05/09/2007 - 10:00
CAÇADA O Exército fez prisioneiros só na primeira fase do Araguaia. No fim, a ordem foi matar todos
Nilda Carvalho Cunha acabara de fazer 17 anos quando foi presa pelos militares. Estudante secundarista, aderiu à organização clandestina MR-8 e foi viver com o namorado num apartamento na praia da Pituba, em Salvador. Um dia recebeu ordens de abrigar a guerrilheira Iara Iavelberg. Nilda caiu no cerco a Iara em agosto de 1971. Levada para um quartel, primeiro foi obrigada a tocar no corpo frio de Iara. Depois, foi torturada. Passou dois meses presa. Assim que foi libertada, sentiu tonturas, sofreu perda de visão e dificuldades para respirar. Internada num hospital, passou a enfrentar depressões constantes, olhar perdido. Às vezes, soltava risos inesperados. No seu prontuário, consta que não comia, via soldados dentro do quarto, repetia que iria morrer. Foram dez dias definhando. No atestado de óbito consta: “Edema cerebral a esclarecer.” Iara Iavelberg foi para um lugar de honra no panteão dos revolucionários brasileiros. Mas Nilda Cunha, a adolescente que a abrigou, foi esquecida em alguma dobra da história.
Esmeraldina Cunha estava no leito de morte da filha. Como Zuzu Angel, a mãe heroína que enfrentou generais atrás do corpo do filho, Stuart Angel Jones, Esmeraldina revirou a Bahia exigindo a liberdade de Nilda. Procurava os comandantes militares, o juiz de menores, advogados, enfrentou por duas vezes o major Nilson Cerqueira, executor de Carlos Lamarca e carcereiro de sua filha. De tanto incomodar, um dia lhe entregaram Nilda. Esmeraldina não suportou a morte prematura de sua menina. Entrou em depressão profunda, chorava, andava sem rumo pelas ruas da cidade, delirava e gritava: “Eles mataram minha filha, uma criança!” Foi internada num sanatório psiquiátrico. Certo dia, foi encontrada morta na sala de sua casa. O corpo estava pendurado num fio de máquina. Havia marcas de sangue no chão, a língua não estava para fora, não houve deslocamento da carótida. Tinha 49 anos. Zuzu virou filme. Esmeraldina Cunha foi enterrada e esquecida.
Essas quatro mulheres, Nilda e Iara, Esmeraldina e Zuzu, acabam de se encontrar perante a história. Elas agora vivem juntas no livro Direito à memória e à verdade, lançado na quartafeira 29, em cerimônia no Palácio do Planalto. Trata-se do relatório final de 11 anos de trabalho da Comissão Especial sobre os Mortos e Desaparecidos, criada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, mas que atravessou quatro governos. Organizado pelo secretário de Direitos Humanos da Presidência, Paulo Vannuchi, o livro é a primeira versão oficial do Estado brasileiro sobre os mortos e desaparecidos da ditadura militar instaurada em 1964. Segundo as contas da Comissão, teriam sido exatamente 356 as vítimas da ditadura.
VIDAS INTERROMPIDAS Ana Rosa Kucinski (foto) e o marido, Wilson Silva, da ALN, “desapareceram” em 1974. Mário Alves, do PCBR, foi barbarizado e morto em 1970
BARBÁRIE RECONHECIDA
Também pela primeira vez, o Estado reconhece que houve barbárie, sob a forma de prisões arbitrárias, tortura, execução de prisioneiros, decapitações e esquartejamentos. Mais que isso, o Estado dedica um verbete à memória de cada vítima, tentando esclarecer as circunstâncias de cada morte. “Queremos contribuir para que a sociedade feche e vire a página dessa história de uma vez por todas”, disse o presidente Lula. “O livro é o resultado de um grande esforço que há muito está em marcha para tentar resgatar a verdade”, define o jurista José Geraldo de Souza, fundador do Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos da Universidade de Brasília.
Quando foi criada, em 1995, a lei reconheceu de imediato 136 mortos e desaparecidos, entre eles Carlos Marighella e Carlos Lamarca, que tombaram de armas em punho. Também reconheceu vítimas que não faziam parte da luta armada, como Rubens Beirot Paiva e Wladimir Herzog,, mas que foram arrastadas pela barbárie. Cada família recebeu um piso de R$ 100 mil e um teto de R$ 152 mil. Posteriormente, 339 famílias entraram com pedidos junto à Comissão. Em geral, os conselheiros foram criteriosos ao analisar os casos. Reconheceram 221 novas vítimas e indeferiram 118 pedidos. Foi aí que a Comissão pôde fazer o resgate de uma dezena de vítimas como a garota Nilda. Ficaram de fora todos os estrangeiros mortos no Brasil, ou os brasileiros mortos no Exterior, como Vânio de Matos, que morreu no Chile por falta de atendimento médico sob a ditadura Pinochet. No caso mais polêmico, a Comissão negou o pedido da família do jornalista Alexandre Von Baumgarten, assassinado em 1981 por agentes do extinto SNI. A família alegou que ele também teria sido vítima do regime. A comissão entendeu que, na verdade, Baumgarten era um colaborador dos militares. Outro mérito da Comissão foi solicitar alterações na lei para incluir aqueles que se mataram. Desta forma, a Comissão pôde indenizar as famílias em casos como os de Esmeraldina Cunha, frei Tito de Alencar, que se matou na França, ou o de Massafumi Yoshinaga, que foi torturado, apareceu como arrependido na tevê e mais tarde se suicidou. Em outra ampliação da lei, a Comissão também reconheceu os mortos em passeata, como o estudante Edson Luis, cuja imolação, em 1968, desencadeou uma revolta estudantil no Rio de Janeiro.
TERROR Rubens Paiva nunca foi guerrilheiro
O livro foi organizado em ordem cronológica, em vez de alfabética, segundo a data de cada morte. Foi bom para facilitar a leitura dentro de um contexto histórico. Dessa forma, pode-se reparar que em 1974, quando as guerrilhas urbana e rural já haviam sido extintas, não há nenhum morto, só desaparecidos. Naqueles tempos, estava no ápice a política oficial de extermínio. A Comissão cometeu também alguns exageros, como esticar as indenizações para cinco casos de 1963, durante o governo de João GouGoulart, quando policiais mineiros atiraram em operários que protestavam contra as condições de trabalho na Usiminas. A falha mais grave, contudo, diz respeito ao tratamento de um tema delicado às esquerdas, a dos justiçamentos. Há uma fraude histórica no verbete dedicado a Rosalindo de Souza, morto em agosto de 1973 durante a guerrilha do Araguaia. Em depoimentos de camponeses, o jornalista Eumano Silva, do Correio Braziliense, revelou que Rosalindo foi julgado por um tribunal revolucionário e depois fuzilado pelos próprios companheiros, na frente de uma dúzia de testemunhas. Quem o executou, descobriuse mais tarde, foi a guerrilheira Dinalva Conceição Teixeira, a Dina. Em sua primeira versão, Direito à memória e à verdade relatava o justiçamento de Rosalindo. Por pressão do PCdoB, a história foi mudada. O livro, em seu resultado impresso, explora o fato de a cabeça de Rosalindo ter sido levada pelos militares para reconhecimento e registra, brevemente, que a versão do justiçamento “representa mais uma tentativa de desmoralizar os militantes mortos”. Essa falha, vale ressaltar, não invalida o mérito dos demais 355 verbetes.
CRÍTICAS DOS DOIS LADOS
O livro tem provocado polêmicas de ambos os lados. Desagradou a militantes dos direitos humanos que pregam que se prossiga nas investigações até descobrir (e julgar) os militares responsáveis pelas torturas e execuções. “Optamos pela conciliação com a Lei da Anistia e pela trilha de concentrar os próximos passos na localização dos corpos”, avisa o ministro Vannuchi. “Não é justo que recaia sobre as Forças Armadas de hoje o peso das sevícias e torturas cometidas por facções militares do passado.” O livro também desagradou aos militares. Nenhum dos três comandantes recebeu convite para o lançamento. Ao saber do evento, consultaram-se e decidiram que, se convidados, não iriam – nem mandariam representantes. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, estava lá. A principal queixa dos militares é de que o livro seria faccioso e unilateral. Relata as 356 vítimas dos militares, mas se omite sobre as 99 pessoas mortas pela guerrilha. A comissão também não indenizou nenhuma dessas vítimas. Vannuchi explica que a lei que criou a comissão só previa o reconhecimento das vítimas da repressão do Estado, e que seria preciso criar outra lei para reconhecer e indenizar as vítimas da guerrilha. Pode ser. Mas o fato é que a lei foi mudada duas vezes, inclusive estendida para os que tombaram nos tempos de Goulart.