12/12/2002 - 10:00
Respeitado pelas análises ponderadas que costuma fazer, o economista Eduardo Giannetti é consultado sempre que o debate gira em torno dos humores do mercado e dos rumos financeiros do País. Aos 45 anos, Giannetti, um mineiro radicado em São Paulo desde a infância, acaba de reforçar sua fama como professor de história do pensamento econômico. Em sintonia com a tradição cultuada pelos grandes economistas do século XVIII, que voltavam seus estudos para o bem-estar da humanidade, ele sintetizou no livro Felicidade, recém-lançado pela Companhia das Letras, estudos que vem realizando sobre o tema há quase duas décadas. “Continuar aumentando
os padrões de consumo não vai tornar as pessoas mais felizes”, garante Giannetti. “A partir de um certo índice não há nenhuma
evidência empírica de que acréscimos de renda tragam ganhos de bem-estar subjetivo.” A seguir, os principais trechos da entrevista concedida em sua agradável casa, antes de partir para o lançamento de Felicidade, em sua terra natal, Belo Horizonte.
O que me surpreende é exatamente o contrário. Como é que os economistas, de uns tempos para cá, passaram a considerar tão pouco a questão do bem-estar. A preocupação dos grandes economistas em qualquer tempo sempre foi facilitar a busca da realização e do potencial humano.
O projeto iluminista de que o progresso e a razão resolveriam o problema humano de realização fracassou. Continuar aumentando a renda e os padrões de consumo não vai tornar as pessoas mais felizes com a vida que têm. Assim como na corrida armamentista, os países investem cada vez mais em armas e se sentem ainda mais inseguros. No consumo ocorre algo parecido. Os países altamente desenvolvidos se esforçam para ter um padrão de consumo maior e se sentem cada vez mais carentes.
Sim. O limite ecológico. Se o padrão de consumo
do sonho americano se generalizar, se cada chinês passar a ter
dois automóveis na garagem, o meio ambiente e a biosfera não vão aguentar o desaforo. As bases biológicas da vida serão destruídas.
Precisamos encontrar outros caminhos. Uma realização que seja menos calcada no econômico e mais na ética, na espiritualidade, nas relações pessoais, na alegria de viver. Um caminho que seja menos oneroso do ponto de vista econômico-ambiental,
que seja mais sustentável do ponto de vista ecológico.
A economia é fundamental até certo ponto. A partir de um certo índice não há nenhuma evidência empírica de que acréscimos de renda tragam ganhos de bem-estar subjetivo.
Num estágio inicial de crescimento, quando o país tem renda per capita de até US$ 10 mil anuais, há uma correlação muito estreita entre aumento de renda e melhoria do bem-estar subjetivo.
A partir daí, desaparece essa correlação. Estudos feitos nos Estados Unidos e no Japão mostram que, a partir dos anos 40, a renda
da população aumentou violentamente, mas o bem-estar
coletivo permaneceu constante. Esse dado é universal.
Existe uma proporção maior de felizes entre os mais
ricos. Só que a relação entre renda e bem-estar subjetivo é forte
até US$ 20 mil de renda pessoal. Depois ela praticamente
desaparece e só volta a crescer a partir de US$ 80 mil.
A curva da felicidade é em “u”, de acordo com
a idade. Ela é maior na juventude, depois vai caindo, atinge
o ponto mínimo entre os 30 e 35 anos e, depois, volta a crescer.
Isso bate para qualquer país. Aos 35 anos é justamente a época
em que a pessoa tem mais responsabilidades, está com os filhos pequenos, às vezes tem de cuidar dos pais idosos e ainda precisa
gerar uma poupança, pensar na aposentadoria.
Do ponto de vista econômico, o dado mais forte nos
estudos sobre felicidade é em relação ao desemprego. Em todas
as culturas, o número de infelizes entre os desempregados é muito
maior. O ser humano precisa se sentir socialmente justificado.
Não há estatísticas para vários anos consecutivos, como
nos países desenvolvidos. Nos estudos feitos no País, o que chama a atenção é que a ampla maioria se considera feliz, mas apenas 23% consideram os brasileiros felizes. Na minha opinião, as pessoas usam critérios diferentes quando julgam o próprio caso. Essa dissociação é muito rica para mostrar a experiência brasileira de um descolamento
entre as condições objetivas e os sentimentos que as pessoas têm
em relação a sua própria vida. O Brasil é o triunfo da subjetividade.
É um povo que teria tudo para estar se lamentando.
As condições de vida são muito inseguras e muito precárias.
É algo que chama a atenção para qualquer olhar estrangeiro
civilizado que nos visita. Como é que esse povo encontra tanta
alegria de viver, tanta afetividade?
A mensagem de tudo isso é muito otimista para o Brasil. Mostra que nós podemos estar muito mais perto de uma condição invejável do que imaginamos. Um país não precisa ser super-rico para atingir altos padrões de bem-estar subjetivo. Se ele resolver
certas carências materiais básicas, a partir daí o que conta para a felicidade são outras variáveis, mais ligadas à psicologia e à ética.
Essa é uma grande esperança, talvez até uma utopia brasileira. Conquistar o padrão de vida civilizado, mas sem o mal-estar que normalmente acompanha a civilização.
Possivelmente sim. A própria capacidade brasileira
de se adaptar leva a uma atitude menos aguerrida na cobrança
de soluções, direitos e oportunidades. Por outro lado, seria um
grande erro sacrificar essa nossa capacidade de tirar muito de
pouco em nome de um processo de acumulação de capital, como
os países ricos fizeram. A sabedoria brasileira vai ter de resolve
r os problemas básicos da vida material sem, em nome disso,
sacrificar a espontaneidade que nós temos e valorizamos tanto.
A interpretação mais óbvia é que o medo de ser feliz
era do eleitor. A outra, mais sutil, é que o medo de ser feliz é do
próprio PT. Seria o medo de perder ilusões que deram ao PT tanta motivação e tanta força na sua organização política. O poder
destrói ilusões, inclusive sobre a capacidade real de mudança.
Quando nossos anseios mais profundos são atendidos, tendemos a nos desapontar. O que nos mantém e sustenta nossos projetos de longo prazo são ilusões que acalentamos em relação aos resultados a serem obtidos. Se nós não tivéssemos projetos que vão muito além de nossas forças, não mobilizaríamos energia para fazer o que está a nosso alcance.
O que Aristóteles está dizendo é que, quando se tem prazer em uma atividade, você a exercita e vai se tornando um mestre. O prazer é um mecanismo de reforço. Se você tem prazer em tocar piano, você vai tocar muito e se tornar um grande pianista. O fato de se ter muito prazer em uma atividade é uma espécie de enzima, de catalizador da excelência. O problema maior é romper a barreira inicial.
No começo, qualquer atividade que não se faz bem é penosa. É preciso insistir. A atividade só começa a se tornar gratificante quando se adquire algum domínio. A maior parte das pessoas desiste antes de romper essa barreira.
As conquistas da civilização não são de graça. A pessoa
abre mão de uma certa liberdade, de uma certa impulsividade.
Aos poucos, vai perdendo o que Rousseau chamava de “o doce sentimento da existência”. Os povos altamente civilizados não se permitem uma entrega ao momento como os brasileiros fazem no Carnaval. Eles não conseguem se soltar.
Porque a civilização e a racionalidade vão impondo
padrões de lógica, de raciocínio consequente, de preocupação com
o futuro. Não é à toa que Prometeu, o grande herói civilizador da mitologia, roubou o fogo de Zeus para dá-lo ao ser humano, mas
recebeu a punição de ter o fígado comido por um abutre durante
30 mil anos. E o fígado, para os gregos, era a sede das paixões.
O homem conquista o fogo, mas perde algo muito valioso, que é a felicidade animal. Tem um simétrico do Prometeu, seu irmão Epimeteu.
Ele é o impulsivo, o inconsequente. Vive uma vida pontilhada de calamidades e apuros. Mas, todas as vezes que as circunstâncias permitem, demonstra uma enorme capacidade de experimentar prazer.
Ele tem momentos de felicidade mais intensos, mas
o preço que paga por isso é uma vida prática extremamente precária. Então, os dois pagam um preço. Acho que o sonho brasileiro no fundo
é conquistar a racionalidade de Prometeu sem perder a alegria
instintiva de Epimeteu. É o melhor dos dois mundos.
O risco é buscar o melhor dos dois mundos
e terminar com o pior dos dois mundos. Prometeu pobre
e Epimeteu triste. O sonho brasileiro é a civilização sem
mal-estar. O pesadelo é o mal-estar sem a civilização.
O Brasil já teve mais próximo do sonho do que hoje.
Nos anos 50, vivemos a ilusão de que estávamos perto de ter o
melhor dos dois mundos. As décadas de 80 e 90 foram adversas
nesse aspecto. A utopia brasileira perdeu um pouco do apelo e
da capacidade mobilizadora. Mas a batalha não está perdida.
As pessoas estão querendo acreditar. Em minha atividade como palestrante, está muito difícil falar sobre as dificuldades e
os riscos que o Brasil vai viver no governo PT. As pessoas estão querendo viver essa fantasia de que a mudança será necessariamente para muito melhor. Mas, como economista, acredito que precisamos ter clareza quanto às dificuldades e aos limites.
A esperança e o desejo de que dê certo acabam
bloqueando a capacidade de raciocínio, o que é muito perigoso
para o País. Nós vivemos situações desse tipo no Plano Cruzado.
Quem quer que levantasse a mais leve sombra de dúvida de que aquilo poderia não dar certo era estigmatizado como derrotista. A esperança não pode sufocar a nossa capacidade de pensar objetivamente.
Meu objetivo não era oferecer homilias de auto-ajuda, embora exista no meu livro uma proposta. Ele fala de quatro amigos
que estudam juntos e que podem encontrar nessa atividade momentos de intensa felicidade. Se houver alguma receita no livro, está no
próprio fazer, no diálogo de pessoas que resolvem valorizar sua
amizade. Então, contrabandeado no livro tem um elemento de
auto-ajuda, que é a alegria da amizade filosófica.
Se a felicidade pudesse ser aprendida nos livros,
não haveria uma pessoa infeliz em todo o mundo. Por outro lado,
a demanda por livros de auto-ajuda mostra que as pessoas
estão querendo repensar sua existência.
Entendo que as pessoas estejam querendo alcançar
níveis melhores de realização e de satisfação. Também acho que
o caminho das drogas é extremamente limitado e perigoso.
A auto-ajuda é só limitada. Ela não faz mal a ninguém. O atalho
químico pode fazer muito mal e pode arruinar uma vida.
Não há uma resposta simples para isso. Os gregos
dizem que é impossível dizer se alguém foi feliz até que sua vida
termine. E há um elemento de arrogância em qualquer tipo de
afirmação peremptória antes de ver o desfecho.