Num futuro breve, quem manusear uma nota de
US$ 10 pode estranhar a ausência da efígie de Alexander Hamilton, que ocupa o centro da cédula desde 1923. Em seu lugar – se for aprovado o
plano de deputados republicanos no Congresso americano – poderá estar o indefectível sorriso de Ronald Reagan. O corpo do ex-presidente (1981-89), falecido no sábado, 5, aos 93 anos, foi postado no salão da biblioteca que leva seu nome, em Simi Valley, na Califórnia. As inúmeras homenagens saíram do Estado que ele governou entre 1967 e 1975 e culminaram na capital americana. A idéia de dar, ao pé da letra, valor de face ao morto recente beira a bobagem e o exagero. Afinal, Hamilton foi o primeiro secretário do Tesouro do país, e como tal considerava sagrado o equilíbrio orçamentário. Reagan, ao contrário, ao terminar seu mandato na Casa Branca, em 1988, deixou o astronômico déficit de US$ 2,6 trilhões. O câmbio de figuras também é desnecessário, pois o legado do velho Ronald está mais presente na vida de seus compatriotas do que o dinheiro vivo. As lembranças cotidianas deixada pela política deste homem vão desde o fim de vários programas sociais estatais, passando pela ascendência surpreendente do conservadorismo cultural intolerante, até a própria existência dos milhares de radicais islâmicos criados graças às subvenções do governo dos Estados Unidos na década de 80.

O próprio presidente George W. Bush pode
ser filho natural de Barbara e George H. Bush, mas seu DNA político foi herdado diretamente de Ronald Reagan. A começar pela teoria
de “economia de cascata”, que prega
o corte generalizado de impostos – e, por mera lógica aritmética, favorece as camadas mais ricas da população – para servir de motor à prosperidade, quando o dinheiro economizado com as menores taxas de imposto de renda
for reaplicado no setor produtivo. Segundo
essa lógica, o resultado seria a abertura de novas vagas para a mão-de-obra, e consequentemente, mais gente ganhando salários que incentivam o aumento do consumo. Ou seja, “todo mundo cresce caso o governo deixe o dinheiro no bolso do contribuinte”, como explica o economista conservador Richard Molley. Um dos efeitos negativos desta política é a diminuição na receita fiscal, o que leva ao corte de programas sociais do governo, dos quais boa parte da população menos privilegiada depende enormemente. E como se viu na era Reagan e agora é reprisado nos tempos de W. Bush, no final das contas, é enorme o déficit orçamentário.

Mas o ato de transformar Reagan em moeda corrente demonstra de modo
palpável a veneração do povo americano àquele que foi seu 40º presidente.
Elevado à condição icônica, agora, são atribuídos a ele milagres que, na verdade, nunca ocorreram. Reagan e seu legado deixam a esfera da realidade e ganham proporções mitológicas. Exemplo: “Ronald Reagan presidiu uma revolução sem precedentes no país. Foram suas ações de política econômica que causa ram o boom de crescimento que vimos nos anos 90”, disse a ISTOÉ o republi cano
e ex-presidente da Câmara dos Representantes Newt Gingrich. Uma afirmação
que bate de frente com o histórico dos fatos. A explosão econômica dos anos
90 foi resultado, principalmente, de avanços tecnológicos importantes feitos
durante a década de 70, e que finalmente passaram a ser aplicadas 20 anos
depois. Gingrich, um tecnomaníaco sabe disso, mas prefere jogar purpurina na estátua de seu herói Reagan.

Fim do comunismo – O mito da explosão econômica – que convenientemente deixa de lado o crack da Bolsa de 1987 – faz parte de uma lista de fantasias que agora adornam a biografia do ex-presidente. Uma delas é a que Reagan acabou com o império da União Soviética e com o comunismo no mundo. Com a palavra Mikhail Gorbachev, ex-presidente soviético, criador da política de liberação político-econômica no país e adversário de Reagan no comando do mundo: “O esfacelamento do império soviético se deu através da falência econômica do regime comunista. Leonid Brezhnev (1906-82) reverteu todas as esperanças de reformas pretendidas por (Nikita) Khrushchev, a quem sucedeu por meio de um golpe em 1964. Na época, Brezhnev reinstalou o enorme aparato burocrático de Estado, escancarando as portas da corrupção, inépcia e erros administrativos. Quando ele morreu, a União Soviética já estava na bancarrota, devido aos gastos exagerados nos setores de defesa e do programa espacial. Some-se a isso a custosa e trágica guerra que ele nos envolveu no Afeganistão. Ronald Reagan – através da corrida armamentista que liderou, e com as ações de ajuda aos guerrilheiros afegãos – apenas apressou um processo de decadência soviética que já estava selado”. Ou seja, a guerra fria não foi tanto uma vitória americana, mas uma derrota auto-infringida pelos soviéticos.

A retórica belicista que permeou a era Reagan durante a guerra fria, porém, não gerou atos de heroísmo nos campos de batalha. De concreto, as únicas vitórias militares deste presidente foram a invasão da ilha de Granada em 1983 e o bombardeio da residência do líder líbio Moammar Kadafi em 1986. Em ambas as ocasiões estava sendo reforçada a idéia de “ação preventiva” contra países hostis – que se transformaria em doutrina política do presidente W. Bush. O episódio militar mais marcante do comandante-em-chefe Ronald Reagan foi a retirada apressada de soldados americanos que ele próprio havia mandado para Beirute, no Líbano, depois que um atentado terrorista matou 240 marines, implodindo seu quartel-general. Vários analistas políticos acreditam que a debandada foi interpretada pelos radicais islâmicos como sinal de fraqueza dos EUA e um incentivo para novos ataques.

O governo Reagan ainda teria de enfrentar mais problemas com os fundamentalistas muçulmanos. Numa operação secreta entre 1985 e 1988, vários carregamentos de armas (incluindo dois mil mísseis) foram enviados pelos EUA ao Irã, em troca da libertação de americanos sequestrados no Líbano pelo grupo Hezbollah (patrocinado pelos iranianos). Isso, a despeito das sanções comerciais impostas legalmente ao país dos aiatolás pelo Congresso americano. Além da liberdade dos cativos, US$ 16,1 milhões foram parar em contas secretas do governo americano para operações dos serviços de inteligência. Um dos principais receptores desta verba seria o grupo “Contras” – guerrilheiros que tentavam derrubar o governo sandinista da Nicarágua. Em 1987, o escândalo estourou no país e o Congresso ativou uma comissão parlamentar de inquérito que condenou alguns membros do governo, mas poupou o presidente. Os dois últimos anos de Reagan na Casa Branca foram ofuscados por este episódio.

O 40º presidente americano carregou para o túmulo o apego à fantasia – o projeto de defesa contra mísseis chamado de Guerra nas Estrelas vem à memória como exemplo –, que deixa como legado juntamente com seu corpo na sua biblioteca californiana. Como ator, ele fez 53 filmes – entre os quais, Bedtime for Bonzo, onde foi coadjuvante de um chimpanzé. O macaco, diga-se, era o astro principal. Simpatia nas telas, simpatia no maior cargo político do país. Marca que ultrapassa qualquer tentativa de cópia pelo atual ocupante da Casa Branca. O filósofo francês René Descartes (1596-1650) propôs: “Penso. Logo existo.” Seguindo esta definição de consciência, Ronald Reagan começou a deixar a existência em 1994 – quando anunciou ao mundo que estava com a doença degenerativa Alzheimer. O corpo que se enterra agora já havia perdido suas características marcantes. Mas o legado do homem se mantém vivo. A viúva Nancy Reagan passou a ser uma das maiores defensoras das experiências com células-tronco para a cura de moléstias, em desafio à posição do presidente George W. Bush. Uma consequência direta da influência de Reagan.