No final da década de 1920, o bielo-russo Marc Chagall (1887-1985), já reconhecido como grande artista, dedicou dois anos à produção de 100 guaches. Encomendados pelo editor Ambroise Vollard, as obras ilustrariam igual número de fábulas escritas três séculos antes pelo renovador do gênero, o francês Jean de La Fontaine (1621-1695). O volume Marc Chagall – fábulas de La Fontaine (Estação Liberdade, 144 págs., R$ 39), trazendo 43 dos guaches/fábulas, nada mais é que o catálogo das exposições realizadas em meados dos anos
1990 em Céret e Nice e depois reeditado para a mostra Chagall: conhecido e desconhecido, que teve lugar no Grand Palais, em Paris, em 2003. Quando
os guaches foram pintados, a impressão gráfica ainda não havia se sofisticado.
As dificuldades para a reprodução em cores, portanto, eram praticamente intransponíveis. Também a simples idéia de unir Chagall e La Fontaine provocou uma reação chauvinista por parte dos intelectuais. De um momento para o outro queriam a todo custo poupar o sofisticado escritor francês da interpretação artística excessivamente literal dada pelo pintor. Mesmo assim, até 1930 as obras originais foram vendidas em exposições em Paris, Bruxelas e Berlim. Para que se tenha uma idéia da diáspora, quando o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) realizou, em 1946, a primeira retrospectiva do artista, contou com apenas um guache cedido por Helena Rubinstein, a então rainha dos cosméticos.

Mas na virada da mesma década, Chagall decidiu copiar
os mesmos desenhos em placas para a produção de estampas. Foram estas placas que, em 1952, permitiram a publicação do livro em dois volumes. Quanto aos guaches originais, até 1995 não mais do que seis deles haviam sido exibidos ao mesmo tempo. Só agora, 43 foram agrupados, tornando o livro um catálogo de valor histórico e importância aumentada com os prefácios dos curadores das três exposições européias e mais comentários dos jornais do final de 1920, além da relação minuciosa das 100 obras originais. O texto de La Fontaine, não raro irônico – traduzido por Mário Laranjeira –, se casa à perfeição com a explosão cromática e formal dos guaches de Chagall. Suas interpretações tornam palpáveis, por exemplo, o desânimo em A raposa e as uvas; a astúcia em O cisne e o cozinheiro; o amor ao próximo em O asno e o cão; a empáfia em O pavão queixando-se a Juno; e a maldade em O lobo e o cordeiro.