02/06/2004 - 10:00
A idéia de que o casamento é o sonho dourado da mulher, enquanto o homem foge do altar como o diabo da cruz, prevalece desde a invenção das alianças e ainda inspira quase todas as comédias românticas. Mas tudo indica que essa idéia está com os dias contados. Uma pesquisa recém-concluída com dois mil homens e mulheres no Brasil mostra que, como fonte de felicidade, o casamento já é menos importante para elas do que para eles. O levantamento é parte de um estudo feito em 38 países e coordenado pela International Serving Social Program, entidade que mensura o impacto da entrada da mulher no mercado de trabalho. A pesquisa deixa claro ainda que, para ela, o marido é cada vez menos importante do que a carreira. No Brasil, os pesquisadores detectaram motivos bem racionais para o desencanto da mulher com a idéia do doce lar. Um deles é a resistência dos homens em dividir os afazeres domésticos com uma parceira que trabalha fora de casa. Para ambos, no entanto, há uma incontestável fonte de realização pessoal, que a correria dos novos tempos atrapalha: acompanhar o crescimento dos filhos.
O estudo foi realizado no Brasil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pelo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj), com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Os números mostram que as mulheres já representam metade da população economicamente ativa. Também contabilizam 50% das matrículas da escola básica às universidades. Chefiam uma em cada quatro famílias e aumentam sua participação nos cargos eletivos. Ao mesmo tempo, continuam reinando como donas-de-casa. O paradoxo explica uma das maiores descobertas da pesquisa: a maioria dos homens (57%) acha que os casados são mais felizes do que os solteiros. De outro lado, apenas 44% das mulheres consideram que as casadas são mais felizes do que as solteiras. “O casamento deixou de ser central na vida da mulher”, sentencia a socióloga baiana Clara Maria Araújo, uma das coordenadoras do estudo.
Proteção – Há alguns anos, seria difícil imaginar que uma mulher poderia se dizer feliz fora do casamento. Até porque eram mal vistas na sociedade e ganhavam a pecha de “solteironas” ou “encalhadas”. Mas, de acordo com a escritora carioca Rosiska Darci de Oliveira, o casamento como ideal de vida começou a cair por terra junto com o modelo do homem protetor e provedor. “Eles deixaram de ser responsáveis pelo sustento da família e não representam a proteção de antes. Isso ajuda a entender essa perda de importância do casamento para elas”, aponta.
Não é só. A postura masculina no que diz respeito à divisão das tarefas também pesa na balança. A psicanalista carioca Alice Bittencourt acredita que a resistência dos homens em dividir “a vida de um modo geral” leva as mulheres a questionar se vale a pena compartilhar o teto. A pesquisadora carioca Celi Scalon, que também participou da pesquisa, explica de forma simples o motivo que leva o casamento hoje a ter mais importância para o homem do que para a mulher. “Se ele estiver sozinho, não vai ter quem faça as tarefas domésticas. Para ela, o casamento nos moldes tradicionais é sinônimo de acúmulo de trabalho”, diz.
A atriz Ciça Guimarães, 45 anos, é a encarnação do novo modelo feminino.
Foi casada duas vezes e teve três filhos, João, 20 anos, e Thomás, 25, de Paulo César Pereio, e Rafael, 12, do saxofonista Raul Mascarenhas. Em seu último relacionamento, de seis anos, nem juntou as escovas de dente. “Gosto de namorar, mas minha prioridade são os filhos e o trabalho”, afirma. Seu sucesso não é apenas uma realização profissional, mas uma necessidade. A única ajuda financeira dos ex-maridos vem de Mascarenhas, que paga o colégio de Rafael. Exemplos como esse podem justificar por que a carreira é um fator de realização na pesquisa para 76,5% das mulheres, embora o porcentual ainda seja mais alto (81,5%) entre os homens.
O psicólogo Sócrates Nolasco constatou mais satisfação com o casamento
entre os jovens, quando ainda existe uma mulher idealizada, e entre os mais velhos, que preferem parceiras jovens, que os questionem menos. “Em países com sociedades mais igualitárias, o homem adulto sabe se cuidar, não depende da mulher que se transforma em mãe ou babá. Isso ainda é muito comum por aqui”, compara. Sócrates lembra que, na educação tradicional dos homens, as tarefas domésticas são vistas como “feminilizadoras”. “A sociedade evoluiu, mas o universo masculino, nem tanto.”
De fato, na pesquisa da International Serving Social Program, o maior motivo
de insatisfação feminina ainda está na resistência do homem em vestir o avental. Para se ter uma idéia da diferença abissal entre eles e elas no batente doméstico
, os pesquisadores perguntaram quem lava e passa a roupa. Responderam
“só eu” 73,9% das mulheres e apenas 2,3% dos homens. Na limpeza da casa, o machismo brasileiro também impera: 64,3% a 3,7%. O que mais surpreendeu a coordenadora Clara Araújo foi o conformismo da mulher com a dupla jornada: 51% delas disseram nunca entrar em conflito pela falta de participação do parceiro nas tarefas do lar. Ou seja, embora muitas mulheres estejam preferindo ficar sozinhas a casar, grande parte ainda se mantém calada diante da postura que os homens assumem na hora de dividir as tarefas.
A casa do vendedor de automóveis paulista Gláucio de Jesus, 37 anos, é um exemplo. Ali, não se registra nenhuma queixa feminina. E ele assume. “Homem é mais folgado. Eu, por exemplo, sou do tipo que chega, senta no sofá e pede para a mulher: traga um docinho, um refrigerante, ou pegue o cinzeiro para mim.” Sua mulher, Carla Patrícia, 34 anos, também trabalha fora, mas ele alega ter uma carga horária mais pesada. “Trabalho de domingo a domingo e chego mais tarde do que ela todos os dias. Fico cansado. Por isso, ela é tão atenciosa comigo e eu retribuo com muito carinho”, brinca ele.
Por trás de tudo isso está a força dos papéis sociais cultivados ao longo dos séculos, segundo os quais cabe ao homem a exploração do exterior e a provisão da família, e à mulher, o cuidado com a prole e os assuntos domésticos. São conceitos profundamente internalizados no homem e na mulher. Com o desejo feminino de alívio para tantas cobranças, dividindo as responsabilidades do lar, convive um grande apego ao quadro já conhecido. Também na raiz desse conformismo há um jogo de forças, segundo sugere a antropóloga carioca Mirian Golbenberg, da UFRJ: “Quanto maior é o nível educacional, mais exigente e questionadora a mulher fica. Mas muitas monopolizam o espaço doméstico porque abrir mão dele pode significar perda de poder.”
A socióloga carioca Eliane Ribeiro, 46 anos, professora em três universidades, tem uma rotina exaustiva e está sempre viajando como pesquisadora da Unesco. Mãe de Vítor, 10 anos, e Isadora, 15, é casada com o músico Ricardo Calafate há 15 anos. A jornada profissional é de 40 horas semanais e são dela as funções de fazer o supermercado e levar os filhos à escola, aos cursos e às festinhas. Apesar do elevado grau de instrução, Eliane não demonstra impaciência com a falta de divisão das tarefas e diz manter aceso o amor pelo marido. “Ricardo é uma figura maravilhosa, totalmente do bem”, suspira ela. Ricardo considera que faz a parte justa de seu quinhão doméstico. “Nós, homens, estamos evoluindo e caminhando para uma maior conscientização. Reconheço que as mulheres são mais sobrecarregadas, mas tento me policiar e melhorar”, admite.
Erotismo – De qualquer maneira, há um questionamento entre as mulheres. A sobrecarga causada pela falta de divisão de tarefas aumentou a procura por consultórios de terapia de casais. Os homens se queixam da diminuição do interesse sexual feminino. “Elas gastam a energia em múltiplas tarefas e ficam
sem espaço para o erotismo”, aponta a psicoterapeuta Aparecida Favoreto, do Instituto Paulista de Sexualidade. Os homens, mesmo trabalhando muito, se erotizam o dia inteiro por serem mais sensíveis a estímulos visuais. A estimulação das mulheres é mais difusa. “Para despertar a libido, ela precisa de descontração, relaxamento e atenção do parceiro”, explica. Uma das recomendações dos especialistas é que haja uma divisão mais solidária de afazeres. Outra dica importante é a valorização da vida a dois. “É importante que eles tenham momentos só para si”, completa a psicoterapeuta.
Talvez tenha sido esse tipo de cumplicidade que manteve o casamento de Regina Pereira, 66 anos, formada em filosofia. Ela é uma prova de que a ebulição feminina não atinge apenas as mais jovens. Casada há 43 anos com o editor Geraldo Jordão Pereira, foi educada para ser “do lar”. Mas, aos 41 anos, uma crise financeira a obrigou a encarar a vida profissional. Hoje atua na editora Sextante, junto com o marido e os filhos, e tem uma vida confortável. “Foram vários casamentos em um só. Passamos por crises enormes, mas o amor sobreviveu e há solidariedade doméstica da parte dele”, relata Regina.