Cansada de ser maltratada pelo padrasto, S.V. tinha 12 anos quando decidiu partir da cidade de Várzea Grande, Mato Grosso, sem destino. Levando apenas o uniforme escolar no corpo, a então estudante pegou uma carona até Rio Branco, capital do Acre, onde conheceu um taxista que lhe fez a proposta irrecusável: trabalho fácil e bem remunerado na Bolívia. Passados três anos, a adolescente, que vendeu a virgindade por R$ 200 a um traficante no município Guayramirin, na fronteira com o Brasil, é uma profissional em fim de carreira. Viciada em drogas e álcool, ela foi encontrada pela reportagem de ISTOÉ na La Magnifica, boate decadente do município boliviano de Riberalta, a três horas de carro da fronteira com o Brasil. Desprezada pelos clientes, S.V., hoje com 16 anos, já é veterana na prostituição e mal ganha para sustentar o vício.

Embora com desfecho menos trágico, as histórias das estudantes amazonenses M.S., 15 anos, e G.S., 16, mostram a mesma realidade trágica. Aliciada por uma cafetina numa escola de Manaus, M.S., após uma breve passagem pela boate Afrodite, em Boa Vista, seguiu no ano passado para Georgetown, capital da Guiana, animada com a promessa de construir fortuna num cassino de luxo. Mas bastaram poucas horas no país estranho para a adolescente perceber que havia sido enganada. Em vez de dinheiro, a cafetina lhe apresentou a conta da viagem. Morena de olhos azuis, a bela adolescente só conseguiu saldar o débito e arrumar algum dinheiro para voltar para casa depois de três meses de trabalho árduo. A vida de G.S. começou a melhorar no início deste ano, quando se mudou para a Venezuela. Trabalhando em boates nos garimpos e nos balneários de Puerto La Cruz e na Ilha Marguerita, banhados pelo Mar do Caribe, ela tem conseguido juntar algum dinheiro. Recrutada também em Manaus, G.S. não reclama da jornada de trabalho na Boate La Maloca, em Santa Elena de Uairén, Venezuela, onde chega a atender até quatro clientes numa noite. Na sexta-feira 26 de abril, a adolescente, que também começou a se prostituir em Boa Vista, se dizia feliz por ter conseguido economizar R$ 1 mil. Com o dinheiro, G.S. planejava passar um feliz Dia das Mães em Manaus com a família.

Rotas de tráfico – Restritas aos Estados e fronteiras da Amazônia, histórias como as dessas adolescentes se tornarão mundialmente conhecidas neste mês, quando será divulgada uma pesquisa financiada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) que apontará o Brasil com destaque entre os países exportadores de mulheres, crianças e adolescentes para a América e Europa. Coordenada no Brasil pelo Centro de Estudos de Referência da Criança e do Adolescente (Cecria), em conjunto com outras organizações não-governamentais, o estudo, elaborado por pesquisadores espalhados por boates da América Latina, mapeou as principais rotas de tráfico de mulheres e adolescentes para prostituição. No Brasil, onde os índices de analfabetismo e evasão escolar são maiores do que em países paupérrimos como o Paraguai, o resultado não poderia ser mais assustador. “A pesquisa mostrará que o tráfico de adolescentes para a Venezuela e outros países da América Latina não é exceção e, sim, a realidade da maioria das meninas pobres da Amazônia, que atravessam por via terrestre as nossas fronteiras, onde a fiscalização é mínima”, afirma o holandês Marcel Hazeu, que coordenou a pesquisa em todos os Estados da Amazônia.

Seguindo os rastros do estudo da OEA, durante um mês a reportagem de ISTOÉ percorreu as fronteiras do Brasil com a Venezuela, Guiana e Bolívia, onde os jornalistas conseguiram infiltrar-se no submundo do tráfico de menores. Um comércio que vem crescendo assustadoramente com a conivência de policiais e de outras autoridades de Estados da Amazônia, que fornecem para as quadrilhas carteiras de identidade com a idade das adolescentes adulterada. Esses documentos falsos permitem que as meninas prostitutas saiam livremente do País. Mas, em fronteiras como a do Brasil com a Venezuela, onde o tráfico de adolescentes começa a assumir ares de legalidade, as adolescentes nem sempre precisam mentir a idade. Lá o comércio de meninas corre solto. A cegueira das autoridades brasileiras e venezuelanas deixa até mesmo os cafetões e traficantes à vontade para dizerem aos jornalistas como ganham a vida.

“Sim, às vezes, eu realmente venho da Venezuela buscar adolescentes e outras mulheres no Brasil”, afirmou a ISTOÉ o traficante espanhol Vitor Ramiro Alvarez, ao ser localizado no restaurante Mineiro, em Pacairama, município de Roraima que faz fronteira do Brasil com a Venezuela. O espanhol almoçava com o representante da quadrilha na Venezuela, o brasileiro Vitor Dias, e com a brasileira Lady Mary. Natural de Porto Velho, Rondônia, Lady Mary, 23 anos, contou que estava de malas prontas para seguir com Alvarez para a Espanha, onde têm sido constantes as denúncias de maus-tratos a mulheres nas boates. Mesmo percebendo que estava sendo gravado, Dias não mostrou nenhum constrangimento em dizer que seu amigo espanhol já havia passado nos balneários do Caribe e na cidade industrial de Porto Ordaz, recrutando adolescentes e mulheres brasileiras. Após o almoço, os traficantes e a brasileira atravessaram o posto da Polícia Federal, onde não havia nenhum policial, e entraram em território venezuelano.

Com a mesma tranquilidade, o português Joaquim Araújo Pires, proprietário da boate La Maloca, em Santa Elena do Uairén, responsabiliza as autoridades brasileiras pelo tráfico de menores. Pelos cálculos de Joaquim, cerca de 80% das prostitutas que trabalham nas boates da Venezuela são brasileiras, o que vem atraindo para o País quadrilhas de traficantes da Espanha e de outros países da Europa. Atendendo à preferência da clientela, a Maloca trabalha exclusivamente com brasileiras, cujas carteiras de identidade causam desconfiança até mesmo no dono da boate. “Sem documento de maior não entra na minha boate. Mas, às vezes, a gente vê que a menina é menor, e o documento dela é falso. Nesse caso, a culpa não é minha, mas sim das autoridades do Brasil, que emitem esses documentos falsos”, se defende Araújo, que se intitula o único dono de boate na Venezuela que não explora as brasileiras.

Fiscal do Ministério da Agricultura na fronteira do Brasil com a Venezuela há mais de 20 anos, o engenheiro agrônomo Luís Cláudio Estrella diz que o número de meninas que são traficadas para a Venezuela se tornou incalculável. De acordo com Estrella, as adolescentes, vindas de Manaus e de outras cidades do Norte do País, atravessam a fronteira em táxi de lotação até Santa Elena do Uiarén por meio da chamada Transmoambeira, uma estrada de terra que passa por detrás dos postos de fiscalização da Receita Federal, da PF e do Ministério da Agricultura. Após uma breve temporada em boates de Santa Elena, as meninas seguem de ônibus e em pequenos aviões para os balneários do Caribe e para as cidades garimpeiras e industriais da Venezuela. Fixado em R$ 1.500, o preço pago pelas quadrilhas para cada menina brasileira levada para a Venezuela e Espanha é assunto corriqueiro no centro comercial da Venezuela, revela o inspetor-chefe da Receita Federal na fronteira, José Silvino Barreiras.

Suborno – “Além do problema de documentos falsos, há ainda a corrupção da Guarda Nacional da Venezuela. É só dar o dinheiro para eles, para as meninas embarcarem tranquilamente no aeroporto rumo aos garimpos”, afirma o taxista Joaquim Caetano da Silva. O motorista tem experiência para falar do assunto. No ano passado, Caetano foi preso pela PF, junto com outros dois taxistas, quando transportava dois adolescentes e cinco mulheres de Manaus para a Venezuela. Foi solto após provar que não tinha nenhuma relação com o traficante venezuelano que havia tomado o seu táxi para levar as mulheres.

Funcionando a todo vapor desde 1995, o tráfico de adolescentes e de meninas da Amazônia para Boa Vista e Venezuela somente veio à tona no início do ano, quando várias mães começaram a denunciar o desaparecimento de suas filhas em Manaus. As denúncias levaram a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente de Manaus a uma quadrilha internacional de traficantes de meninas que atua em Manaus, Boa Vista, Guiana e Venezuela. Quatro pessoas foram indiciadas por tráfico e exploração de menores pela delegada Maria das Graças: os amazonenses Sebastião André Costa e Waldir Nonato filho e as cafetinas Leonor Icassati, a Leo, e Rosilda Maria de Lima, a Mika, donas das boates Afrodite e MC, em Boa Vista, capital de Roraima. Acionado pela delegada, o presidente do Conselho Tutelar de Boa Vista, Antônio Leandro Farias, conseguiu resgatar seis adolescentes de Manaus nas boates das cafetinas. Mantidas em regime de semi-escravidão, onde eram obrigadas a trabalhar duro para pagar o dinheiro da passagem, as adolescentes contam que estavam sendo preparadas para trabalhar na Venezuela e na Guiana.

“O André me enganou. Ele me falou que eu ia ganhar muito dinheiro trabalhando como garçonete. Mas ao chegar na boate ficava presa num quarto escuro onde só recebia comida se atendesse os clientes”, contou a ISTOÉ a estudante P.L., 15 anos, que, a exemplo das demais adolescentes, portava carteira de identidade falsa. Em reunião com o presidente do Conselho Tutelar de Roraima, no mês passado, os donos de boate fizeram uma revelação surpreendente: documentos falsos até hoje são vendidos por policiais em Boa Vista e na Praça do Relógio e no Bar do Castelinho, em Manaus. Respondendo processo em liberdade, as cafetinas continuam a atuar na Venezuela e em Boa Vista, onde até mesmo os frequentadores confessos das 56 boates se dizem revoltados com os maus-tratos praticados contra as adolescentes.

Ameaças de morte – “Antes de ir para a Venezuela, essas coitadinhas são escravizadas nas boates da Mika e da Leo e de outros cafetões. Eu sei disso porque frequento todas as boates”, disse o empresário Armando Carvalho Lima, conhecido como Paçocão, que aceitou gravar entrevista com a ISTOÉ. Longe das garras das cafetinas, as meninas resgatadas de Manaus também continuam longe de fugir do pesadelo. Trabalhando com a mãe numa loja no centro de Manaus, P.L., a adolescente que foi levada por Sebastião André para Boa Vista, passou a ser ameaçada de morte por telefone. Os membros da quadrilha tentam intimidar a adolescente a fim de que ela não preste depoimento em juízo. Mãe de S.L., 16 anos, que foi levada pelas cafetinas até uma boate na Guiana, a costureira Maria de Jesus Lopes também entrou em pânico depois que um homem tentou sequestrar seu filho caçula na tentativa de amedrontá-la.

Em Boa Vista, as pressões não são menores. Viciada em “feijão”, erva seca aspirada pelas crianças viciadas da cidade, S.L., 15 anos, que faz programas esporádicos na Venezuela, está jurada de morte por ter acusado um grupo de policiais da Delegacia de Proteção a Adolescentes de Boa Vista de tê-la violentado. Solitário na luta para acabar com o tráfico de menores e com a prostituição em Roraima, onde os políticos e autoridades locais são os principais clientes das boates que exploram menores, Antônio Leandro Farias também já sofre as consequências. Na última semana, ele foi afastado da presidência do Conselho Tutelar a pedido da Promotoria de Adolescentes, sob a acusação de que teria disputado uma partida de dama no serviço. No dia 5 de maio o guianense Collis Oneal Hércules, que está irregular no Brasil, foi preso em flagrante em Boa Vista por corrupção de menores, crime previsto no artigo 218 do Código Penal, cuja pena de reclusão é de um a quatro anos. Ele estava acompanhado das meninas E.L.S., Y.R.M. e A.P.M.S., todas com 14 anos. Elas vieram de Manaus, de carona, para trabalhar como garotas de programa, e tinham contatos com duas pessoas que pagavam as diárias do Hotel Três Nações, onde foram encontradas.

Embora sejam as principais vítimas desse clima de terror, as meninas e adolescentes brasileiras ainda preferem se prostituir duro nas boates venezuelanas à vida que lhes é proporcionada no Brasil. Trabalhando na boate La Maloca, G.S., a menina que conseguiu levar R$ 1.000 para Manaus, sonha em conseguir dinheiro suficiente para custear seus estudos. Dona de um cachorro e de um ratinho de estimação, a adolescente pretende se formar em veterinária. É um sonho de adulto de quem até hoje sofre por ter tido a infância roubada.

Aliciamento no colégio

Guayramirim, Bolívia – É difícil encontrar em Guajará-mirim, município de Rondônia que faz divisa com a Bolívia, quem não conheça o cabeleireiro Elias Quintão. Usando sempre esmalte nas unhas, Quintão tornou-se conhecido por organizar concursos de beleza de estudantes da cidade. Mas quem já trabalhou para o cabeleireiro sabe sua verdadeira profissão: cafetão de meninas brasileiras com idade média de 12 anos. Aliciadas nos colégios e nos concursos de beleza, as meninas atravessam diariamente o rio Madeira, acompanhadas de Quintão, em direção ao município vizinho de Guayramirim, na Bolívia. Lá recebem até R$ 200 por programa com empresários, políticos e barões do tráfico.

Apresentados como agentes de viagem interessados em arrumar meninas para os clientes, os jornalistas de ISTOÉ procuraram o cabeleireiro, que se mostrou arredio na primeira conversa. Mas, no segundo encontro, Quintão foi direto ao assunto. “Se vocês querem as meninas, eu arrumo, mas tem de ser do outro lado da Bolívia”, disse o cafetão, sem perceber que estava sendo gravado.

Além de Quintão, os taxistas e as meninas apontam uma mulher que se apresenta apenas como Ladiana, a chefe de outra quadrilha que leva meninas para a Bolívia. Ladiana costuma se hospedar no Hotel Santana, em Guayramirim, onde apresenta as meninas aos empresários e traficantes bolivianos. “Cansei de transportar meninas brasileiras até os barões da cidade, que têm até uma sala reservada no Los Cocos (principal restaurante da cidade) para jantar com as adolescentes antes de levá-las até ao hotel”, disse o taxista Victor Arce, que mostrou a sala reservada do restaurante aos jornalistas. Essas denúncias são confirmadas por um dossiê elaborado pela orientadora educacional da Prefeitura de Guajará-mirim Izabel Costa Hayden, que faz parte do Conselho Tutelar do Município. Em depoimentos secretos à orientadora, as meninas têm mostrado o assustador submundo da prostituição infantil na fronteira.

1 – R.J, 17 anos, está sumida
2 – Izabel fez um dossiê e foi ameaçada de morte
3 -O coronel boliviano Ayala diz que cabe ao Brasil
evitar a saída das meninas
4 – O cafetão Elias Quintão promove desfiles

“A história é sempre a mesma: recrutadas nos colégios, as meninas começam a fazer programas com 12 anos na Bolívia. No início ganham dinheiro, mas logo são viciadas pelos barões do tráfico. Aos 15 anos, começam a fazer programas em troca de drogas em boates decadentes da Bolívia.” Segundo a orientadora, as adolescentes que conseguem superar o vício são levadas para as boates de Mato Grosso do Sul, de onde seguem para a Europa. Solitária na luta contra o tráfico, Izabel já sofreu várias ameaças e atentados. Perseguida pelos políticos, a orientadora conta somente com o apoio do batalhão do Exército na cidade, onde realiza um trabalho social com crianças e adolescentes carentes. Seu escritório na prefeitura vive sendo arrombado. Entre as provas ultra-secretas guardadas pela orientadora nos cofres do quartel, destacam-se um amontoado de fotos que lhe foram entregues por meninas viciadas que se prostituem na Bolívia. As fotos, que seriam entregues pelas meninas a uma rede de pedófilos, são impublicáveis. Em uma delas, por exemplo, uma menina de 12 anos aparece nua depois de fazer 12 programas numa mesma noite na Bolívia.

Viciada em cocaína, R.J., 17 anos, que começou a fazer programas com 11 anos na Bolívia, contou a ISTOÉ que muitas de suas amigas haviam se mudado para o Mato Grosso do Sul, de onde pretendiam seguir viagem para a Europa. No final de abril, R.J. desapareceu da cidade. No meio dos objetos pessoais da adolescente, seus familiares encontraram o cartão da Casa de Massagem Classe A, localizada na avenida do Rosário 1.581, no município de Três de Alagoas, divisa de Mato Grosso do Sul com São Paulo. No cartão, está anotado à caneta o telefone 541-2858, de propriedade do PM Emiliano em Guajará-Mirim. Os pais de R.J. acreditam que ela esteja trabalhando na boate em Três Lagoas. “Tentamos combater, mas não adianta nada a polícia da Bolívia agir se não forem encontradas soluções para essas adolescentes no Brasil”, afirma o coronel Antonio Ayala, comandante da Guarda Nacional em Cubijas, município boliviano na divisa com o Acre, onde trabalham prostitutas brasileiras.

Amaury Ribeiro Jr.