02/10/2002 - 10:00
Ela nasceu Suzan Kate Lund e foi criada num gueto dourado. Filha de pais americanos de classe média alta, esta paulistana de olhos azuis expressivos e voz mansa abraçou a profissão de cineasta e reescreveu a própria história. Katia Lund, como ficou conhecida profissionalmente, encarou a realidade nua e crua em mudança que se iniciou aos 30 anos. Foi quando, em 1996, subiu o Morro Dona Marta, no Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro, para gravar o clipe da música They don’t care about us, cantada por Michael Jackson. O morro é ocupado pela favela Santa Marta, cujo comandante era o traficante Marcinho VP, a quem ela teve de pedir permissão para entrar com um batalhão de profissionais e equipamento pesado de filmagem. Desde então, passou a transitar pela favela e pelo asfalto com a mesma naturalidade. Tornou-se amiga de Marcinho VP e fez nova turma, sem esquecer as antigas amizades do mundo dos ricos. São Paulo ficou para trás. Hoje mora no Rio, num apartamento alugado em Ipanema, só anda de ônibus e seu namorado é da favela da Rocinha.
Recentemente, teve de abandonar o trabalho por algumas horas para explicar na delegacia por que um traficante estava na pré-estréia do filme Cidade de Deus – um sucesso co-dirigido com Fernando Meirelles –, que até a semana passada já havia conquistado mais de um milhão de espectadores. Não foi a primeira vez que Katia teve seu nome circulando na polícia. Quando filmou Notícias de uma guerra particular com o amigo João Moreira Salles, também se viu obrigada a dar explicações sobre a amizade com Marcinho VP. Essa proximidade a fez enxergar a favela por uma ótica diferente daquela construída na sua origem de classe. “Procuro me colocar no lugar deles, saber como sobrevivem, sem ficar presa aos rótulos.” Aos 36 anos, ela parece saber o que quer. Em vez de megaproduções hollywoodianas como O paciente inglês – filme no qual trabalhou como assistente de direção –, prefere colocar o dedo na ferida da sociedade brasileira. Em seu currículo há menções de Central do Brasil e clipes para rappers. Atualmente, seu projeto principal é uma escola de atores e técnicos de cinema com alunos oriundos das favelas. Nesta entrevista a ISTOÉ, Katia Lund criticou os poderosos, defendeu a liberação da droga e cutucou a elite chamando-a de hipócrita.
Não, foi tranquilo. São os ossos do ofício, faz parte do meu trabalho. Se estou questionando a hipocrisia na polícia, na imprensa e na sociedade, é natural que eu incomode as pessoas, sobretudo aquelas que querem manter o sistema do jeito que está. A culpa não é da polícia. Ela é apenas bucha da sociedade. É usada para manter a diferença social, porque o que mais interessa hoje é manter os excluídos afastados e sob controle. Até quando vamos continuar nessa hipocrisia? Matar ou prender o chefão do tráfico não adianta nada. O troféu do tráfico só serve para a polícia continuar fazendo seu trabalho e, de vez em quando, dar uma explicação à sociedade. Isso só serve para a imprensa vender jornal, para político se eleger e a polícia continuar, teoricamente, enganando a sociedade.
Se existe uma pirâmide no crime, deveríamos estar atacando o pé dessa pirâmide, e não a cabeça. É importante tirar do crime a galera que ainda está entrando nele. O problema é que a sociedade não quer se sujar e acaba usando a polícia para afastar os excluídos. Ela prefere fingir que não está enxergando nada. E nós somos cúmplices dessa situação.
Tanto a polícia quanto o governo só vão mudar quando a sociedade passar a acreditar nisso. A arte tem o poder de abrir novos caminhos. É uma arma muito poderosa no processo de conscientização, especialmente o cinema, que é audiovisual e mídia de massa. A proposta da arte é: pare, pense e comece a ver as coisas de outra maneira.
Transito entre a favela e o asfalto como se fosse uma coisa só. Para mim, não tem a menor diferença. Meu namorado mora na Rocinha e meus amigos estão no Vidigal. Vamos ao cinema juntos, às festas, eu os convido para irem à minha casa. Esse trânsito de pessoas do asfalto na favela e vice-versa cria porosidade na sociedade e abre a possibilidade de troca de informações. Eu aprendo com eles, eles aprendem comigo. Meu trabalho é fruto disso.
Minha curiosidade em conhecer outras culturas é natural. Sou paulistana, meus pais americanos e estudei numa escola com 30 alunos de 25 diferentes nacionalidades. Sempre convivi com a diferença. Meus pais sempre tiveram muito dinheiro, mas são pessoas simples. Lá em casa, os empregados sempre foram tratados com respeito e eu costumava passar os fins de semana na casa de um deles. Quando cresci, morei um tempo nos Estados Unidos e lá trabalhei como faxineira e garçonete. A primeira vez que pensei em favela como comunidade foi em 1996, quando subi o Santa Marta para produzir o clipe do Michael Jackson. Foi aí que eu comecei a reparar que existia uma outra sociedade, com outros códigos.
Aos 20 anos, viajei para a Índia, o Japão, a China e a Tailândia. Queria trabalhar como jornalista para a revista National Geographic. Sempre gostei de saber como vivem as pessoas, o que elas pensam, me colocar no lugar delas e ver a vida de outra maneira. Quando subi o Santa Marta foi como se eu estivesse num país estrangeiro. Como nasci em São Paulo, meus pais são americanos e em casa fui criada como se estivesse nos Estados Unidos, sempre me perguntei: Por que eu nasci no Brasil? Tive essa mesma sensação quando subi o morro
Descobri que os jornais rotulam as pessoas. A primeira vez que conversei com Márcio (o traficante Marcinho VP), ele já era dono do comércio de drogas no Dona Marta. De repente, eu vi o cara fazendo uma função que nunca imaginei que bandido fizesse. Ele disse: “Vocês não terão problemas aqui dentro, basta procurar a associação de moradores. Eu não quero dinheiro, só quero que a comunidade tenha
o máximo de trabalho possível.” Foi a primeira vez que vi meninos no tráfico. Foi aí que comecei a questionar os rótulos que havia aceitado
da imprensa. Não podia mais continuar olhando para um menino de
uns 12 anos de idade e enxergá-lo como um monstro. Para um menino desse, o tráfico na favela é quase um caminho natural. É muito injusto julgarmos o outro sem nos colocarmos na sua posição. Temos de questionar esse sistema. Comecei a perceber que não entendia nada
do meu mundo, do meu país.
O filme propõe uma linguagem atual. Como a gente vem de um cinema brasileiro que tem uma tradição, existe muita expectativa. Por exemplo, se falamos da questão social, temos de usar planos longos como na época do cinema novo. Cidade de Deus quebra isso, e é
natural que as pessoas estranhem. O filme não perde a realidade,
ele atinge e ao mesmo tempo entretém. Também tem humor. Com
os videogames, nossa linguagem ficou mais rápida e mais jovem. Meu objetivo é fazer com que a pessoa saia do filme e não se esqueça
dele por umas duas semanas. Quando a gente faz um filme, fazemos
50% da obra. O restante é a platéia quem faz.
O cara que está fumando ou cheirando é tão culpado quanto quem vende. É todo mundo co-responsável. Fala-se do tráfico de drogas para distrair as pessoas e impedi-las de falar do que realmente interessa, que é o tráfico de armas. Esse é um assunto muito grave. É chocante ver um menino, que nem comida em casa tem, segurando uma arma que não sai por menos de R$ 5 mil. Como é possível ele ter uma arma e não ter dinheiro para comprar comida ou mesmo estudar? Sou favorável à liberação da droga. Quem quiser que use, mas tem de pagar imposto. O alcoolismo talvez seja mais perigoso do que a própria maconha. A Lei Seca, por exemplo, não funcionou e ainda serviu para criar a máfia.
Nunca me senti tolhida. Agora, o que não se pode fazer é sair apontando o dedo. O rapper MV Bill, por exemplo, faz raps contra o tráfico e nunca tem problemas para entrar numa favela ou fazer shows lá. A única coisa que eles diziam para a gente era: “Faça real.” Nada de cinema americano, que costuma botar um cara dando 20 tiros de onde só é possível disparar seis. Os traficantes, quando ficam mais velhos, têm a noção de que foram tragados. Só que muitas vezes não têm escolha. Eles começam cedo para levar comida para casa e só mais tarde é que vão ter noção de que perderam a vida. É por isso que os traficantes deixam a opção da Igreja aberta para quem quer sair do tráfico. Se o cara está trabalhando na boca e é bom músico, os caras são os primeiros a dizer que ele deve sair fora. Quando comecei a fazer esse tipo de trabalho e passei a ouvir o ponto de vista deles, percebi que eles querem mesmo é ser ouvidos. Eles querem passar a existir, querem ser valorizados. É por isso que é fácil mudar essa situação. Se fossem valorizados como seres humanos, 80% dos problemas já estavam resolvidos. Quanto aos 20% restantes, é possível resolver com emprego.
Quero potencializar o lado artístico dessa garotada. Criei a Nós no Cinema, uma ONG que vai funcionar como agência de atores e produtora de filmes. Estou seguindo a trilha do Gute Fraga (ator que há 15 anos criou uma escola de teatro no Vidigal, chamada Nós do Morro). Ele é um Deus. Quero formar líderes e assim ajudar numa transformação consciente. Além de trabalhar como atores, eles vão aprender a trabalhar como técnicos. Estamos convocando os jovens através da associação de moradores. Também estamos procurando uma sede porque quero trabalhar num lugar neutro para poder receber gente de comunidades dominadas tanto pelo Terceiro Comando quanto pelo Comando Vermelho.
O Bill tem razão. O filme tem uma repercussão positiva e uma negativa para a Cidade de Deus. Acho que pode ser criado o estigma, mas ao mesmo tempo é preciso que as pessoas reconheçam o problema para depois começarem a mudá-lo.
Nossa intenção era ser o mais fiel possível ao livro, e o livro é o ponto de vista de um garoto que está lá dentro. Quando fiz Notícias de uma guerra particular, falei com o chefe do tráfico e posso dizer que eles não sabem quem vende. Eles são o varejo, porque vem um intermediário até a favela. O Fernandinho Beira-Mar foi o primeiro que conseguiu fazer essa ponte entre o varejo e o atacado. Porque o resto não sai da favela, eles têm uma formação até a quinta, sexta série, e são principalmente consumidores do atacadista. Do mesmo jeito que o camelô que vende Nike na rua não sabe quem é o fornecedor. Paulo Lins descreveu o ponto de vista de um garoto de dentro da favela. Se colocássemos esse olhar de fora, seria um outro filme.
Dois episódios novos para o Brava gente, da Rede Globo. Estou trabalhando com o mesmo elenco do primeiro filme e co-dirigindo com o Paulo Lins. Também estou fazendo um documentário sobre rap com a rapper Nega Gizza. A idéia é tratar esse ritmo musical como um espelho do sistema social e político no Brasil, em Cuba e nos Estados Unidos. O rap é uma outra forma de nação.
Meu objetivo é ser uma pessoa livre, viver mais tranquilamente. Costumo andar na rua sem medo. Acho que o medo tem a ver um pouco com o jeito que a pessoa anda, o jeito que fala.
Até ir a Cannes, nunca tinha pensado nisso. Lá, me senti
tratada como uma mulherzinha. Olhavam para mim como se eu apenas cuidasse dos meninos do filme. Aqui não, as pessoas já me conhecem.
Só que a mídia muitas vezes também olha para mim com um olhar machista, como se tudo o que eu fiz e realizei até hoje não tivesse
a menor importância. Isso é machismo.