05/05/2004 - 10:00
Palco: os 50 jovens do Projeto Dança Comunidade, coordenado pelo coreógrafo Ivaldo Bertazzo, resgataram a auto-estima por meio da arte
Eles temem a violência, correm contra o desemprego, são contra a descriminalização da maconha e a favor da diminuição da maioridade penal. Ouvem Zezé di Camargo e Luciano, admiram Ayrton Senna e preferem continuar na casa dos pais. Mas adoram a sensação de liberdade e acham que podem mudar o mundo. O mapa da juventude no Brasil surpreende por combinar traços de conservadorismo com pinceladas de maturidade. Foi o que mostrou a mais abrangente pesquisa com jovens já feita no Brasil, divulgada na semana passada. Realizado pelo Instituto Cidadania – ONG fundada por Lula há quase 15 anos e responsável por programas como o Fome Zero, o levantamento faz parte do Projeto Juventude, que tem como objetivo municiar os governos federal, estaduais e municipais com elementos úteis para a elaboração de políticas públicas direcionadas a essa faixa etária. A turma de 15 a 24 anos tachada de geração Coca-Cola – e, mais recentemente, de geração zapping (aquela que faz tudo ao mesmo tempo e não se concentra em nada) – espelha idéias, temores, crenças e hábitos semelhantes aos de outras idades. Entre novembro e dezembro de 2003, foram aplicados 3.500 questionários domiciliares, cada um com 158 questões, em todos os Estados, distribuídos por região de moradia, gênero e idade, conforme padrões sugeridos pelo Censo.
O vendedor Reinaldo Oliveira sonha com o emprego ideal: das oito da manhã às cinco da tarde, com remuneração justa e convênio médico
Em Brasília, o Grupo Interministerial da Juventude, coordenado pelo ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência, Luiz Dulci, acompanha os trabalhos e promete aproveitar os resultados da pesquisa na formulação de programas. “As necessidades dos jovens sempre foram tratadas de forma fragmentada. Queremos criar políticas nacionais que integrem os ministérios”, diz Luiz Dulci. “Muitas vezes, as soluções mais criativas partem da sociedade civil. E o Projeto Juventude teve o ineditismo de ouvir os jovens para saber quais são suas demandas”, elogia. Mais do que um desejo, resolver a falta de oferta de trabalho é obsessão da grande maioria dos jovens. “As duas maiores preocupações apontadas pela pesquisa são o desemprego e a violência”, destaca um dos diretores do Instituto Cidadania, Pedro Paulo Branco. “Entrar no ensino médio ou na universidade não é mais garantia de ingresso no mercado. Ao mesmo tempo, aumenta a situação de risco da população de 15 a 24 anos, maior vítima da criminalidade”, diz.
Contrato – A educação não é a principal atividade dos jovens. Há mais brasileiros de 15 a 24 anos no mundo do trabalho (76%) do que nas salas de aula (64%). Isso não significa que eles tenham contrato e carteira assinada, já que dos que realizam alguma atividade econômica, 65% estão no mercado informal e 86% ganham ou ganhavam menos de dois salários mínimos por mês em sua última atividade. O número de jovens à procura de emprego (40%) é maior do que o número de empregados (36%). Há dois meses sem trabalho, o paulista Reinaldo Ferraz de Oliveira, 23 anos, sonha com o emprego ideal: das oito da manhã às cinco da tarde, perto de casa, com remuneração justa e convênio médico. O que era para ser regra virou objetivo de vida. Segundo a pesquisa, se pudessem criar uma cláusula, os jovens decretariam o “direito a um emprego, mesmo sem experiência”.
A carioca Luana Felippe tem medo de sair de casa à noite e de pegar ônibus: “Moro perto de um morro e estou acostumada a ouvir tiroteios”
Reinaldo tem experiência como vendedor. Mas isso não significa muito. “Quando comecei a trabalhar, aos 16 anos, a situação era melhor. Hoje, quem consegue emprego não está livre do terrorismo psicológico. Você é explorado e, se reclamar, ainda escuta o chefe dizer que existe um monte de gente para ocupar seu lugar”, reclama. Ele mora em Embu, na Grande São Paulo, com a mulher, Edna, que também está desempregada e grávida de quatro meses. Sabendo que a família vai aumentar, Reinaldo distribui seu currículo por aí. “Terei de sustentar três pessoas. Pelo menos agora, ninguém me chama de vagabundo. Quando se é desempregado e solteiro, a gente se sente ainda mais marginalizado”, diz.
A produtora cultural Maíra Castilho acredita que a família é o que dá segurança. Ela mora com a mãe, Nani Bernardo, e não pretende sair de casa tão cedo: “Trocamos confidências e conselhos”
Mais do que garantia de futuro, trabalhar é sinônimo de dignidade em um país que trata como heróis jovens que conseguem o primeiro emprego. “A passagem para a vida adulta acontece quando a pessoa se torna capaz de produzir e reproduzir. Hoje, parte da problemática juvenil está no degrau entre esses dois momentos. Mesmo capaz de reproduzir, o jovem ainda não conquistou sua capacidade produtora, sua independência”, afirma a socióloga Helena Abramo, parceira do Projeto Juventude na avaliação dos dados. “O sociólogo francês Pierre Bourdier diz que juventude é apenas uma palavra. Para os jovens, é um período que termina com a maturidade e a capacidade de cuidar de si mesmos. Mas suas preocupações são muito parecidas com as de seus pais. Basta verificar que violência e emprego são os assuntos mais recorrentes na pesquisa”, diz Helena.
A falta de emprego é considerada o principal problema do Brasil, seguido pelo excesso de violência. Se pudessem, em um passe de mágica, mudar qualquer coisa em sua vida ou no mundo, 29% dos entrevistados acabariam com a violência, a resposta mais comum. Segundo estudo recente da Unesco, a faixa etária dos 15 aos 24 anos concentra a maior proporção de vítimas de homicídio no Brasil. Em 2000, houve 27 homicídios a cada 100 mil habitantes. Essa taxa sobe para 57 quando considerados apenas os jovens. No mesmo ano, foram assassinadas 2.220 pessoas com exatos 20 anos, a idade mais crítica. “Existem jovens ligados a pastorais, movimentos culturais e de ação comunitária e existem aqueles ligados ao tráfico de drogas e à criminalidade. Todos têm suas necessidades”, alerta Jorge Werthein, diretor da Unesco no Brasil.
Pânico – De todos os Estados do País, o Rio de Janeiro é o que apresenta o maior índice de homicídios de jovens. Dados como esse, aliados às frequentes notícias de conflitos entre traficantes, só aumentam o pânico dos moradores da capital. “Eu moro perto de um morro e estou acostumada a ouvir tiroteios. O crime acaba prendendo a gente em casa. Penso duas vezes antes de sair à noite”, diz a estudante carioca Luana Felippe. Aos 18 anos e sem carteira de motorista, de tanto ouvir histórias, a moradora do Rio Comprido (bairro da zona norte cercado por favelas) não quer nem andar de ônibus. “Muitos amigos meus já foram assaltados. Um dia, um ladrão tentou roubar meu amigo pela janela do ônibus”, conta. Mesmo apaixonada pelo Rio, Luana está decidida a deixar a cidade assim que concluir o curso de ciências sociais. “Quero me mudar para uma cidade onde possa andar sem medo de criminosos. Este não é o ambiente que desejo para meus filhos”, lamenta.
Na maioria das vezes, o estreitamento da relação com a família serve de estratégia para driblar o medo das ruas e do futuro. “Em um meio social hostil, com desemprego e violência, a família vira porto seguro”, avalia o sociólogo Gustavo Venturi, diretor da Criterium, realizadora da pesquisa. Mesmo que o controle dos pais seja considerado, por muitos jovens, empecilho para o exercício da liberdade, é nítido o caso de amor entre essa geração e seus pais. Para 48% dos entrevistados, o apoio da família é o fator mais importante em suas vidas, à frente do esforço pessoal, preferido por 32% deles. Três quartos da amostra consideram a vida na família mais importante para o amadurecimento do que a vida na escola, na rua, no trabalho ou na Igreja.
Relações – A produtora cultural paulista Maíra Castilho, 21 anos, acha que, antes de estabelecer novas relações, a família é o que dá segurança. Maíra mora e trabalha com a mãe, Nani Bernardo, e diz que a relação entre as duas é de muita amizade. “Como ela é liberal, trocamos confidências e conselhos. As brigas são passageiras e a gente tem certeza do amor de uma pela outra”, comenta ela, que não pretende sair de casa tão cedo.
Se pudessem decidir sem se preocupar com nenhum fator (lê-se dinheiro em primeiro lugar), apenas 17% dos jovens que moram com os pais sairiam de casa. Quase a metade nem sequer tem planos de morar sem eles. Mesmo entre os maiores de 21, apenas 22% sairiam já. “Isso não significa que a juventude é acomodada. Ela é apenas mais longa do que há alguns anos”, diz Venturi. A mesma juventude que não quer sair de casa e considera a liberdade para curtir a vida sem compromissos a maior vantagem da idade não economiza elogios a valores como solidariedade e respeito às diferenças. Para Venturi, que viveu sua juventude nos tumultuados anos 70, isso demonstra uma evolução, pelo menos na teoria, em relação à sua geração. “Em nossa época, lutávamos por justiça social, mas não tínhamos conceitos como o de respeito às diferenças e o de solidariedade. Aliás, nossa geração fazia um patrulhamento ideológico enorme”, lembra ele.
“Corremos contra o relógio para conciliar estudo e trabalho. O esforço para garantir o emprego é tanto que não sobra tempo para nada”, diz a estudante Camila Pires, que criou um blog na internet
No entanto, apesar do discurso solidário, ainda são poucos os que se mobilizam para pôr a mão na massa. Apenas 2% dos jovens já participaram de algum trabalho social ou têm algum empreendimento voltado para o benefício de sua comunidade. Dos demais, 68% nunca pensaram em fazer algo semelhante. Também o engajamento em movimentos estudantis e de cunho político tem sido suplantado por um individualismo crescente, por mais justificado que seja. “A minha geração corre contra o relógio para conciliar a faculdade com o trabalho. O esforço para garantir o emprego é tanto que não sobra tempo para nada”, diz a estudante de hotelaria paulista Camila Pires, 20 anos. “Já pensei em ser voluntária. Mas isso exige dedicação, tempo e disciplina. Meu estágio ficaria comprometido e eu tenho de ser contratada. Quem vê de fora acha que é egoísmo”, diz ela. Os termos egoísmo e individualismo, no entanto, foram substituídos por umbigocentrismo. É esse o nome do blog que Camila criou para difundir o movimento na internet. “O umbigocentrista é aquele que tem momentos egocêntricos”, explica. Como 95% das pessoas na sua faixa etária, Camila nunca se filiou a um partido político. Nem participou de um sindicato, como 99% dos jovens, ou do grêmio, como 89% deles. Aos 20 anos, nunca foi a uma manifestação de rua.
Ao contrário do que se imagina, a maioria dos jovens prefere relações estáveis. O estudante Felipe
Abenza faz eco: “Prefiro namorar
a ficar. O sexo é mais gostoso
quando há intimidade”
Pode-se perceber que as instituições clássicas de participação e representatividade estão em crise. No entanto, há quem diga que movimentos culturais como o hip hop começam a desempenhar papel semelhante ao ajudar os jovens a costurar uma ideologia e a criar vínculos de solidariedade e cooperação. O coreógrafo e dançarino Ivaldo Bertazzo percebe isso no grupo de jovens da periferia de São Paulo que integram o projeto Dança Comunidade, coordenado por ele. “São mais de 50 jovens que trocaram um sentimento de abandono e de baixa auto-estima pela sensação de sucesso ao serem aplaudidos de pé. Projetos coletivos consistentes, tanto os elaborados a partir da dança e da música quanto do esporte, devem ser valorizados por seu poder de formação e de aglutinação. Ninguém sai da mesma forma que entrou”, diz, satisfeito com a repercussão do espetáculo Samwaad: rua do Encontro, que seus aprendizes encenam de quarta-feira a domingo no Sesc Belenzinho, em São Paulo.
Simpatizante do Partido Progressista e eleitor de Paulo Maluf, Fernando Farah polemiza: “Não entendo quando querem defender os direitos humanos dos presos”
Drogas – Quem está acostumado a acompanhar pela imprensa pesquisas sobre jovens feitas em sua maioria apenas nas capitais e grandes cidades pode cometer a injustiça de generalizar a faixa etária como usuária de drogas e praticante do sexo sem compromisso. Aliás, já virou tradição considerar a juventude folgada e preguiçosa. “Quando perguntamos aos jovens qual o maior problema de suas escolas, a maioria responde que o problema são eles, que fazem bagunça, não cuidam das salas de aula e desrespeitam o professor. Estão tão acostumados a ser chamados de violentos, egoístas e irresponsáveis que adotaram uma visão supernegativa de si mesmos”, diz a socióloga Miriam Abramovay, da PUC de Brasília. “Um comportamento cada vez mais conservador acaba resultando desse policiamento. Com tanta pressão, os jovens preferem reproduzir os hábitos de seus pais a continuar ouvindo tantas críticas”, diz ela.
Segundo o levantamento, apenas 10% dos jovens já usaram maconha e 3%, cocaína. Enquanto isso, 81% dos jovens são contra a descriminalização da maconha e 86% defendem a realização de exames antidoping nas escolas. No espectro político-ideológico, a maioria nutre mais simpatia pela direita do que pela esquerda. “A esquerda sempre discorda de tudo e, quando ganha, não mostra resultados”, justifica o estudante de direito paulistano Fernando Farah, 21 anos. Simpatizante do Partido Progressista e eleitor convicto do ex-prefeito Paulo Maluf, chega a repetir o discurso de seu ídolo quando o assunto é segurança pública. “Não entendo quando querem defender os direitos humanos dos presos. Os bandidos ficam na cadeia à custa do dinheiro do povo e saem em seguida. E quais são os direitos das vítimas?”, questiona.
Religiosidade – Como a maioria de seus contemporâneos, Fernando nunca fumou maconha, repudia a legalização do aborto e condena a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Casamento, só para heterossexuais. “Hoje todo mundo se junta. Mas casar na Igreja é fundamental”, defende. Outro aspecto marcante na nova geração é o resgate do sentimento religioso. Perguntados sobre qual seria o valor mais importante em uma sociedade ideal, parte significativa dos jovens escolheu o “Temor a Deus”, a resposta mais frequente. “Mas essa religiosidade não tem mais o significado de fuga ou alienação que tinha para a geração anterior. Ela é uma espécie de alicerce para pensar o futuro”, diz a antropóloga Regina Novaes, presidente do Instituto Superior de Estudos da Religião do Rio de Janeiro. “Crer não é mais coisa de velho. Faz parte do cotidiano da juventude, prin–cipalmente numa época em que a maioria escolhe a própria religião”, diz.
No exercício da sexualidade, nota-se um apego a valores que pouco remetem à propagada liberdade sexual. Em uma época em que os beijos rolam soltos e o “ficar” supera o “namorar”, a maioria dos jovens continua tendo suas relações sexuais com parceiros estáveis. A última relação sexual de 63% dos jovens aconteceu com um parceiro estável e 36% deles definiram o relacionamento com a última pessoa com quem foram para a cama como eventual. Para o estudante de administração Felipe Abenza, 20 anos, os números fazem todo sentido. E não demonstram um comportamento careta. “O sexo é mais gostoso quando há intimidade. Emendei quatro namoros seguidos. O mais longo durou dois anos e meio. Em um casal, os dois já sabem do que o outro gosta”, explica ele. Felipe faz parte da turma de 59% de jovens que disseram ter usado camisinha na última relação. Quase todos os que não usaram se disseram casados e/ou dispostos a ter filhos. Felipe só deixa de lado a camisinha quando o namoro é de longa data, se a garota tomar anticoncepcionais e tiver feito exame de HIV. Ele também integra a maioria de jovens que, em respeito à família, não leva a parceira para dormir em casa. Também evita passar a noite na casa de Fernanda, 21 anos, sua namorada há seis meses. Tanta prudência tem um lado bom. Mas não custa nada lembrar que essa é a hora de curtir a vida.