Os seis tiros que ceifaram a vida da freira americana naturalizada brasileira Dorothy Mae Stang, 73 anos, na manhã do sábado 12, em Anapu, no sudoeste do Pará, expuseram a fragilidade da política agrária do governo Lula. O assassinato da missionária é fruto também da impunidade nos crimes em conflitos de terras. A ausência da Justiça já transformou em tradição no País e funciona como combustível para a violência que queima vidas no campo. Sob pressão internacional, o governo foi forçado a promover a maior movimentação de tropas dos últimos anos para evitar uma nova guerra pela posse da terra na Amazônia. Pelo menos dois mil soldados foram deslocados de batalhões de Belém, Manaus e Marabá para a região, a 680 quilômetros da capital paraense. Um grande aparato policial foi montado para caçar em plena selva amazônica quatro suspeitos do assassinato: o mandante, um intermediário e dois pistoleiros.

Apontado como mandante, o “fazendeiro” Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida,  foragido, está sob a proteção do verdadeiro grileiro das terras: Regivaldo Pereira Galvão, o Taradão, um velho conhecido da Polícia Federal. Ele chegou a ser  preso no escândalo da Sudam, acusado de desviar mais de R$ 1,2 bilhão de incentivos fiscais para projetos fraudulentos, mas foi libertado e continua com sua carreira de golpes em Altamira, na região da rodovia Transamazônica, onde tem residência fixa. Vitalmiro nada mais é do que um “laranja” a serviço de mais uma fraude comandada por Regivaldo, grilando as terras da União, desta vez de olho no dinheiro fácil dos incentivos fiscais da Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA) sucessora da Sudam.

Antigo alvo – A irmã Dorothy estava na linha de tiro dos latifundiários da região há muitos anos. Mas os ânimos dos fazendeiros-madeireiros ficaram mais acirrados desde o fim de 2004, quando o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) baixou uma portaria obrigando os donos de terra a se recadastrarem. O problema é que boa parte da área é de terra devoluta (pertencente à União). A medida do Incra fez com que dez mil proprietários tivessem seus títulos de terra suspensos. A onda de violência no Pará provocou várias reuniões no Planalto. Na quinta-feira 17, o presidente Lula reuniu seus principais colaboradores.

O governo anunciou a interdição de 8,2 milhões de hectares de florestas em terras da União junto à BR-163 (Cuiabá–Santarém): equivalente a quase o dobro da área do Estado do Rio de Janeiro. Outra decisão tomada na reunião foi a de instalar um gabinete provisório do governo federal na área. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, antecipou a criação de um parque nacional e de uma estação ecológica na região conflitada; o Incra assegurou que 140 mil hectares de terras do Projeto de Desenvolvimento Sustentável defendido pela missionária Dorothy seriam regularizados a curto prazo; a Polícia Federal, no Tocantins, prendeu 14 grileiros na operação Terra Nostra. O governador do Pará, Simão Jatene (PSDB), comunicou que em poucos dias a Assembléia Legislativa votará o projeto de reordenamento fundiário, transformando em unidades de conservação 63% do território paraense.

Quando o líder seringueiro Chico Mendes foi assassinado em 1988, em Xapuri (Acre), o governo criou a reserva extrativista que leva seu nome, com 960 mil hectares, e liberou recursos extras para reforma agrária e de combate aos desmatamentos na Amazônia. A história se repete: a cada assassinato a reação do governo vem rápida, com ações espetaculosas para justificar a ineficiência dos sucessivos projetos de reforma agrária. A falta de projeto não inibe a política de extermínio de líderes sindicais e religiosos.

A missionária não contava com proteção policial – que ela recusava. “Ninguém vai gastar uma bala numa velha como eu”, acreditava. Para os grileiros, irmã Dorothy era “terrorista”. Mas os trabalhadores rurais a chamavam de o “Anjo da Transamazônica”. Sua morte, após uma noite mal dormida num barraco coberto de palha de apenas 1,7 metro de altura, alcançou repercussão internacional só comparável à que ocorreu com a morte de Chico Mendes. Na pasta amarela que carregava dentro da bolsa a tiracolo no momento em que foi assassinada numa estrada de terra aberta em meio a floresta, a 47 quilômetros de Anapu, irmã Dorothy deixou para a polícia mais do que indícios para apontar seus executores: dois documentos oficiais, autos de infração, com multas de R$ 3 milhões, expedidos pelo Ibama contra Vitalmiro, apontado pela polícia como o mandante do assassinato, por ter desmatado ilegalmente uma área de dois mil hectares no assentamento Esperança, menina-dos-olhos de irmã Dorothy. Segundo a polícia, Vitalmiro teria acertado com Amair Feijoli da Cunha, o Tato, a contratação dos pistoleiros que mataram a religiosa.

A morte de Dorothy causou grande comoção. No enterro da missionária, duas mil pessoas gritavam por justiça e pediam o fim da impunidade. Sob pressão, o governo mandou o Exército para caçar os acusados, como Vitalmiro

 

Omissão – Cláudio Fontelles, procurador-geral da República, acusou o governo do Pará de omissão no assassinato de irmã Dorothy por não ter dado proteção policial à religiosa, apesar dos insistentes pedidos encaminhados pelos procuradores. Mas há dezenas de processos contra grileiros de terra adormecidos em gavetas do próprio Ministério Púbico, o que estimula a ação dos invasores de terras públicas. A ministra Marina Silva ponderou que, como missionária católica, irmã Dorothy recusava proteção policial enquanto todos os demais agricultores da região ameaçados de morte também não recebessem proteção. O presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, advertiu: “Se o governo se restringir a tratar o conflito como fato policial isolado, ele apenas o realimentará, permitindo que a região se transforme numa versão cabocla da Faixa de Gaza.” Para Busato, o governo federal tem responsabilidade no caso por causa das consequências das doações de terras feitas pelo Incra na construção da Transamazônica.

A crise agrária só fez aumentar mais três mortes no Estado no rastro do assassinato de irmã Dorothy: a de Adalberto Xavier Leal, de Daniel Soares da Costa Filho, ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Parauapebas (PA), e do agricultor Cláudio Dantas Muniz. Mais de 100 policiais federais, civis e militares promoviam incursões na floresta de Anapu e faziam triagem de veículos e passageiros em várias barreiras montadas na rodovia Transamazônica, caçando Vitalmiro, o intermediário Amair e os pistoleiros José Maria Ferreira, conhecido como Fogoió, e Uilquelano de Souza Pinto, supostos autores dos disparos contra a missionária americana.

Tropas do Exército desembarcaram na quinta-feira 17 em aviões Búfalo da Força Aérea Brasileira no aeroporto de Altamira, a 160 quilômetros de Anapu, para iniciar o patrulhamento da região. Única testemunha do assassinato da freira, o agricultor Cícero Pinto da Cruz presenciou a alguns metros de distância o diálogo travado por irmã Dorothy com seus algozes antes de ser executada. “Em determinado momento, a irmã falou para eles: ‘A arma que eu uso é essa aqui’.” Exibiu a Bíblia e leu dois versículos para os pistoleiros. Ao primeiro tiro disparado, Cícero se embrenhou na mata, deixando a missionária à mercê dos assassinos de aluguel.

No enterro de irmã Dorothy, duas mil pessoas, a maioria trabalhadores rurais, pediam justiça e o fim da impunidade. Afinal, sem punição não há como
evitar outras mortes. No Brasil, apenas 7,5% dos casos de assassinatos por conflitos de terras são levados a julgamento. Entre 1985 e 2003, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT) – entidade à qual Irmã Dorothy era ligada – aconteceram 1.003 ações de homicídios no campo que resultaram em 1.349 assassinatos. Desses 1.003 casos, somente 75 pararam nos tribunais. Foram levadas a julgamento 108 pessoas acusadas de autoras das mortes: 64 foram condenadas e 44, absolvidas. Entre os suspeitos de serem mandantes dos crimes, somente 15 foram condenados e seis, absolvidos.

Violência campeã – O Pará é justamente o Estado campeão em violência e em impunidade: nesse mesmo período houve 327 casos de violência que tiraram a vida de 521 pessoas no campo. Apenas dez casos analisados pela Justiça: cinco mandantes e oito executores dos crimes foram condenados e dez pistoleiros foram absolvidos. Há regiões no Pará em que a impunidade chega a inacreditáveis 100%, segundo o advogado da CPT João Batista Gonçalves Afonso. Essa terra-de-ninguém situa-se no sul e sudeste do Estado. Apenas duas cidades da região – Rio Maria e Eldorado dos Carajás – não apresentam essa taxa de impunidade, de acordo com o levantamento do advogado, publicado no relatório da ONG Rede Social de Justiça e Direitos Humanos de 2003.

Um dos exemplos mais gritantes de impunidade foi o julgamento dos 146 policiais militares que participaram do massacre dos 19 sem-terra em Eldorado dos Carajás (PA), em abril de 1996. Apenas dois foram condenados. No caso de Chico Mendes, o fazendeiro Darli Alves da Silva e seu filho Darci Alves Pereira foram condenados a 19 anos de prisão, mas já receberam liberdade condicional. O que se espera é que a impunidade não bata de novo à porta, abrindo caminho para as próximas mortes.