Ao deixar a Catedral Metropolitana de Buenos Aires, na terça-feira 25, o presidente argentino, Néstor Carlos Kirchner, resolveu caminhar e se misturar a milhares de pessoas que o esperavam na histórica Plaza de Mayo, onde fica a Casa Rosada (sede do governo). Na data em que comemorava o primeiro aniversário de sua posse, Kirchner, 54 anos, com cerca de 73% de popularidade, chega ao inimaginável. Quem olhava para a sombria Argentina há apenas dois anos não poderia prever que um presidente pudesse ter tanto apoio popular depois de um ano de governo. É uma situação muito mais confortável do que aquela que seus antecessores Raúl Alfonsín (1983-1989), Carlos Menem (1989-1999) e Fernando de la Rúa (1999-2001) conseguiram atingir. El Pingolino (O Pingüim, apelido de Kirchner), das terras gélidas da Patagônia, avança com seu jeito único na Casa Rosada, com passos peculiares, como é próprio do animal. O “estilo K” foi de confronto, sem papas na língua e pouca flexibilidade para negociações. Peitou o Fundo Monetário Internacional, confrontou a Corte Suprema, retirando os menemistas corrompidos, e ainda mexeu na mais doída ferida argentina: a ditadura militar (1976-1983), expurgando a cúpula das Forças Armadas e da Polícia Federal e anulando as leis que anistiavam oficiais acusados de violação de direitos humanos. Mas o Pingüim tem que avançar. Os problemas como a violência, o desemprego e as abismais desigualdades sociais – hoje mais de 50% dos argentinos encontram-se abaixo da linha de pobreza –, continuam à espreita na porta da Presidência.

Em um ano de governo, existe um consenso entre analistas, tanto os da área econômica quanto política, de esquerda ou de direita, de que Kirchner restabeleceu a autoridade presidencial. Mas também é consenso que o presidente argentino tem que aproveitar essa alta credibilidade para implementar políticas estruturais a partir do segundo ano de governo. Quem foi eleito com apenas 22% dos votos no primeiro turno e fez com que o então opositor, o também peronista ex-presidente Carlos Menem, desistisse da corrida eleitoral ao saber que iria perder, deverá ir além do simbólico e aprofundar as reformas. “Ele foi o presidente menos votado na Argentina. E isso estava relacionado com o esfacelamento interno do Partido Justicialista (peronista). No entanto, Kirchner devolveu credibilidade à política com uma agenda de bastante impacto para a opinião pública”, avalia a socióloga Graciela Römer. Entre esses gestos simbólicos está a conversão da Escola de Mecânica das Forças Armadas (Esma), o terrível e temível centro de tortura da ditadura, em museu. “Mas os gestos simbólicos não bastam. Agora, o governo terá que lutar em algumas frentes. Do ponto de vista político, reconstruir a qualidade institucional do país. Na economia, precisa baixar o índice de desemprego, aumentar o salário mínimo e diminuir o nível de pobreza”, afirma Römer.

O Kirchner durão rompeu a ligação com os aparatos políticos corruptos, mostrando no primeiro ano sua determinação de mudar o rumo do país. Mas como será o Kirchner gestor, que terá que baixar a crista e negociar para conseguir realizar
as tão necessárias reformas? Na esfera política, o Partido Justicialista vive o que talvez seja a mais grave crise desde sua fundação, em 1946. Os caudilhos peronistas do interior distanciam-se do mandatário. E, na verdade, nem o presidente utiliza-se dos símbolos do peronismo (fundado pelo falecido presidente Juan Domingo Perón) para governar. Segundo Römer, estilo é estilo e dificilmente o presidente argentino mudará o seu. Se há rachas dentro de seu partido, é bem provável que alguns deles não tenham conserto, principalmente se depender dos menemistas. Quanto à aliança de Kirchner com o seu padrinho político, o ex-presidente Eduardo Duhalde, essa parece estar garantida, ao menos por enquanto. “Está claro para Duhalde que um fracasso do governo Kirchner significaria um fracasso para os duhaldistas. Há uma sociedade entre os dois, uma relação forte”, garante a socióloga, desmentindo rumores de divergências entre criador e criatura. Mesmo com as fissuras no Partido Justicialista, uma oposição ao governo ainda não se concretizou. “Ela é midiática e está representada por pessoas como Blumberg (Juan Carlos Blumberg, pai de Alex, jovem cujo assassinato por sequestradores causou inúmeros protestos no país), Elisa Carrió (ex-deputada e ex-candidata a presidente) e alguns setores do peronismo”, disse Römer. Blumberg hoje é um forte oposicionista. Com a crescente onda de violência, ele se popularizou ao exigir novas políticas de segurança pública, e o governo se viu obrigado a colocar em votação no Congresso um projeto para o setor.

Na esfera econômica, a inflação e o câmbio – grandes tormentas dos argentinos nos últimos anos – estão sob controle e existe um equilíbrio fiscal. Mas o país amarga uma dívida externa de US$ 87 bilhões, e o desemprego ainda permanece na cifra dos 17%. “O país precisa
voltar aos 3% ou 4% de desemprego”, disse Atílio Borón, superintendente do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (Clacso). Há ainda o gargalo da dívida do governo com os credores privados, que não é paga desde dezembro de 2001. “Temos também que fazer urgentemente uma reforma tributária na Argentina. O sistema tributário aqui é mais retrógrado que no Brasil. É um escândalo.
E sem reforma tributária, não há como haver políticas públicas”, afirmou o analista. Assim como no Brasil, a Argentina tem atualmente superávit nas exportações. “Se usarmos esses recursos para pagar a dívida externa, estaremos jogando esse dinheiro no lixo. Essa coisa de risco-país é uma invenção de tontos, dos ortodoxos, que, tanto no Brasil como na Argentina, são uma praga. Não devemos cair nessa armadilha e temos que usar esse dinheiro para investir em programas sociais”, prega Borón, que é claramente contra o neoliberalismo. Kirchner ameaçou uma moratória, que durou apenas alguns dias, assustou o mercado, mas obrigou o FMI a recuar.

Para Borón, além do aumento do salário mínimo, Kirchner tem que consolidar o setor trabalhista. “É também necessário desenvolver um programa agressivo para o 1,2 milhão de trabalhadores de renda baixa que recebem subsídios de cerca de US$ 60 mensais”, disse ele. Na Argentina, país com população de 38,4 milhões, o número de indigentes também chega a 7,6 milhões. Para conseguir sanar esses problemas, só mesmo com políticas de médio e longo prazo. E essas, geralmente, não são muito populares, porque obviamente não apresentam resultados imediatos.

Uma pedra no sapato de Kirchner é a séria crise energética que se abateu sobre a Argentina. Em entrevista ao jornal argentino Página 12, o presidente afirmou que a crise se deve à falta de investimentos do setor privado. “Temos que ser claros e explicar as coisas aos argentinos. É necessário dizer-lhes que, praticamente desde 1998, as empresas não investiram. Disseram que a Argentina iria crescer cerca de 1% a 1,5% e nós crescemos muito mais”, afirmou ele.

Na esfera internacional, os analistas elogiam a aproximação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com o colega Kirchner, mas acreditam que os argentinos esperam mais do Brasil. “O Brasil está desperdiçando uma oportunidade maravilhosa de consolidar o Mercosul e evitar que a Alca nos seja imposta.
E a Alca será muito pior para o Brasil do que para qualquer outro país da América Latina, porque este tem a economia mais complexa da região. Para os EUA, é melhor um Brasil tropical, com praia, mulatas e futebol. Não querem um Brasil industrial. E, para que o Mercosul avance, o governo brasileiro tem que ter a consciência exata do que esse projeto significa. E isso, o presidente Kirchner já disse com todas as letras” , afirmou Borón.