12/12/2002 - 10:00
Vestido de branco, cabelos desgrenhados tocando o nariz adunco, o incansável homem de teatro exala excitação. Com
os olhos faiscando, José Celso Martinez Corrêa abre espaço entre a multidão que
se aglomera em frente ao Teatro Oficina, em São Paulo, às 18h da segunda-feira 2, data do centenário de lançamento do
livro Os sertões, de Euclides da Cunha. Projeta a voz doce, messiânica, entoando os versos “meu cavalo está pesado /
meu cavalo quer voar / atuar, atuar /
para poder voar”. As mãos trêmulas se apóiam nos presentes, convidando todos
a tomarem posto no teatro onde, por quase quatro horas, transcorrerá a primeira
parte da trilogia – A terra, em cartaz aos sábados e domingos – dedicada ao grande clássico da literatura brasileira, um dos poucos publicados pelo engenheiro, militar e homem de letras carioca Euclides da Cunha, que
já mereceu 50 edições entre nós, sendo traduzido para nove línguas.
A maneira escolhida pelo diretor de teatro em sua homenagem, um
dos inúmeros eventos que se multiplicaram esta semana pelo País, obedece a uma leitura literal do texto de Cunha, que cobriu para o
jornal O Estado de S.Paulo a vitória das forças governamentais sobre
os rebelados de Antônio Conselheiro reunidos em Canudos, no nordeste da Bahia, e finalmente dizimados em 5 de outubro de 1897. De uma maneira simplificada, na qual até o próprio escritor acreditava a
princípio, Canudos simbolizava os retrógrados monarquistas e as
forças governamentais, a república modernizadora.
Na verdade, os seguidores de Conselheiro foram esmagados por engrenagens movidas a interesses maiores, como a atuação da Igreja contra beatos e as pressões de proprietários de terras. Atualizando o conflito, Zé Celso transformou Canudos no Teatro Oficina e as forças do governo no Grupo Sílvio Santos, que há anos ameaça construir um shopping cultural abocanhando o projeto original da arquiteta Lina Bo Bardi. Numa de suas falas, ele chama o presidente eleito de “Lula-Conselheiro”. Mais literal, impossível. Não foi à toa que o senador Eduardo Suplicy, inclusive, acompanhou a apresentação cotejando o texto com Os sertões – campanha de Canudos (Ateliê Editorial e Imprensa Oficial, 926 págs., R$ 64), edição comentada de Leopoldo M. Bernucci, um dos inúmeros lançamentos literários que marcam a data comemorativa.
Apuro – Euclides da Cunha tirou a estrutura de Os sertões da concepção naturalista do historiador francês Hippolyte-Adolphe Taine, segundo a qual a vida de um povo é determinada por três fatores – o meio (A terra), a raça (O homem) e o momento (A luta), resultante das duas primeiras causas. O Oficina Uzyna Uzona promete O homem para março e A luta para setembro, devendo apresentar em dezembro a trilogia, in loco, no Morro da Favela, Bahia, onde ficava Canudos. Quando foi lançado cinco anos após a batalha final, a quarta e única a não ser rechaçada pelos fiéis de Conselheiro, Cunha temia que o assunto não fosse mais momentoso, cuidando da parte técnica e do estilo. A professora de literatura Walnice Nogueira Galvão, autora de vários estudos sobre o tema, atribui o sucesso do livro à sua admirável qualidade literária. Segundo ela, não conheceríamos a Guerra de Tróia não fosse a Ilíada e a Odisséia, de Homero. Não é à toa que Os sertões inspirou outros livros, como A guerra do fim do mundo (Companhia das Letras, 706 págs., R$ 50,50), do peruano Mario Vargas Llosa; Veredicto em Canudos (Companhia das Letras, 176 págs., R$ 23), do húngaro Sándor Márai; e o recente Quinta expedição (Editora Ponto e Vírgula, 435 págs., preço a definir), do baiano Oleone Coelho Fontes.
Em razão das inúmeras correções feitas por Cunha no primoroso texto, foi lançado até um Dicionário de verbos de Os sertões (Edições Demócrito Rocha, 336 págs., R$ 32 ), do erudito cearense Salomão P. Maia. Aliás, existem “euclidianos” na mesma medida em que existem “machadianos”. Na semana que passou, eles se reuniram em inúmeros seminários, o principal deles organizado pela Universidade Federal da Bahia. Eles podem ainda se deliciar com Os sertões de Euclides da Cunha. Releituras e diálogos (Unesp, 205 págs., preço a definir), organizado por José Leonardo do Nascimento; O clarim e a oração – cem anos de Os sertões (Geração Editorial, 598 págs., R$ 58), coordenado por Rinaldo de Fernandes; e o inédito Canudos – história em versos (Hedra, 344 págs., R$ 38), contendo poemas de um dos fiéis de Conselheiro, Manuel Pedro das Dores, o Bombinho, organizado por Marco Antonio Villa. Para os principiantes recomenda-se o próprio Os sertões (Nova Cultural,
366 págs., R$ 9,90), devidamente acompanhado pelo excelente Os sertões (PubliFolha, 97 págs., R$ 9,90), manual prático e completo
sobre o assunto escrito pelo professor de teoria literária Roberto
Ventura, tragicamente vitimado por um acidente de carro em agosto,
e a quem Zé Celso dedicou a apresentação de A terra na segunda-feira, assistida pela viúva, a artista gráfica Marcia Zolatz.
Magnetismo – O mote euclidiano chegou várias vezes às telas,
como no magistral Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha,
que está sendo lançado em DVD (Versátil Home Vídeo, R$ 50) em
versão remasterizada e com três horas de extras. Um dos personagens
da tragédia sertaneja, o beato Sebastião (Lidio Silva) se considera seguidor de Antônio Conselheiro. O magnetismo exercido pela região – Canudos foi incendiada e submersa por um açude – também
atraiu fotógrafos de todas as partes do mundo.
A própria edição original de Os sertões já trazia fotos tiradas por Flávio de Barros, o único fotógrafo presente nos acontecimentos. Devidamente recuperadas, as 70 imagens de Barros poderão ser vistas no Cadernos de fotografia brasileira Vol. 1 – Canudos (Instituto Moreira Salles, 308 págs.,
R$ 63), que inclui outras 230 de nomes como Pierre Verger, Cristiano Mascaro, Mario Cravo Neto e Juca Rodrigues, de ISTOÉ, lançado simultaneamente aos Cadernos de literatura brasileira Vol. 13 e 14 – Euclides da Cunha (Instituto Moreira Salles, 416 págs.,
R$ 70), com farta documentação sobre o autor e a obra. Ambas as publicações foram lançadas no vernissage de Canudos, o mais completo painel sobre o assunto, em cartaz até março de 2003 no Instituto Moreira Salles carioca, percorrendo depois outras cidades.
Euclides da Cunha foi morto em 1909 aos 43 anos pelo cadete Dilermando de Assis, amante de sua mulher, Ana Emília Ribeiro da Cunha. Sete anos depois, Assis fuzilou Euclides da Cunha Filho, que tentava vingar a morte do pai. Como observou Roberto Ventura em seu pequeno manual, um fim contraditório para quem escreveu um manifesto contra a violência.