 800”, conta. Pessoalmente, o médico já resolveu. “No meu caso, não vou adotar nenhuma das duas opções. Fiz uma avaliação do meu plano e ele atende às minhas necessidades”, afirma o médico. O advogado André Luiz Lopes dos Santos, diretor de Atendimento do Procon de São Paulo, é mais radical. “A migração e a adaptação são absurdas e acabarão excluindo muitos usuários porque os aumentos são altos e inviáveis”, critica.

Nesse dilema entre migrar, adaptar ou não fazer nada, sobra mais confusão para o consumidor. De acordo com especialistas no assunto, no entanto, mesmo se o usuário optar por continuar com o plano antigo, sem mudanças – portanto, sem alguns benefícios, como tempo de internação ilimitado –, ele pode brigar na Justiça para ter os mesmos direitos. “Esse consumidor está amparado pelo Código de Defesa do Consumidor”, afirma o advogado Santos.


Polícia –
O problema é que nem sempre esse processo é tão simples. A Justiça brasileira peca pela morosidade, sem contar que o usuário terá de arcar com os custos de um advogado particular. Ou seja, resolver a questão no tribunal exige tempo, dinheiro e paciência, situações incompatíveis quando a vida de alguém corre risco. Dessa forma, em algumas situações só restam alternativas mais radicais. “Se for necessário, é preciso fazer um boletim de ocorrência e chamar a polícia para ver se a questão é resolvida”, orienta a advogada Joung Won Kim, coordenadora de Atendimento da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/SP.

O presidente da ANS, Fausto Pereira dos Santos, reconhece que o ideal seria que os contratos antigos ganhassem as garantias concedidas pelos que foram feitos após a lei. Porém, uma decisão do Supremo Tribunal Federal do final do ano passado proibiu essa transformação pura e simples. “Por isso, é melhor que esse processo de mudança ou adaptação seja regulamentado pela ANS do que ser conduzido pelas operadoras”, diz. Porém, mesmo com a interferência da agência, as empresas continuaram com poder de decidir aspectos importantes. Um exemplo é o prazo que o usuário tem para decidir se quer ou não migrar. Como a ANS não determina esse tempo, há plano que dá apenas 30 dias para a resposta a partir do recebimento de uma carta informando sobre as transformações. “Mudar o plano da família é algo que precisa ser bem pensado. Trinta dias é muito pouco. A resolução da ANS tem brechas e as empresas acabam abusando”, afirma Lúcia Helena Magalhães, diretora de Atendimento do Procon/SP.

Outro lance que está apimentando ainda mais as confusões envolvendo os planos de saúde é o conflito das operadoras com os médicos. Há anos, eles vinham se queixando dos valores pagos pelas consultas e procedimentos e das restrições impostas pelos convênios à realização de exames e também de procedimentos. O clima ficou tão ruim que, no final de maio, médicos conveniados de diversos Estados resolveram parar de atender a seguradoras e planos. O protesto consiste na recusa em usar o sistema de cartão ou guias de autorização dados pelas empresas. Os profissionais fazem a consulta, desde que o paciente pague R$ 42 (eles oferecem recibos para que os clientes cobrem dos convênios). Hoje, os planos pagam entre R$15 e R$ 24 por consulta. “Na região do ABC paulista, um corte de cabelo varia entre R$ 15 e R$ 50, enquanto uma consulta não passa de R$ 30. É um absurdo”, desabafa a ginecologista Beatriz Freitas de Moura, diretora da Associação Paulista de Medicina Regional do ABC. De fato, receber menos que um profissional que na maioria das vezes não tem curso superior não faz sentido para quem suou tanto para conseguir entrar em uma faculdade, permanecer nela durante os seis anos de curso de graduação e ainda encarar pelo menos mais dois anos de residência médica, em vários casos. O pior é que também esse equívoco acaba respingando no usuário. Por causa da baixa remuneração, os médicos são obrigados a atender o maior número de pacientes para obter um rendimento razoável. Ou seja, o paciente quase sempre é recebido naquela consulta relâmpago, durante a qual fica impossível investigar mais a fundo as causas de suas queixas.

Aumentos – Na opinião dos profissionais de saúde, os valores pagos pelos exames, hospitais, laboratórios e consultas médicas estão completamente desatualizados. As reclamações são baseadas em dados. Um estudo do Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas (Dieese) divulgado em maio mostrou que os planos de saúde tiveram os preços reajustados em 248,77% entre janeiro de 1997 e abril de 2004, enquanto o ICV (índice de custo de vida) no período atingiu 72,63%. No mesmo período, os exames de laboratórios aumentaram 14,54% e os hospitais reajustaram seus serviços em 48,84%. E tem mais: segundo o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, os preços das consultas pagas pelos convênios estão há dez anos sem reajuste. “Não podemos ficar à mercê das empresas. Falamos em termos médicos e eles falam em lucro de acionistas. Não dá para ser assim”, diz o médico Eleuses Paiva, presidente da Associação Médica Brasileira. Os médicos pedem que as empresas paguem R$ 42 por consulta.

Os especialistas reivindicam também que seja implantada a tabela de Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos (CBHPM), feita pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e pela Associação Médica Brasileira. Ela atualiza a lista de procedimentos realizados pelos especialistas e cria uma nova lógica que organiza cerca de 5,4 mil procedimentos por níveis de complexidade e valor. Trata-se, de fato, de algo bem importante. Hoje, há empresas trabalhando com listas autorizadas de procedimentos definidas há mais de dez anos. Mas, de lá para cá, muitos outros recursos foram adicionados ao arsenal da medicina e não incluí-los no rol do que pode ser feito pelo paciente é privar o consumidor desses avanços. “Esta situação é complicada. Desde a década de 60, quando surgiram os primeiros planos, a ciência já teve vários avanços e as empresas não conseguem oferecê-los aos consumidores”, afirma a advogada Rosana Chiavassa, de São Paulo, especialista na área de saúde privada.

Procedimentos – O movimento médico tomou conta de todo o Brasil. Alagoas, Amapá, Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais e Rio Grande do Sul são alguns dos Estados nos quais os profissionais participam do protesto contra os planos. De acordo com a Associação Médica Brasileira, por exemplo, os médicos do Espírito Santo decidiram em assembléia na terça-feira 15 que irão cobrar dos planos R$ 42 pela consulta a partir de 1º de julho se o convênio for do tipo que prevê reembolso para o paciente. Se as operadoras não regularizarem o pagamento, o descre-
denciamento será em massa. A união dos profissionais está dando alguns resultados. Na Bahia, uma liminar obrigou as seguradoras Sul América e Bradesco a pagar aos médicos conforme os valores da CBHPM. E o sistema da Unimed do Brasil já concordou em adotar a nova tabela de procedimentos e pediu até dezembro para se adequar aos novos parâmetros.

Na terça-feira 15, mais de mil médicos, entre eles Edson Andrade, presidente do CFM, foram à capital federal discutir a situação com a Frente Parlamentar de Saúde, formada por 237 deputados e 26 senadores e coordenada pelo deputado Rafael Guerra (PSDB-MG). “Estamos preocupados em resolver essa situação”, conta o deputado Guerra. Durante o encontro, políticos e médicos trocaram idéias sobre um projeto de lei do deputado Inocêncio Oliveira (PFL/PE) que prevê a implantação da tabela de procedimentos e um reajuste anual dos honorários pagos aos médicos conveniados, regulamentado pela ANS. O parlamentar pernambucano propõe ainda a formação de um conselho constituído por entidades médicas, de defesa do consumidor e representantes das empresas, entre outras, para intervir em caso de discordâncias em relação a valores de reajustes e outras questões. Na opinião do deputado Henrique Fontana (PT/RG), vice-presidente da Frente, a idéia é bem-vinda e traz soluções. “Precisamos de iniciativas como essas. Os planos sempre alegam vários argumentos para aumentar as mensalidades, e o consumidor é quem paga”, diz o parlamentar.

As empresas, que estão em negociação com os médicos, argumentam que o valor da consulta pedido pelos médicos é inviável. “Oferecemos R$ 34 para consulta de planos coletivos e R$ 31 para atendimentos de planos individuais”, conta Otelo Correa dos Santos Filho, diretor da Federação Nacional de Seguradoras. O presidente da Associação Brasileira de Medicina de Grupo, Arlindo de Almeida, reconhece que os preços dos planos estão ficando pesados para o consumidor, mas afirma que as empresas não conseguem arcar com os gastos dos atendimentos sem repassá-los ao usuário. “Muita gente está desistindo de ter um plano. Se a mensalidade aumentar, será pior ainda. No entanto, realmente está difícil. Nosso custo é alto”, diz.

De fato, na opinião do médico Marcos Ferraz, coordenador do Centro Paulista de Economia da Saúde, da Universidade Federal de São Paulo, o Brasil vive hoje uma crise no sistema privado de saúde. “Há tantos planos falindo quanto pessoas sem cobertura para procedimentos e médicos mal remunerados. É preciso organizar esse setor e saber aplicar os recursos médicos com mais inteligência”, afirma.