16/08/2002 - 10:00
Até por dever de ofício, a maioria dos médicos repreende duramente os pacientes que negligenciam os cuidados com a saúde. Mas está faltando quem passe um pito nos especialistas. Em especial nas mulheres que exercem a profissão. Uma pesquisa da Universidade de Brasília (UnB) constatou que a saúde física, mental e emocional das médicas vai mal. Pior: a atenção que dedicam ao próprio bem-estar é mínima. Apesar de conhecerem todas as consequências do descuido, elas alegam falta de tempo para se tratar. A desculpa é velha, mas no caso das profissionais faz sentido. A carga de trabalho das entrevistadas beira a insanidade, com média de 60 horas semanais e piques de até 79 horas, jornada considerada absurda por especialistas em medicina do trabalho.
Coordenado por Anadergh Barbosa-Branco, professora da Faculdade de Medicina, o estudo investigou a rotina de 100 profissionais de hospitais públicos do Distrito Federal. São mulheres com idade média de 35 anos que fazem ao menos um plantão noturno por semana. Fadiga extrema, sonolência, nervosismo, dor de cabeça, indigestão, tontura e dormência nas pernas estão entre os principais sintomas relatados pelas médicas. “Isso é muito preocupante porque, sem dúvida, a privação do sono, por exemplo, aumenta o risco de erros nos procedimentos e em situações cotidianas, como dirigir”, alerta a pesquisadora, que pretende estender a avaliação a outras profissionais da área de saúde. O mais grave, segundo Anadergh, é que os sinais do organismo são ignorados. Quando perguntadas sobre seu estado de saúde, a maioria das médicas
responde que não sente nada.
A anestesista Lucilla Farias é um caso exemplar. Engordou 20 quilos em dois anos, sente dores nas articulações, não faz atividade física e mesmo assim acha que tem saúde de ferro. Nos últimos meses, ela tem trabalhado 100 horas por semana em dois hospitais. Lucilla recebeu a reportagem de ISTOÉ numa manhã de sexta-feira, uma folga após um plantão no Hospital do Gama, cidade próxima à capital. “Hoje eu cheguei aqui tão cansada que parecia ter levado uma surra. Tinha três cesarianas, duas curetagens e uma cirurgia de fratura exposta”, relata. A folga é coisa rara. Há dias em que ela trabalha 24 horas seguidas. Aos 33 anos, duas filhas entrando na adolescência e separada, só recentemente Lucilla se deu conta de que seu ritmo estava fora do normal. Precisou do alerta de uma psicóloga para relembrar que uma pessoa saudável precisa dividir o dia em três partes: dedicar oito horas ao trabalho, oito ao lazer e oito ao repouso. Mas parece que ela ainda duvida. “Se isso for verdade, então a minha vida está totalmente destrambelhada”, afirma.
Ana Cristina de Oliveira, uma oftalmologista de 36 anos, casada e mãe de duas crianças, sabe bem o que é ver a vida de cabeça para baixo por causa do trabalho. Há quatro anos ela sente dores nos joelhos e até hoje não procurou um colega especializado. A consulta ao dentista também está sendo negligenciada. Durante a primeira gravidez, Ana Cristina teve problemas e mesmo assim continuou trabalhando num pronto-socorro até o final da gestação. “Nós vamos ao trabalho do jeito que estivermos. Temos o senso de responsabilidade”, justifica. Só que essa responsabilidade não inclui os cuidados consigo mesma.
Elza Dias Tosta, chefe da clínica de neurologia do mesmo hospital, não tem mais uma carga excessiva de trabalho. Mas, aos 58 anos, conhece de perto o problema. Ela coordena uma equipe com 12 mulheres e duas delas estão de licença há mais de dois meses por problemas de saúde causados por stress. Embora não tenha tido problemas físicos por causa da atividade profissional, Elza pagou o preço do excesso de trabalho na vida emocional. A sobrecarga provocou sua separação. “Meu ex-marido também é médico, nós dois trabalhamos muito e não sobrava tempo para nos encontrarmos”, explica, resignada. E Elza não se ressente da profissão. “Devo tudo o que tenho à medicina”, diz, ainda com os olhos brilhando. Quando começou na carreira, o status e a remuneração dos profissionais da medicina eram animadores, mas hoje Elza reconhece que os salários da grande maioria dos médicos não compensam os oito anos de estudo.
A baixa remuneração é o principal motivo da excessiva carga de trabalho. O contrato da anestesista Lucilla na rede pública do DF prevê apenas 24 horas de trabalho semanal. Mas ela teria que se contentar com um salário líquido de R$ 1,8 mil, insuficiente para sustentar o nível social da família. O jeito é aumentar a carga. Das 100 horas semanais que ela trabalha, 76 são extras ou em substituição de colegas. Mesmo com essa jornada extenuante e dez anos de profissão, Lucilla ainda não conseguiu comprar um carro. Faz de ônibus o percurso de quase 40 quilômetros que separa os dois hospitais onde atende. Outro fator que contribui muito para a carga horária desmedida da médica é a falta de profissionais na rede hospitalar. “O que me salva é que eu adoro o que faço”, comenta a moça, com um largo sorriso que nem o cansaço consegue afastar.