Desde os tempos de garoto o cantor e compositor Milton Nascimento demonstrou possuir não apenas um gogó especial,
mas um ouvido musical privilegiado. Não por acaso, preferia cantoras a cantores, pois achava que “a voz das mulheres vinha do coração”. A dos homens, pensava ele, era usada “apenas como instrumento de exibição”. Foi com grande preocupação, portanto, que ele se viu crescendo e percebendo seu timbre ficar cada dia
mais grave. Até que a angústia deu lugar
à redenção. “Ouvi Ray Charles no rádio
e senti um alívio. Vi que não precisava
perder o coração para ser homem e cantar.” Ainda assim, a emoção do
registro feminino o acompanhou para sempre. E a essa primeira influência,
outras se somaram. A lista segue com a mãe, Lília, que cantava nas quermesses da mineira Três Pontas e se fazia acompanhar pelo filho talentoso, habituado a suprir com a própria voz a falta das notas
pretas da sanfoninha de quatro baixos. Depois vieram Julie London,
Billie Holiday, Sarah Vaughan, Ângela Maria e outras divas que marcaram a alma do futuro artista. Agora, como retribuição, Milton Nascimento lança Pietá, primeiro trabalho com músicas inéditas desde 1997, uma delicada homenagem às mulheres que o estimularam a soltar a voz
– não raro, com timbre feminino – nas estradas da vida.

Figura marcante em sua carreira, ao lançá-lo profissionalmente e
registrar com o amigo duetos memoráveis, a cantora Elis Regina é duplamente lembrada. Como master da MPB e pelo fato de sua filha,
Maria Rita Mariano, ter sido escolhida para dividir o microfone com Milton em Pietá, nas faixas Tristesse, Voa bicho e Vozes do vento. “Fiquei
louco quando a ouvi cantar. E pensei que só faria esse disco se ela topasse participar.” Católico aberto a todos os tipos de religiosidades,
o cantor diz que sentiu “alguma coisa espiritual diferente” no encontro.
“A mãe dela, Elis Regina, foi quem me lançou. E está me mandando, agora, a filha para eu lançar”, diz, emocionado. “A Maria Rita é uma pessoa que todo mundo estava esperando, inclusive eu”, arremata.

Parcerias – Ângela Maria é mais um ícone reverenciado. Um dos momentos que Milton não esquece se deu quando ouviu a Sapoti cantar na Rádio Nacional pela primeira vez. “Me deu uma batedeira enorme no peito”, lembra. Sua capacidade de se encantar o levou a descobrir novos talentos femininos, em participações especiais nas 16 faixas do CD – Marina Machado e Simone Guimarães. Com Marina, que aparece em Imagem e semelhança, Casa aberta e Vozes do vento, aconteceu uma paixão instantânea. “Fiquei fascinado com a voz dela e falei: quero essa menina na veia!” Simone vem de uma história curiosa. “Anos atrás, eu estava tentando tocar violão sozinho numa praça no interior de Minas
e uma menina de cinco anos ficava grudada, enchendo o saco. Era
a Simone”, recorda, feliz por vê-la adulta. “E maravilhosa.”

A costura de Pietá recebeu um trabalho quase artesanal. “Enquanto
eu juntava as meninas de um lado, do outro ia chegando gente nova, possibilidades de parcerias inusitadas, coisas que eu não podia deixar passar.” O resultado é uma obra repleta de jovens talentos, alguns
deles desconhecidos no mercado fonográfico. Mineiros como Elder Costa, compositor e instrumentista de Pouso Alegre, afilhado do cantor, ou
os belo-horizontinos Flávio Henrique, que assina a música de Casa aberta, e Wilson Lopes, autor da música de A lágrima e o rio. Milton divide também trabalhos com Chico Amaral, colaborador do Skank, Bena Lobo – filho de Edu Lobo – e Telo Borges, irmão de Lô Borges, também presente no disco tocando violão em Quem sabe isso quer dizer amor.

Em forma – Uma das parcerias é descrita por Milton como “um presente”. São os Meninos de Araçuaí, 40 crianças de seis a 17 anos que integram o projeto Ponto de Partida, de Minas Gerais. “Nunca vi tantas crianças com tanta
voz e tanto suingue junto.” A afinidade
é tamanha que o cantor os considera
um marco à altura da comemoração – particular – dos 30 anos do famoso
disco Clube da esquina, realizado com uma mineirada de altíssimo calibre, como Wagner Tiso, Beto Guedes e Lô Borges. Mas ele não cogita em reeditar o trabalho. “Não quero festa. O que tenho ganhado na vida
vale por tudo. A banda que me acompanha é a mais amorosa, no
sentido de gostar do que faz e gostar dos outros. Isso é um presente.” Gregário por natureza, sente-se recompensado por tantas amizades e parcerias bacanas ao longo de três décadas de Clube, 60 anos de vida
e 46 de profissão. A idade não assusta o cantor, que cuida do visual
e, mais importante, da saúde. Anos atrás, Milton precisou dar um tempo na carreira devido a problemas como diabete e colesterol alto, além
de variantes cardíacas. Tudo sob controle, o cantor agora só quer comemorar. “Meu clube está cada vez maior, graças a Deus.” Que
o diga a turma que o acompanha neste ótimo Pietá.