16/06/2004 - 10:00
Rio de Janeiro, madrugada de 22 de outubro de 2001. Três homens de roupas escuras e luvas cirúrgicas rompem a grade que separa o Parque de Material Bélico da Aeronáutica – PAMB – da favela do Barbante, na Ilha do Governador. Já no interior do território militar, os três acendem uma lanterna e caminham em direção a um enorme galpão onde estão armazenadas centenas de armas de grosso calibre para uso exclusivo das Forças Armadas. Sem deixar impressões digitais, arrombam o
telhado do galpão e usam uma corda para descer até os armários onde ficam estocadas as armas.
Em poucos minutos, os três saem pelo mesmo caminho carregando cinco fuzis HK-33, sete submetralhadoras nove milímetros, um rifle Colt 556 e mais de 100 cartuchos de munição. Um mês depois, as investigações feitas pela Aeronáutica indicam que um cabo e dois soldados facilitaram a entrada dos bandidos. O cabo deu permissão para que os soldados abandonassem os postos de guarda e os três simplesmente saíram do quartel enquanto as armas eram roubadas sem nenhuma resistência. As investigações também indicaram que os três eram ligados a traficantes da favela do Dendê, área sob domínio do Terceiro Comando. Na Justiça Militar, porém, o caso acabou arquivado por falta de provas.
Rio de Janeiro, tarde da segunda-feira, 7 de junho de 2004. Nove agentes da Polícia Civil são recebidos a tiros por traficantes em um beco da favela da Vila Vintém, durante uma varredura em busca de armas. Após o tiroteio, os policiais encontram um arsenal com nove fuzis HK-33, quatro pistolas, 30 granadas, três silenciadores, 26 carregadores, dez mil cartuchos de munição e um colete à prova de balas. Entre os fuzis, três foram identificados rapidamente. Eles faziam parte das armas roubadas da Aeronáutica na madrugada de 22 de outubro de 2001. A apreensão das armas de uso militar em poder dos traficantes da Vila Vintém é apenas a mais recente comprovação de um fato alarmante: enquanto as autoridades debatem a conveniência ou não de uma intervenção do Exército na segurança pública do Rio de Janeiro, o tráfico se infiltra nas Forças Armadas.
“Nos últimos cinco anos, tem sido frequente o desaparecimento de armas de longo alcance e até de bombas e granadas dos quartéis das três forças”, diz o promotor Ailton José da Silva, membro de um grupo de trabalho instituído no ano passado pelo Ministério Público Militar (MPM) para fazer um levantamento das invasões nas unidades militares do Rio de Janeiro. “Não temos dúvida de que os traficantes estão infiltrando recrutas nos quartéis e aliciando soldados. Em todos os casos de desaparecimento de armas há a participação de militares ou de ex-militares que direta ou indiretamente estão ligados a traficantes”, conclui o promotor. Os números levantados pelo MPM revelam que entre o final de 1998 e outubro do ano passado foram extraviadas 145 armas da Aeronáutica, do Exército e da Marinha. Apenas de unidades da Aeronáutica, entre o final de 1998 e maio deste ano, desapareceram 49 fuzis HK-33, 58 pistolas e 11 submetralhadoras nove milímetros.
Prevenção – A maior parte dos roubos se deu no PAMB, nos anos de 2000 e 2001. O Parque, próximo ao Aeroporto Internacional do Galeão, a exemplo de vários outros quartéis do Rio de Janeiro, está cercado por favelas dominadas
por facções criminosas do País. Até 2002, ali estava concentrado 70% do arsenal da Aeronáutica, inclusive explosivos. “Percebemos a infiltração do tráfico entre os recrutas e tomamos todas as medidas para reforçar a segurança”, diz o chefe da Divisão de Material Bélico da Aeronáutica, coronel Machado. Hoje, o PAMB guarda apenas 30% das armas da Aeronáutica e sob uma segurança exemplar.
Os galpões onde estão estocados os fuzis que enchem os olhos dos traficantes estão rodeados de alarmes com sensores infravermelhos e raios de microondas. No interior dos galpões, os armários com o armamento são trancafiados como se fossem a caixa-forte do Tio Patinhas e para chegar a eles é preciso superar verdadeiras gaiolas de aço sem nenhum tipo de emenda. As granadas e outros explosivos são armazenados em espécies de bunkers subterrâneos em uma imensa área de preservação da Mata Atlântica. Nenhum militar tem o poder de, sozinho, desativar toda a parafernália de segurança.
A gota d’água para as mudanças no PAMB ocorreu em 2002. Em março daquele ano, sem que houvesse um único disparo, dois homens invadiram a seção de armamentos e fugiram com cinco fuzis HK-33 e cinco pistolas nove milímetros. O Inquérito Policial Militar (IPM) concluiu que a ação foi facilitada por um sargento, um cabo e dois soldados. Os quatro seriam ligados a traficantes da favela Nova Holanda, no Complexo da Maré. Em 26 de agosto, equipados apenas com um alicate hidráulico semelhante aos usados pelas equipes de resgate para retirar dos destroços as vítimas de acidentes automobilísticos, dois homens invadiram o PAMB, caminharam pela mata usando uma linha para marcar o caminho de volta e sem nenhuma dificuldade abriram um dos galpões. Levaram 15 fuzis HK-33 e cinco pistolas nove milímetros. As investigações chegaram a dois sargentos e três soldados. Um dos sargentos, que teria coagido o resto do grupo, teria ligações com traficantes da vizinha favela do Barbante. Ambos os casos ainda tramitam na Justiça.
Outros alvos – “Merece elogios o empenho dos comandantes militares em aumentar a segurança. Eles estão enfrentando de frente o problema da infiltração do tráfico”, assegura a promotora Cláudia Márcia Luz, coordenadora do grupo de trabalho do MPM. Ela adverte, porém, que essas medidas não são suficientes, pois o crime organizado muda de estratégia conforme a resistência encontrada. De fato, depois que o PAMB se transformou em uma fortaleza, os traficantes resolveram agir em outras unidades. E, embora os quartéis não sejam efetivamente depósitos de armas, neles sempre existe o armamento necessário para a proteção da unidade e para o treinamento militar. O último alvo foi o quartel do Depósito de Aeronáutica do Rio de Janeiro (Darj).
Na madrugada da segunda-feira do dia 3 de maio, o quartel estava às escuras, em razão de um curto circuito provocado na tarde anterior, quando um soldado trocava um disjuntor. Sabedores do blecaute e já equipados com lanternas, cinco homens invadiram o quartel e renderam cinco soldados. Três deles foram amarrados e os outros dois disseram ter se escondido em um matagal dentro do quartel, vizinho a favelas do Complexo da Maré. Com os soldados dominados, os invasores se dirigiram ao depósito onde ficam armazenadas as armas da unidade. Pegaram 22 fuzis HK-33, uma pistola nove milímetros e fugiram em uma Kombi do quartel. A perua foi encontrada pela Polícia Civil horas depois e dentro dela estava um carregador de fuzil pintado com a sigla ADA (Amigos Dos Amigos). As investigações preliminares da Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos indicam que os dois soldados que fugiram para o matagal têm relações com traficantes e um deles seria o responsável pelo curto circuito que deixou o quartel às escuras. Eles teriam agido, segundo a polícia, sob o comando de um ex-sargento que trabalha para traficantes do Morro do Dendê.
A infiltração dos traficantes se estende também aos quartéis da Marinha e do Exército. Há pouco mais de um mês foram condenados dois fuzileiros navais pelo roubo de seis fuzis em uma unidade da Marinha em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Um deles era ligado ao traficante Chuca, um dos líderes do crime organizado na favela do Borel. O esquema foi descoberto a partir da prisão de um soldado que facilitou o roubo. O soldado acabou confessando o crime e todas as suas ramificações. Outros seis fuzileiros continuam sob investigação. A estratégia dos traficantes, no entanto, não se limita ao aliciamento de recrutas. Um rastreamento feito pelo MPM encontrou indícios de que há fraudes em concursos para a entrada nas Forças Armadas. Em 2002, foram flagradas duas pessoas com os gabaritos de uma prova de um concurso para sargento do Exército. Após a quebra dos sigilos telefônicos ficou comprovado que os dois tinham envolvimento com o traficante Celsinho da Vila Vintém.
Solução polêmica – Nas últimas semanas, atendendo a sugestões formuladas
pelo Ministério Público Militar, Exército, Marinha e Aeronáutica estão trocando o armamento usado na guarda dos quartéis. O objetivo é proteger o máximo possível as armas de longo alcance, que mais interessam aos traficantes. “Estamos tomando uma série de medidas paliativas, como trocar as armas usadas nas guardas, descentralizar o armazenamento dos fuzis, mas o importante é discutir alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)”, diz a promotora Cláudia Márcia. Segundo ela, o artigo 247 do ECA proíbe que os comandos militares tenham acesso aos antecedentes dos jovens que se alistam. “Era preciso saber quem está ingressando em nossas Forças Armadas, para assim evitarmos efetivamente a infiltração dos traficantes”, sustenta o promotor Ailton José da Silva. “O tema é bastante polêmico, mas é preciso levantar essa bandeira.” De fato, a proposta é controversa, pois nas três forças, há vários casos de jovens que encontraram nas fardas uma efetiva alternativa ao tráfico e aos traficantes que os cercam nos morros do Rio de Janeiro.