05/05/2004 - 10:00
Ganho: Joana e a pequena Maytê aprenderam a olhar a vida de maneira mais positiva depois da enfermidade
Os cachinhos no cabelo e as bochechas rosadas de Maytê de Carvalho remetem ao mais puro retrato da infância. Aos oito anos, a menina exibe uma vitalidade encantadora, deixando para trás o tempo em que sua pele era pálida e os olhos sem brilho – resultado do avanço de uma leucemia linfóide aguda, um dos tipos mais comuns de câncer infantil. Maytê tinha três anos quando recebeu o diagnóstico. Na ocasião, os médicos levaram dois meses para detectar o problema. Infelizmente, situação ainda frequente no Brasil, já que o câncer infantil geralmente apresenta sintomas semelhantes aos de um resfriado, como febre e dor de garganta, dificultando sua descoberta. A diferença é que os sinais da doença não desaparecem com o tempo. Foi isso o que deixou desconfiada a avó de Maytê, Natália Ferreira, e o que a levou a procurar ajuda. Maytê se submeteu ao tratamento convencional – à base de quimioterapia – e se curou. A doença fez a menina amadurecer. “Foi duro, mas não desanimei. Entendi, por exemplo, que a gente perde amigos e ganha outros”, conta.
Casos de sucesso como o de Maytê tornam-se cada vez mais comuns. Dados da Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica mostram que os índices de cura do câncer infantil no País – tumores em crianças e adolescentes – giram em torno de 80%. As taxas aumentam a esperança das sete mil crianças e dos cinco mil adolescentes que a cada ano se tornam novas vítimas da doença no Brasil. A vitória é expressiva. Na década de 60, cerca de 80% dos pacientes morriam. A inversão da estatística se deve a alguns progressos. Um deles observado na área médica, com o uso de drogas mais modernas, combinadas de maneira a ter maior eficácia e a produzir menos danos colaterais.
Suporte: Munir e sua mãe, Alessandra, foram beneficiados com apoio médico e psicológico
O outro avanço veio de uma constatação óbvia: a de que os doentes eram crianças e, por isso, deveriam ser tratados como tal. Visto assim, parece algo sem importância, mas no dia-a-dia do tratamento essa simples compreensão teve efeito revolucionário. Os pequenos necessitam, entre
outras coisas, de um esforço especial para que não
percam a fantasia, combustível que os mantêm acordados, vivos. “A criança que recebe atenção, amor e tratamento digno tem mais chances de se recuperar”, diz Vicente
Odone Filho, oncologista do Instituto da Criança (SP).
“Hoje, a preocupação com o tratamento vai além dos remédios. Nos esforçamos para que a criança continue brincando, estudando”, completa Jiseh Loss, chefe da Oncologia Pediátrica do Hospital da Criança Santo
Antônio, de Porto Alegre.
Essa percepção obrigou a mudança de conceitos. Internações prolongadas, por exemplo, são evitadas tanto quanto possível. O melhor é que a criança vá ao serviço de atendimento para receber as medicações, mas volte para casa. O procedimento é adotado no Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer (GRAACC), centro de referência em tumores infantis ligado à Universidade Federal de São Paulo. “A medida permite ao paciente continuar convivendo com sua família e amigos. E diminui os riscos de infecções que podem acontecer durante a internação”, explica o médico Sérgio Petrilli, superintendente da instituição.
Brinquedos – A mudança na abordagem do câncer infantil também incentivou a criação de serviços específicos para essa população. O fenômeno é internacional, e já existem alguns centros no Brasil. As instalações apresentam algumas peculiaridades. Nesses prédios, há, é claro, a enfermaria, o laboratório, os centros de exames de imagem. Mas também há salas de recreação, com brinquedos, locais onde eles estudam enquanto estão internados e detalhes, como papel de parede com temas infantis, que amenizam o sofrimento. Há duas semanas, por exemplo, foi aberta no GRAACC a primeira quimioteca do Brasil. O espaço foi criado para que a quimioterapia não seja tão traumática para a criança. Há jogos, brinquedos e até videogame, objetos que os pacientes podem usar enquanto fazem o tratamento.
Na ala infantil do Hospital do Câncer A.C. Camargo, em São Paulo, a criança pode continuar a ter aulas durante a internação. E a criançada passa um bom tempo brincando ou em aulas de desenho. Além de distraírem, essas atividades são um recurso que ajuda a criança a expressar o que sente. Às vezes, é na brinquedoteca que ela entende, de forma lúdica, os procedimentos que enfrentará.
Oferecer esse tipo de atendimento é um grande passo. “A qualidade de vida das crianças melhorou”, diz o oncologista Alois Bianchi, 73 anos, um dos principais especialistas em câncer infantil do País. Porém, os médicos perceberam que era preciso ir além. Muitos dos pacientes do interior desistem de se tratar porque não têm condições financeiras para se manterem nos grandes centros durante o tratamento. Para contornar o problema, estão se espalhando pelo País as
chamadas casas de apoio. São residências montadas para abrigar a garotada que não tem onde ficar. Cada um tem direito a um acompanhante. Esse suporte proporciona apoio prático, assim como benefícios diretos porque diminui a taxa de abandono do tratamento.
Diferente: a quimioteca do GRAACC tem brinquedos e até videogame
Um dos serviços do gênero é a Associação de Apoio às Crianças com Câncer, em São Paulo. A entidade tem 72 leitos e conta com o auxílio de 150 voluntários. As crianças e os adolescentes lá abrigados podem se tratar em qualquer hospital da cidade. Os familiares que acompanham o paciente também têm atividades, como aulas de artesanato. “Tentamos reproduzir da melhor maneira possível a imagem do lar da criança”, diz Wanir Cavalcanti Rotta, fundadora da associação.
O entendimento de que os pequenos necessitam de atenção especial também estimulou a integração de outros profissionais às tradicionais equipes médicas. Nutricionistas especializadas – conhecedoras da arte de saciar as vontades infantis sem perder de vista suas necessidades nutricionais – e psicólogos estão entre os que já fazem parte do time de atendimento. A psicologia ajuda o doente e seu familiar. Afinal, qual o pai ou a mãe que não precisa de um amparo extra quando descobre que o filho – muitos ainda bebês – tem câncer? Foi pensando nessa carência que vários centros criaram serviços nos quais os pais participam de palestras para se informarem sobre a doença e aprenderem a lidar com suas próprias emoções.
Experência: Manuela se curou e hoje atende crianças vítimas da doença
Emoções – Entre as situações mais comuns levadas aos psicólogos estão a insegurança do que irá acontecer e uma sensação de culpa de ter feito algo que possa ter desencadeado a doença. “Ajudamos as pessoas a lidar com esses sentimentos. O apoio psicológico diminui a ansiedade, auxiliando a família e a criança a manifestarem uma reação melhor diante da doença”, explica Cláudia Baroni, psicóloga especializada em oncologia, de São Paulo. É frequente, ainda, que os pais tenham dificuldade em lidar com os outros filhos. Às vezes, os irmãos se sentem rejeitados porque a atenção da casa está voltada para apenas um deles. “Deve-se conversar para explicar a situação e, quando der, dedicar um tempo para o restante dos filhos”, sugere Maria Thereza Cruz-Bastos, psiquiatra do Hospital A.C. Camargo. A vendedora de cosméticos Alessandra Gonçalves sabe como esse conselho é importante. Seu filho Munir, sete anos, teve um tipo gravíssimo de câncer no cérebro, diagnosticado quando tinha três anos. Na época, ela ficou totalmente envolvida com o tratamento do menino. Seu esforço valeu a pena. Munir hoje é um moleque brincalhão, forte e confiante. “Sabia que ia sair dessa. Um dia a mamãe “tava” chorando e eu disse pra ela não ficar triste porque vi um anjo que me disse que eu não ia morrer”, conta o menino. Porém, quando o tratamento de Munir acabou, Alessandra teve de contornar outra dificuldade. Seu filho mais velho, Samir, ficara rebelde. Chegou a ser expulso da escola. Alessandra procurou auxílio com os psicólogos. “Aprendi a lidar com ele e a reconhecer suas necessidades também”, diz a mãe.
Enquanto parte dos especialistas investe na criação dessa rede de apoio para as famílias e os pacientes, outra tenta prever os problemas que podem acontecer no futuro. Há cinco anos, o Hospital A.C. Camargo criou o grupo Gepetto – o nome é uma referência ao personagem criador do boneco Pinóquio. O objetivo do programa é estudar os efeitos do câncer a longo prazo. A intenção é saber se a doença causou sequela física, como esterilidade ou o surgimento de outro tumor, ou deixou marcas emocionais – medo de hospital ou de agulha, por exemplo. “A cura não pode ser só biológica. Precisa ser social e psicológica”, diz Luiz Fernando Lopes, oncologista e coordenador do Gepetto. Foi o que aconteceu com Joana Cornalbas, 23 anos. Na infância, ela teve leucemia linfóide aguda. A doença foi vencida, mas algumas marcas ficaram. “Ainda me lembro das sensações das agulhas e dos cheiros dos líquidos e tenho pânico só de pensar. Porém, as sequelas representam pouco, perto do que conquistei. Hoje me sinto feliz com as pequenas coisas, como almoçar com minha mãe”, conta Joana.
Esse tipo de reação mostra que poucas doenças promovem mudanças tão profundas quanto o câncer. E as transformações ocorrem com o paciente e seu familiar. A ex-decoradora de interiores Vitória Herzberg, 58 anos, mudou sua vida por causa da enfermidade. Em 1989, ela perdeu para o câncer o filho Daniel, na época com 18 anos. “Sua doença virou minha vida de ponta-cabeça. Eu era decoradora de interiores. Se o tom do amarelo do sofá não estava bom, era um horror. Hoje, até o sofá deixou de ser importante. Se precisar, sento no chão”, conta. Vitória transformou a dor da morte do filho numa forma de ajudar. “Quis dar um sentido a essa perda. Percebi que aqui havia muita falta de informação”, lembra. Em 1999, ela fundou o Day Care, uma ONG destinada a fornecer informações sobre a doença por meio de livretos e revistas. O material é distribuído em consultórios e hospitais.
Para as crianças, toda essa evolução significa esperança. Sentimento que a estudante de medicina Manuela Segredo, 23 anos, faz questão de transmitir aos pequenos pacientes que atende. “Quando eles me vêem sorrindo, acreditam que a cura é possível”, diz. Manuela teve leucemia na infância e hoje atende crianças com câncer no ambulatório do hospital ligado a sua faculdade, em Santo André (SP). “Quem sabe no futuro eu mesma me especialize em oncologia pediátrica. É uma forma de devolver o que recebi”, sonha.