26/05/2004 - 10:00
O inferno são os outros: a soldado americana Sabrina Harman ri da morte alheia
Na quarta-feira 19, em Bagdá, o recruta americano Jeremy Sivits, 24 anos, foi condenado por uma corte marcial especial a um ano de prisão, rebaixamento de patente e dispensa desonrosa por má conduta. Num acordo com a promotoria, o réu confesso aceitou penas menores em troca de seu testemunho contra seis colegas do 372º Regimento da Polícia do Exército dos Estados Unidos. São todos implicados nos abusos a detentos da prisão Abu Ghraib, no Iraque. As investigações sobre o caso, promete-se, subirão na linha de comando para apurar responsabilidades. Ficava, deste modo, provado mais uma vez que o Estado de Direito democrático possui arsenal de leis apropriado para arrancar confissões de criminosos, sem que seja necessário o uso de tortura. Sivits delatou os companheiros de farda sem ter levado um único safanão.
Várias pesquisas de opinião pública nos Estados Unidos mostram que, em média, 80% dos cidadãos do país são contra a tortura. Resultado semelhante indica a porcentagem daqueles que se dizem chocados com as fotos mostrando maus-tratos a detentos na prisão de Abu Ghraib. A maioria dos americanos concorda com as palavras do presidente George W. Bush, que disse que os abusos cometidos por soldados de Tio Sam são abomináveis e não representam o modo de agir americano. Será? Outras partes das mesmas pesquisas jogam sombras sobre esta convicção. Quando confrontados com a hipótese de que um terrorista imaginário poderia ter informações preciosas sobre um futuro atentado capaz de matar milhares de inocentes, 64% dos entrevistados disseram ser favoráveis à tortura para soltar a língua do preso e, assim, salvar vidas. O professor Alan Dershowitz, um dos maiores criminalistas do país e catedrático da Escola de Direito da Universidade de Harvard, tem defendido este tipo de ação em textos na imprensa e publicações jurídicas. Ele cita como exemplo de eficácia e necessidade da tortura o caso de um militante radical islâmico, Abdul Hakin Murad, preso nas Filipinas em 1995. Murad, que cumpre prisão perpétua nos EUA, foi duramente torturado pela polícia filipina e confessou planos para explosões de 11 aviões de passageiros, o arremetimento de outra aeronave sobre o QG da CIA e um complô para assassinar o papa João Paulo II. Há, porém, quem acredite que as informações arrancadas na base da brutalidade não evitaram catástrofes, apenas fizeram com que os alvos e data dos ataques fossem mudados. O 11 de setembro de 2001 teria sido a consequência, neste caso.
Condenação: Jeremy Sivits fez acordo com a promotoria e pegou só um ano
“Em primeiro lugar, ninguém pode afirmar com certeza que as informações arrancadas de Murad eram verdadeiras ou completas”, diz José Arantes Peña, pesquisador do Centro Internacional Contra a Tortura, organização apartidária para o estudo, documentação e combate a suplícios de prisioneiros. “Para levar a cabo os planos confessados por Murad, seria necessária uma enorme rede de envolvidos, o que complicaria muito as articulações e colocaria em risco o segredo da operação. Além disso, as prisões efetuadas depois da queda da célula terrorista de Murad não foram tão numerosas. Onde andariam os outros participantes desses ataques?”, indaga Peña.
A mesma maioria de americanos que concorda com o emprego de tortura sob certas circunstâncias não tem a menor idéia de como funciona um grupo político clandestino, principalmente aquele que opta pela via terrorista. Pegue-se o exemplo da guerrilha esquerdista brasileira que atuou durante o regime militar. Quando um integrante era preso, a ordem era para que não falasse nada durante 24 horas. Este seria o tempo necessário
para que seus companheiros abandonassem esconderijos, destruíssem documentos e arquivos e comunicassem a todos que os planos para o futuro
haviam sido comprometidos. De modo geral, o mesmo esquema funciona para organizações militaristas em todo o mundo. Assim, quando um militante é preso,
as informações que fornecer depois de um intervalo de tempo específico serão inócuas. “No caso de Murad, é de suspeitar que a al-Qaeda mudou seus planos: bombardearam duas embaixadas dos EUA na África, explodiram dois navios no Iêmen e finalmente atacaram em pleno solo americano nos atentados de 11
de setembro”, diz o professor YeshiYahu Binyamin, da organização de direitos humanos B’Tselem, de Israel.
Horror contínuo: novas fotos de abusos contra prisioneiros de Abu Ghraib
A tortura, além de moralmente execrável – especialmente quando praticada por um país que se pretende exemplo de democracia –, é amplamente condenada como método eficiente para obtenção de informações. “Quando um prisioneiro é torturado, como você vai confiar nas informações que ele confessa? As pessoas fazem qualquer coisa para interromperem a tortura”, disse Michael Baker, veterano de 16 anos na CIA e hoje executivo-chefe de uma empresa privada de segurança, que trabalha no Iraque. Pegue-se o caso de Saddam Saleh Aboud, um dos prisioneiros que aparecem nas fotos tiradas em Abu Ghraib. Ele foi algemado, encapuzado, sofreu sessões de afogamento, recebeu ameaças de estupro e ficou sentado sobre a própria urina por 18 dias. Quando finalmente o interrogaram, com o espancamento habitual dessas ocasiões, perguntaram-lhe se conhecia Osama Bin Laden. “Sim, eu sou Osama Bin Laden. Estou disfarçado”, confessou, sem ironias ou sarcasmo.
“Minha posição é de que não existem provas empíricas de que tortura funciona bem, principalmente na luta contra o terrorismo”, diz o professor Darius Rejali, cientista político e autor do livro Tortura e modernidade: indivíduo, sociedade e Estado no Irã Moderno. Rejali aponta que os policiais filipinos demoraram um mês para “quebrar” Murad. Uma perda de tempo que comprometeria qualquer informação arrancada. Ele também lembra que os torturadores franceses que atuaram na Argélia na guerra de independência não conseguiram uma significativa quantidade de informações com sua brutalidade. E uma investigação nos arquivos da Gestapo revela que os nazistas também não obtinham muitas informações quando torturavam os membros da resistência nos países invadidos. Se estes exemplos não bastarem, os EUA precisam apenas olhar para o caso brasileiro, onde as estatísticas mostram aumento da criminalidade, a despeito da tortura ser aplicada diariamente em várias delegacias de polícia.
AMIGO DA ONÇA
O governo Bush deu ouvidos, credibilidade, estatura política e dinheiro – cerca de US$ 40 milhões – a Ahmad Chalabi (foto), o velho líder de oposição a Saddam Hussein. Na última semana, essa predileção deu uma guinada de 180 graus. Primeiro, os EUA anunciaram que estavam suspendendo a mesada de US$ 335 mil que remetiam como pagamento por serviços de inteligência fornecidos por Chalabi, integrante do Conselho de Governo Iraquiano, o embrião do futuro governo. Em seguida, na quarta-feira 20 contingentes de policiais iraquianos, reforçados por soldados americanos e agentes à paisana – supostamente ligados à CIA – invadiram os escritórios e a residência do ex-protegido do Pentágono. Levaram computadores, documentos e Aras Habib, chefe de inteligência do Congresso Nacional Iraquiano, grupo político de Ahmad.
Chalabi foi um dos que forneceram informações erradas para convencer o governo Bush de que Saddam mantinha arsenal respeitável de armas de destruição em massa. A invasão do Iraque aconteceu, em grande parte, graças aos esforços desse ex-banqueiro, xiita secular, que desde os 13 anos não pisava no país onde nasceu. Mas tudo o que ele disse não passou de um conto do vigário. Aliás, bem apropriado para quem, como ele, foi condenado à revelia na Jordânia por fraude bancária. As acusações agora são mais graves: além de apropriação indébita e fraude com verbas do governo, constam também evidências de furto de carros, sequestros, tortura e ligações com agentes de inteligência iranianos, para quem Chalabi teria passado informações confidenciais, às quais apenas poucos membros graduados do governo Bush tinham acesso.