"O Vaticano e o papa João Paulo II são problemáticos. Esse pontífice é sumamente autoritário. Nossa igreja, originalmente, era uma igreja de congregação, democrática, mas desde os tempos medievais temos um sistema autoritário.” As frases contundentes ditas a ISTOÉ nesta entrevista sobre a Igreja Católica e o rumo das religiões é de alguém que conhece muito bem o assunto. O padre suíço Hans Küng é um dos maiores e mais polêmicos teólogos contemporâneos. Aos 76 anos, Küng, que faz jubileu de ouro na vida eclesiástica, foi consultor teológico do Concílio Vaticano II (1962-1965), que começou sob o papado de João XXIII. O teólogo, literalmente, não tem papas na língua. Ele foi repreendido várias vezes pelas autoridades episcopais por causa de seu livro A Igreja (Church-1967). Em 1979, Küng foi proibido pelo Vaticano de lecionar teologia por questionar doutrinas tradicionais do catolicismo como a infalibilidade do papa. Hoje ele voltou a ter boas relações com a Igreja, mas não deixou de fazer suas críticas. Por suas idéias progressistas sobre a ética e caminhos para chegar à paz, Küng é admirado e respeitado por várias autoridades no mundo, como o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan. Ele também tornou-se conselheiro de grandes líderes, como o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, e o presidente egípcio, Hosni Mubarak. O teólogo prega que a única solução para a paz é o entendimento religioso, dizendo que “não haverá paz entre as nações enquanto não existir paz entre as religiões”. Em seu novo livro, Religiões do mundo – em busca dos pontos comuns (editora Versus), Küng sustenta que existe uma urgência em entendermos as similaridades das religiões e minimizar as diferenças entre elas. Presidente da Fundação de Ética Global em Tübingen, na Alemanha, ele condena veementemente a guerra contra o Afeganistão e o Iraque e afirma que o presidente americano George W. Bush é o pior exemplo de cristão no mundo.

ISTOÉ – Em seu encontro com o presidente americano George W. Bush no Vaticano, no sábado 5, ao receber a Medalha da Liberdade do Congresso dos Estados Unidos, o papa João Paulo II pediu que fosse apressada a transferência de poder aos iraquianos e “a ativa participação da comunidade internacional, e em particular da ONU, para que o Iraque recupere rapidamente sua soberania em condições de segurança”. O sr. é um crítico feroz do papa. Como analisa essa declaração?
Hans Küng

Sou muito a favor da política de paz de João Paulo II no campo internacional, principalmente em relação ao assunto tratado com o presidente americano. Os EUA devem mesmo fazer a transferência de poder aos iraquianos. Mas está é apenas uma parte do discurso político do papa. Nas questões domésticas, ele continua não dando respostas satisfatórias. Ele esteve na Suíça recentemente para um encontro dos jovens cristãos e não respondeu a demandas importantes do catolicismo. Eu e muitos católicos não acreditamos na infalibilidade de João Paulo II. Eu o vejo repleto de contradições. Publiquei o livro Igreja por causa do que o então papa Paulo VI dizia sobre o controle de natalidade e o uso a pílula. Até hoje, não obtive respostas a estas questões. Na Espanha, em 1960, cerca de 99% dos católicos se consideravam religiosos. Hoje esse número é de apenas 33% e caiu ainda mais entre os jovens. As principais razões para isso é que a Igreja Católica está cada vez mais rica, mais poderosa e controla cada vez mais a moralidade sexual de seus seguidores. João Paulo II prejudica muito a igreja de nossos dias. Mas ele tem um lado positivo, que é falar sobre as reformas na América Latina, ser contra a guerra do Iraque e a do Afeganistão. Para se ter um balanço das ações do pontífice, ele é muito ruim nas questões domésticas, mas muito bom nas questões internacionais.

ISTOÉ – As críticas que o sr. faz são dirigidas contra João Paulo II ou o Vaticano? Porque se o papa muda, as regras do Vaticano permanecem.
Hans Küng

Ambos são problemáticos. Nós temos o mesmo sistema na Igreja Católica desde a Idade Média. Nossa igreja, originalmente, era uma igreja de congregação, democrática, mas desde os tempos medievais temos um sistema autoritário. E a Cúria serve ao papa assim como o papa serve à Cúria. Nós nem temos uma eleição papal. Os cardeais são apontados pelo papa e mais tarde elegem o próximo papa. Acredito que muitos querem mudanças. Quando eu falo muitas pessoas, eu vejo as pesquisas. No Brasil, os católicos também querem reformas. A maior parte dos católicos é a favor da pílula, do aborto e contra essa ostentação do Vaticano. Outra coisa: a camisinha é boa para combater a Aids. A maior parte das populações gostaria de ver o envolvimento do clero, dos intelectuais contra esse sistema totalitário do Vaticano e de ver o papa ser eleito por membros eleitos de diferentes países. E não eleito por cardeais apontados pelo próprio papa.

ISTOÉ – Quais serão os grandes desafios do próximo papa?
Hans Küng

O próximo papa deveria seguir as linhas de João Paulo II quanto às rela- ções internacionais, de trabalhar conjuntamente com as Nações Unidas em busca de uma nova ordem. No aspecto doméstico, precisamos de uma nova ordem eclesiástica. No meu pequeno livro História da Igreja Católica, escrevi um capítulo sobre o cristianismo dizendo que desde o século XI estamos sob um sistema totalitário, absolutista, clerical, com domínio do clero e de outras identificações
de um sistema medieval. O próximo papa deveria convocar um conselho para debater esses problemas, hoje banidos de qualquer discussão.

ISTOÉ – Qual o motivo da evasão dos católicos da igreja?
Hans Küng

É isso que estou tentando dizer sobre a Igreja Católica. Hoje ela não é hospitaleira. E tenta dizer exatamente o que as pessoas têm que fazer quando não tem competência para tal. Eu não acredito que o papa seja competente para dar conselhos aos casais sobre o que eles fazem em seus quartos. O papa não tem que dizer aos jovens como se vestir ou como se comportar. Ele deveria olhar para a história de Jesus, e não viver de uma maneira egocêntrica. Ver que com Jesus não houve egocentrismo, e essa mensagem deveria ser repassada aos nossos jovens. Dentro do Vaticano deveria haver uma discussão para que a Igreja Católica fosse mais agregada, democrática e uma igreja de irmãos e irmãs, como foi um dia. E mais: com esse pontífice, nós perdemos nossa juventude e as mulheres. Porque esse papa tomou várias decisões contra as mulheres, como o controle da natalidade, o divórcio. Se não houver entendimento para as mulheres divorciadas e as atitudes sobre a sexualidade delas, perderemos ainda mais jovens que não querem intromissão em suas questões sexuais.

ISTOÉ – Como alcançar o diálogo entre as religiões, como o sr. fala em seu livro, se o radicalismo cresce em várias partes do mundo, inclusive entre as pró- prias religiões?
Hans Küng

Nós temos muitos líderes religiosos que não
têm a coragem de se manifestar contra seus governos. É absolutamente necessário, por exemplo, que em Israel os líderes de todas as religiões se manifestem não apenas a favor da paz. O que eles deveriam fazer é se manifestar contra os métodos do governo de ocupação do país de uma maneira que vai contra a moralidade e todas as leis internacionais. O governo israelense deveria mudar de rumo e escutar seus líderes religiosos. O inverso é verdadeiro. Os líderes árabes muçulmanos e árabes cristãos deveriam dizer aos seus governos que eles devem ser mais democráticos, fazer algo realmente por suas populações, e não seguir suas vontades de maneira egoísta, trabalhando apenas para acumular dinheiro. Na Arábia Saudita, por exemplo, muita coisa deveria ser mudada. A posição das mulheres sauditas é ainda pior que a das católicas do Ocidente.

ISTOÉ – O presidente George W. Bush é um cristão que prega a libertação dos povos. Como o sr. o vê?
Hans Küng

O sr. Bush é um péssimo exemplo de como a religião é usada hoje em
dia. Ele abusou do cristianismo. Desde o início de seu governo, antes mesmo
do 11 de setembro, ele tinha em mente atacar o Iraque e queria assim fazê-lo pelo petróleo, para os EUA se estabelecerem no Oriente Médio. Isso pode ser lido nos papéis de Washington. Felizmente, temos vários outros exemplos de como o cristianismo age em favor da paz.

ISTOÉ – Como o sr. vê os líderes xiitas no Iraque?
Hans Küng

Os americanos pagam pelos erros que cometeram. É perigoso para
uma potência mundial começar uma guerra contra as leis internacionais e
contra a moralidade cristã. Eles dizem que estão fazendo isso pela democracia, pelos iraquianos, mas, na verdade, eles a fizeram pelo petróleo. Tanto Richard Clarke (ex-chefe do combate ao terrorismo dos Estados Unidos) quanto Colin
Powell (secretário de Estado americano) chegaram à conclusão que estavam errados. Não encontraram as armas de destruição em massa e tudo não passou
de mentiras. Veja o que aconteceu em Falujá, em Bagdá. É necessário dialogar com os líderes religiosos: a solução não pode vir do Pentágono. Não deve ser uma solução militar, mas das autoridades das Nações Unidas, que têm que encontrar uma nova saída. Bush tem que aprender que soluções militares não o ajudam, nem ajudam o país dele. Os cidadãos americanos são pela paz e também querem uma solução pacífica para esse conflito. Foi uma decisão errada invadir o Afeganistão e também foi uma decisão errada invadir o Iraque. O governo americano tem que aprender que cometeu erros colossais nos dois casos.

ISTOÉ – Por que a religião pode ter respostas para a paz?
Hans Küng

Claro que a religião não é o único passo em direção à paz. Há muitas variantes, como a economia, a cultura, mas não há dúvida de que a religião tenha um papel importante, seja no sentido positivo, seja no negativo. No negativo, se você olhar para o Oriente Médio, Paquistão, Índia, encontra líderes religiosos que invocam o ódio e às vezes até legitimam o uso da força em nome de uma religião. E não são apenas os muçulmanos, mas também os cristãos. Veja o exemplo dos Estados Unidos, onde encontramos fiéis a favor da guerra contra o Iraque. O lado positivo é que as verdadeiras mensagens do islamismo, do cristianismo e do judaísmo são pela paz. O que acontece é que não sabemos o suficiente sobre outras religiões, até mesmo sobre as nossas crenças. Existem cristãos que pensam que deveríamos fazer cruzadas contra as outras religiões. E isso vai contra o que Jesus pregava. Jesus era um homem de paz, não de guerra. Existe uma necessidade urgente de conhecermos melhor a nossa religião, assim como outras religiões.

ISTOÉ – O sr. foi proibido pelo Vaticano em 1979 de lecionar teologia. Leonardo Boff, um dos criadores da Teologia da Libertação, depois de ser submetido pela segunda vez à lei do silêncio, renunciou ao sacerdócio. O que aconteceu com a Teologia da Libertação?
Hans Küng

O Vaticano está fazendo de tudo para destruir a Teologia da Libertação. Aponta bispos que são contra a teoria e tenta condenar teólogos. Eles não suportam pessoas como o meu colega Leonardo Boff. Mas apesar disso, muitas das idéias desses teólogos são senso comum no catolicismo: que devemos erradicar a pobreza e as mudanças não vêm apenas pelas transformações políticas, mas também pelas religiosas. Não precisamos mais de livros. Precisamos é continuar a colocar essa teoria na prática. Não podemos mais ficar calados diante da miséria no mundo. Temos que mudar nossa atitude e foi sobre isso que falei na Assembléia Geral das Nações Unidas depois do 11 de setembro. Se antes as pessoas não viam a necessidade de diálogo entre as civilizações, entre as religiões, agora elas sabem que isso é primordial. E para tal, precisamos do apoio de líderes religiosos, ateus e agnósticos.

ISTOÉ – O sr. viu o filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson?
Hans Küng

Não, eu não vi esse filme, porque não sou interessado em crueldades. Jesus tem uma mensagem muito humana, de ajudar os outros, e não dá para nos concentrarmos apenas na Paixão de Cristo. Claro que ela é um fato, um evento cruel, mas o mais importante é a mensagem de Cristo, o que ele dizia. Esses filmes usam a figura de Jesus para levantar altas quantias de dinheiro.