30/08/2002 - 10:00
Entre muitas risadas e sustos durante conversas sobre a convulsão do mundo com o compositor, cantor e escritor carioca Jorge Mautner, o baiano Caetano Veloso confessa ter sentido medo. Para exorcizá-lo, propôs ao amigo de longa data, conhecido em Londres, à época do exílio, em 1970, que transformasse o temor em música. Assim surgiu o álbum Eu não peço desculpa, uma divertida e ao mesmo tempo séria confederação de sons e loucura cantada e, em grande parte, assinada pelos dois. Como diz Caetano, no geral são canções pop-paródicas. Um bom exemplo é a faixa de abertura Todo errado, de Mautner, uma guarânia de toques propositadamente bregas, acentuados pelo violino e pelas gotas eletrônicas de teclados que dão a cor exata ao equívoco de um coração psicótico, neurótico, que teima ter alguém eternamente a ele colado. Desacertos do coração, aliás, parecem fazer parte da vida poética do compositor. Em 1987, quando excursionou com Gilberto Gil fazendo o show O poeta e o esfomeado, de maneira especial ele já introduzia a bela versão Só chamei porque te amo, declamando que o músculo das emoções fica bem no meio do peito. “Mas comigo, a anatomia ficou louca/sou todo, todo coração.”
Num clima diverso, o samba-exaltação Feitiço faz Caetano reviver a irreverência tropicalista com uma herética provocação à letra de Feitiço da vila, canção de Noel Rosa e Vadico: “Nosso samba/tem feitiço,/tem farofa,/tem vela e tem vintém”, o contrário do que diz a música eternizada na voz de Aracy de Almeida. “E tem também guitarra de rock’n’roll,/batuque de candomblé”, arremata, tropicalistamente, a dupla que faz trio com Gil em participação especial. Maracatu atômico, de Nelson Jacobina – o eterno parceiro – e Mautner é “o hino do porta-estandarte do ser que é a cultura brasileira”, como bem afirma o co-autor. O arranjo, incluindo programação eletrônica em conluio com uma percussão brasileiríssima, fecha a definição sonora do que é um maracatu atômico.
O namorado é uma colagem de jovem guarda, Rolling Stones e Carlinhos Brown que deságua em sons orientais chacoalhados por uma latinidade à la Carlos Santana. Puro tropicalismo revisto. Lágrimas negras (Mautner/Jacobina), maravilhosamente gravada por Gal Costa, em 1974, no recém-relançado álbum Cantar, recorda a beleza eterna desta canção de cunho triste, realçada pelo canto aveludado de Caetano Veloso, que empresta necessária e total afinação no encontro com o deboche de Jorge Mautner. Para arrematar o clima de brincadeira, o baiano conta que na porta da sala minúscula do estúdio onde foi produzido o disco estava estampada uma foto de Luana Piovani, que por sinal fez uma visitinha num dia de gravação. Não se sabe se por ato falho os dois sessentões compuseram a canção Tarado.