09/10/2002 - 10:00
Fazendeiro, Gigante, Nenê, Creche, Irmão, Popó, Cosme e Damião são alguns dos 38 hóspedes que moram na Pensão Familiar que a mineira Jaqueline Muniz, 40 anos, três filhos, mantém na favela Heliópolis, uma das mais antigas e mais carentes de São Paulo, um labirinto de construções de todos os tipos que abriga mais de 50 mil moradores, muitas histórias de violência e de exclusão social. A pensão de Jaqueline sempre foi bem. Mas vai melhor agora que ela conseguiu ser uma das primeiras clientes da Real Microcrédito, empresa criada pelo Banco Real, que pertence ao holandês ABN Amro Bank, em parceria com a organização não-governamental americana Acción International, especializada em microcrédito. O início das operações da nova empresa foi na última semana de agosto de 2002. Jaqueline emprestou R$ 1.500 para pagar em dez meses, com juros de 3,5% ao mês (a taxa média dos bancos é de 20%), e expandir a venda de “quentinhas” (feitas por Tiazinha, a cozinheira da Pensão Familiar e dona de muitos dos segredos que rolam por ali). Assim que acabar de pagar, vai pedir outro crédito e expandir a pensão.
Amélia – Jaqueline tem placa de vagas na porta, mas dispensa novos hóspedes todos os dias porque não tem mais onde colocar beliches. Ela não tem nada da Amélia da música de Mário Lago, mas é uma mulher de verdade. Lava as roupas de todos esses marmanjos, administra a pensão com mão de ferro (“Eu mando e eles têm que obedecer, não pode assistir tevê depois da meia-noite, chegar bêbado, trazer mulher, fazer sujeira, puxar briga, falar palavrão, senão eu ponho para fora”, diz), faz as compras, ajuda a vizinhança, cuida dos filhos (um deles, Lucas, de três anos, teve meningite aos seis dias de vida e ficou deficiente). E está feliz da vida com a perspectiva de fazer crescer seus negócios. A pensão (onde vive com os filhos) tem 15 cômodos, incluindo uma pequena cozinha e seis banheiros coletivos, e ela quer acrescentar mais dois, o que significa mais oito pensionistas, quatro em cada quarto, dois em cada beliche. Pela “dormida”, como ela diz, o preço é R$ 80 por mês, mas pode chegar a R$ 200 se o hóspede quiser serviço completo, roupa lavada e duas refeições por dia. Ela pensa também em utilizar o microcrédito para abrir um bar “mais pra frente”.
O objetivo do Real é ampliar os micronegócios com microfinanciamentos. “Como agentes de desenvolvimento e conscientes de nosso papel de cidadãos corporativos, nosso objetivo não é fazer caridade; queremos fazer da Real Microcrédito uma empresa sustentável, oferecendo crédito e serviços em condições adequadas para um segmento específico: o dos microempreendedores tanto do setor formal como informal”, diz Flávio Weizenmann, vice-presidente sênior do Banco Real e gerente-geral do projeto. É um mercado monumental: no Brasil, 75% da população economicamente ativa não tem nem sequer talão de cheque ou cartão eletrônico, uma multidão estimada pela Federação Brasileira dos Bancos (Febraban). São as chamadas vítimas da exclusão bancária.
O microcrédito, que está na lista de promessas de todos os candidatos à Presidência, tem sido um instrumento eficaz de combate à pobreza em diferentes partes do mundo, gerando empregos, renda e apoiando a realização de projetos de vida. Funciona de maneira exemplar na Rocinha, no Rio de Janeiro, através da organização não-governamental Viva Cred, filhote da Viva Rio, com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para a primeira fase do projeto e da financeira Fininvest, que não só fez uma doação para o funding inicial como tornou-se parceiro na iniciativa. O Real, quinto maior banco privado do País, é o primeiro a entrar nessa seara. Mas, certamente, provocará novas adesões. “A escala é importante em um país tão grande quanto o Brasil”, disse ao The New York Times Maria Otero, presidente da Acción International, grupo de microempréstimo sediado em Boston, que atualmente financia 600 mil microempresários em 20 países da América Latina, Caribe e África e na última década movimentou mais de
US$ 3,8 bilhões em empréstimos – 99% foram pagos, confirmando a crença de que os mais pobres são ótimos pagadores porque querem manter a integridade de seu maior patrimônio, o nome.
Tanto em São Paulo como no Rio, as atividades dos clientes são variadas: costura, confecção, bazar, bar, camelô, lanchonete, cabeleireiro, eletricista, mecânico, mercadinho, quentinhas… Ivo Ribeiro dos Santos, dono de uma pizzaria em Heliópolis, pegou R$ 1 mil emprestados para acelerar a entrega em domicílio das pizzas; José Raimundo da Silva, R$ 300, para melhorar o serviço de seu churrasquinho; Lúcia Velli, costureira, comprou uma máquina profissional de segunda mão com o empréstimo de R$ 1.500, o que poderá dobrar sua produção: a festejada aquisição costura numa velocidade de até sete mil pontospor segundo, o dobro da velocidade das três máquinas que ela tem em casa. A cabeleireira Zezita, maranhense, 46 anos, mãe de três filhos, recebeu empréstimo de R$ 1.200 para pagar em seis parcelas de R$ 230. “Foi bom porque a concorrência aqui é muito grande e eu pude fazer um estoque dos produtos que uso na minha especialidade, tingimento, alisamento e relaxamento de cabelos”, diz. Ela mora em Heliópolis há 19 anos, em São Paulo desde os 11 anos e tem o salão em casa. Assim que pagar esse empréstimo, Zezita pedirá outro.
A Real Microcrédito usa a experiência em Heliópolis como um projeto piloto que, dependendo de seu sucesso, provocará a abertura de agências de microcrédito em duas outras áreas pobres de São Paulo em 2003 para então começar a expandir para todo o Brasil. O banco não espera que a operação com microcrédito amplie seus lucros em milhões, mas não tem dúvidas de que a operação deve ser capaz de financiar a si mesma e crescer.
O programa não financia o chamado “start-up”, ou seja, negócios que precisam de um empurrão financeiro para começar. Foram assinados até agora 25 contratos, com taxas de juros de 3,5% ao mês (mais a taxa de abertura de crédito). Os prazos para empréstimos cujo objetivo é capital de giro vão de três a nove meses e para máquinas e equipamentos, de três a 18 meses. Os valores vão até R$ 10 mil. O processo de pedido é simples: exige CIC, RG e avalista, além de a empresa – formal ou não – estar aberta há pelo menos um ano.
O banco tem dois agentes de crédito trabalhando na favela. Eles visitam os estabelecimentos antes de conceder os empréstimos, “mas
não enrolam”, segundo os clientes. Estão ali, vestindo camisetas verde s e amarelas com o slogan “Vamos Crescer Juntos” à procura de
negócios em busca de expansão. Também não complicam, exigindo, por exemplo, explicações sobre a recorrente complicação das estruturas familiares de seus clientes. Ninguém explica muito de onde vieram tantos filhos, onde estão os pais dessas crianças.
Para acompanhar de perto a comunidade, o Real abriu uma agência de microcrédito perto da favela, no bairro do Ipiranga, que fica no sudoeste da cidade – onde estão alguns dos mais de três milhões de empreendores que tentam crescer em São Paulo e onde brilha – sem luminoso na porta – a Pensão Familiar, um verdadeiro pensionato masculino comandado pela brava Jaqueline. “Mulher aqui, nem pensar, só daria confusão, elas fazem muita intriga; eles eu consigo controlar.