Dois tempos: o motorista Barrios, logo após o “atentado” de 1999 (abaixo), e na última quinta-feira: “Acho que iam me matar”

Durante cinco anos, o motorista Víctor Raúl Barrios Rey sustentou uma mentira que foi o principal pilar da versão oficial, montada por políticos paraguaios – entre eles o atual presidente da República, Nicanor Duarte Frutos –, do atentado que teria matado o então vice-presidente Luís María Argaña. Segundo essa versão, em 23 de março de 1999, Argaña foi assassinado em uma emboscada, numa rua central de Assunção, e os responsáveis pelo crime seriam adversários políticos do vice-presidente. Agora, dizendo-se abandonado e ameaçado, Barrios resolveu botar a boca no trombone. “Doutor Argaña já estava morto quando foi colocado no carro naquela manhã. Como ele morreu eu não sei. Estava fazendo serviço de limpeza quando fui convocado para dirigir o carro. Hoje, acho que iam me matar”, disse Barrios a ISTOÉ na manhã da quinta-feira 29. Bem mais gordo que em 1999, o motorista carrega no rosto os sinais dos ferimentos provocados pelo atentado. A conversa com a reportagem durou cerca de dez minutos. Arredio e assustado, Barrios só concordou em receber ISTOÉ depois de duas semanas de insistência diária. Mesmo assim, se recusou a posar para fotos e só falou na presença de seu advogado. Barrios teme ser morto a qualquer instante. Nunca sai sozinho de casa e carrega uma pistola na cintura praticamente 24 horas por dia. “Estamos estudando uma maneira de lhe dar proteção”, disse Benjamín Riveros Martínez, advogado de Barrios.

Mario Valdez/Reuters

Envolvido: segundo testemunhas, o presidente Nicanor participou da trama: revelações agitam a política

Nesses anos todos, o motorista manteve a versão oficial porque políticos e familiares de Argaña lhe prometeram, em troca, uma polpuda soma em dinheiro, além de um bom emprego. A promessa, contudo,  não foi totalmente honrada. O papel desempenhado por Barrios, sobrevivente da emboscada de 1999, foi fundamental para a versão oficial porque logo depois do crime ele disse que os suspeitos presos pela polícia eram os mesmos pistoleiros que atacaram a Nissan Patrol bordô que ele dirigia naquela manhã.
Essa declaração foi responsável pela condenação de quatro pessoas, que teriam ligações com o ex-presidente Raúl Cubas Grau e o general Lino César Oviedo, ex-comandante do Exército. “Não tive outra alternativa a não ser mentir. Mas agora posso dizer que os pistoleiros que atacaram nosso carro não foram aqueles que a polícia prendeu”, admite Barrios. Essa confissão, segundo o advogado Martínez, desmonta a versão apresentada oficialmente.

Mais um: depois de Molinas (abaixo), um funcionário
do Ministério da Saúde denuncia a conspiração: “Fomos impedidos de socorrer o dr. Argaña”

O reaparecimento do motorista ocorre no  momento em que o fantasma de Argaña volta a assombrar o Palácio de López, sede do governo paraguaio. Uma semana antes, Luis Recasens Molinas, antigo secretário particular de Argaña, revelou a ISTOÉ que o vice-presidente fora vítima de um mal súbito quando estava em companhia de uma amante, a ex-apresentadora de tevê Fabiana Casadio. Segundo Molinas, o atentado não passou de uma tenebrosa armação produzida por políticos de alto coturno, entre eles o presidente Duarte Frutos – então dirigente do Partido Colorado. Molinas, que transportou o corpo de Argaña do apartamento da amante até a residência da família, só resolveu contar o que sabe porque se sentia ameaçado. Assim como para o motorista Barrios, também a ele foi oferecida uma dinheirama e emprego privilegiado. O emprego veio, mas o dinheiro não. Depois de contar o que sabia para ISTOÉ e registrar suas declarações em um cartório de Assunção, o ex-secretário particular de Argaña fugiu para o Brasil e, na semana passada, deu entrada com um pedido de asilo político no Ministério da Justiça.

O advogado Martínez afirma que a confissão de Barrios desmonta a versão oficial do crime: pedido de proteção

As provas – Em agosto do ano passado, reportagem de ISTOÉ, com base em pareceres técnicos emitidos por legistas do Brasil e da Argentina, já havia confirmado que Argaña estava morto quando ocorreu a emboscada contra a Nissan Patrol. O que faltava para desmontar de vez a versão oficial eram provas testemunhais. A primeira surgiu há um mês. Em 29 de março, Ladislaa Leiva de Aguilar, viúva de Gumercindo Aguilar, declarou ao jornal ABC Color que políticos ligados a Argaña, como os senadores Nelson Argaña (filho do vice-presidente) e Juan Carlos Galaverna, além de Oscar Germán Latorre (atual procurador da República) e o ex-presidente Luiz González Macchi, entre outros, contrataram seu marido para que ele dissesse que havia participado de uma reunião em que políticos oviedistas teriam tramado a morte de Argaña. Em troca, prometeram US$ 5 mil e emprego para Gumercindo, um conhecido alcaguete da polícia. De fato, depois do atentado o dedo-duro começou a trabalhar para a Presidência da República, como eletricista. Os US$ 5 mil, entretanto, não passaram de promessa e Gumercindo estava cobrando isso e ameaçando abrir o bico quando foi assassinado, em setembro do ano passado.

Foi o destino de Gumercindo que acabou induzindo depoimentos como os de Molinas e Barrios. Na quarta-feira 28, a reportagem de ISTOÉ localizou na periferia de Assunção outro personagem da trama macabra. Trata-se de um funcionário do Ministério da Saúde que estava a bordo da primeira ambulância a chegar ao local do atentado. Esse personagem pede para manter seu nome em sigilo até que se sinta em segurança. “Fomos impedidos de socorrer o doutor Argaña e até de nos aproximarmos do carro baleado. Simplesmente tiraram o segurança ferido de dentro da caminhonete, sem o menor cuidado, e o colocaram na ambulância. O doutor Argaña foi levado em outra ambulância cerca de dez minutos depois”, conta.

Rumo ao Brasil – O caminho trilhado por Molinas, que pediu asilo no Brasil, deverá ser seguido também pelo motorista Barrios. “É evidente que ele precisa de proteção. Estamos estudando como fazer isso há mais de um mês”, diz o advogado Martínez. Como o falecido Gumercindo, Barrios reclama de jamais ter visto a cor do dinheiro prometido pelos políticos argañistas, embora parte do indecente acordo proposto em 1999 tenha sido cumprida. Até hoje ele tem um cargo na hidrelétrica estatal Yacyretã e sua mulher trabalha no Instituto de Provisión Social (IPS).

Apesar das novas e bombásticas revelações, em Assunção os políticos fizeram ouvidos de mercador. Procurado pela reportagem de ISTOÉ, o presidente Duarte Frutos preferiu não se manifestar. Através de seu secretário de imprensa, José Duarte, informou que estava com a agenda lotada para receber a revista. Senadores e deputados alegaram que eventos do Mercosul e do Parlatino (Parlamento Latino-Americano) que estavam ocorrendo no Paraguai os impediam de receber a revista. O único a se manifestar foi o senador Alejandro Velázquez, da União Nacional dos Cidadãos Éticos (Unace), partido ligado ao general Oviedo. Ele disse que há fatos novos que justificam a reabertura das investigações sobre o caso Argaña. “Pessoalmente, não acredito no envolvimento do presidente Nicanor na trama do atentado, mas acho que ele tem todo interesse em desvendar a verdade”, afirmou Velázquez. Investigar tudo até as últimas consequências também é o desejo da ex-apresentadora de tevê Fabiana Casadio. Casada e mãe de três filhos, ela foi apontada por Molinas como a amante em cujos braços morreu Argaña. Indignada, ela reagiu negando qualquer relação com o vice-presidente e disse não entender as razões que fizeram Molinas citar seu nome nesse caso escabroso.

Se oficialmente a maioria dos políticos paraguaios resolveu tapar o sol com a peneira, nos bastidores existe uma movimentação provocada pelas novas revelações. Os advogados do ex-major Reinaldo Servín, condenado em última instância a 25 anos como um dos autores do assassinato de Argaña, devem pedir a reabertura do caso. No Brasil, a repercussão da reportagem de ISTOÉ levou o senador Álvaro Dias (PMDB-PR) a ocupar a tribuna para pedir que a Organização dos Estados Americanos (OEA) assuma a investigação do caso Argaña.