O Alzheimer, como um rio ácido, corrói a sua mente. Há anos, vem apagando as memórias e transformando o corpo outrora rígido numa expressão frágil da vida humana. Genes perversos. O que significará essa esfera de couro que repousa sobre suas pernas e que ele trata com uma indiferença impensável? O quarto que ele habita há nove anos, numa casa de tratamento paga pelo São Paulo F.C., clube que jamais o abandonou, e cuja camisa honrou com brilho profissional inesquecível, seria mais triste não fossem as fotografias e recortes de jornais espalhados pelas paredes brancas. É o registro paradoxal de uma carreira que justificou o nome pelo qual será eternamente lembrado por aqueles que o consideram um dos pontífices máximos do sacerdócio chamado de futebol-arte.

Essa casa silenciosa e melancólica abriga em suas entranhas uma
gema pura, lapidada e escalavrada pela vida. Leônidas da Silva,
aos 89 anos, é o Diamante Negro, um dos maiores jogadores que
o futebol brasileiro conheceu. Tão excepcional que já se disse ser
a mídia eletrônica a única diferença real entre ele e Pelé. É que,
nas décadas de 30 e 40, quando ele brilhou, as transmissões de
partidas eram feitas pelo rádio. A televisão praticamente não existia
e os mitos eram forjados única e exclusivamente pela paixão popular.

Leônidas jogou em quase todos os grandes clubes brasileiros. Vestiu
as camisas do Vasco da Gama, Botafogo e Flamengo, passando também pelo Peñarol do Uruguai. Foi no São Paulo, porém, que sua carreira
atingiu o auge. Com ele, o clube foi campeão paulista cinco vezes,
entre 1943 e 1949. Em 1951, aos 37 anos, abandonou o futebol para
ser comentarista esportivo durante duas décadas. Na época, Leônidas
e o presidente Getúlio Vargas eram unanimidades nacionais. E foi Assis Chateaubriand, o megaempresário das comunicações no Brasil, quem
lhe deu o apelido de Diamante Negro. Chatô era dono também da
fábrica de chocolates Lacta e lançou um produto que existe até
os dias de hoje, o chocolate Diamante Negro, em homenagem a
Leônidas, que foi, evidentemente, o seu grande garoto-propaganda.

Foi ele, Leônidas, o inventor da jogada mais sensacional e extraordinária do futebol: a bicicleta. De costas para o goleiro, como se pedalasse
em pleno ar, conseguia o gol impossível, verdadeira obra de arte.
“Um jogador rigorosamente brasileiro, brasileiro da cabeça aos sapatos. Tinha a fantasia, a improvisação, a molecagem, a sensualidade
do nosso craque típico”, escreveu sobre ele Nélson Rodrigues.

Dona Albertina (Albertina Pereira dos Santos), companheira desde
1956, confessa que Leônidas é a paixão que nem o tempo nem a
doença conseguem extinguir. Ela o visita duas, três vezes por semana. Entre todos os que entram no quarto, é a ela que seus olhos seguem. “Ele era muito ciumento”, revela, “e continua sendo…” Mas ele não consegue mais falar. Apenas seu olhar diz tudo e Albertina parece sempre saber o que Leônidas quer ou está pensando. Mistérios de
um grande amor, com certeza. Quando ela não está presente, seu
olhar e sua mente viajam através da grande janela que se abre para
o pátio e o jardim da grande casa. Há sol, muito sol, e flores também.
O que ele estará pensando? Leônidas não teve filhos, mas os dois grandes amores de sua vida, ao contrário de tantos amigos e admiradores, não o abandonaram – Albertina e o São Paulo. As administrações do clube se sucedem, mas a postura generosa é a
mesma. Coisa rara no futebol, rara na experiência humana. Albertina é extremamente grata ao clube. Relembra que foi Fernando Casal de Rey, então presidente do São Paulo, quem, em 1995, autorizou o pagamento das despesas de internação de Leônidas na clínica. O empresário Marcos Lázaro também auxiliou muito ao longo desses anos de internação.

Nos dias de jogos do São Paulo, Leônidas é colocado em frente
à televisão. Albertina diz que são momentos raros, esses em que
os olhos do Diamante parecem subitamente fulgurar a cada jogada irrepreensível do tricolor. São flashes que devem espocar em sua
mente, lampejos da memória adormecida, explica o médico. Aconteça
o que acontecer, o Diamante Negro já faz parte, há muito tempo,
daquele panteão de figuras que se entronizaram na eternidade.