Pelo tom de seu discurso, o ministro do Meio Ambiente, José Carlos Carvalho, por vezes soa como o mais romântico dos ecologistas. Advoga em defesa das cooperativas de trabalhadores, no lugar dos mastodontes que já foram sinônimo de progresso da Amazônia. Sobretudo, nutre a fé inabalável de que no final tudo vai dar certo: que a raça humana não precisará viver uma catástrofe climática, como as enxurradas da Europa na semana passada e o inverno de 30ºC no Sudeste brasileiro, para tomar atitudes que reduzam o aquecimento do planeta. Capixaba de nascimento e mineiro de coração, Carvalho hasteia como bandeira a tese do desenvolvimento sustentável, traduzida em iniciativas que preservam a natureza com progresso econômico e bem-estar aos 20 milhões de brasileiros que vivem na Amazônia.
Engenheiro florestal de formação, ele ocupou o posto de secretário ambiental de Minas Gerais e, desde 1999, dá expediente no Ministério do Meio Ambiente. Ali, foi o braço direito do ex-ministro Sarney Filho, a quem substituiu em março deste ano. Às vésperas de completar meio século, Carvalho leva no sangue a experiência no campo. Neto e bisneto de trabalhadores rurais, ele morou na roça até os 15 anos e diz falar com conhecimento de causa sobre as necessidades de quem faz da floresta sua razão de existir. Como um dos representantes nacionais na Rio + 10, a conferência mundial sobre meio ambiente que começa no dia 26 em Johannesburgo, África do Sul, Carvalho quer provar que o País fez sua lição de casa. Vai mostrar os avanços obtidos com o aumento da fiscalização e com a lei que pune os crimes ambientais, apesar de o índice anual de desmatamento na Amazônia já ter transformado em fumaça 15% da maior floresta tropical do mundo. A seguir, os principais trechos da entrevista.

ISTOÉ – Alguns críticos dizem que o problema da Amazônia é que o país mais próximo é o Brasil. Como reverter esse isolamento?
José Carlos Carvalho

O Brasil avançou muito em políticas para integrar a Amazônia. Incorporá-la não significa transpor para a floresta o mesmo modelo predatório que dizimou a mata atlântica. O progresso ali terá de ser feito dentro do conceito de desenvolvimento sustentável, que pressupõe juntar da melhor forma os aspectos econômicos, ambientais e sociais inerentes às vastas potencialidades da Amazônia brasileira.

ISTOÉ – As organizações não-governamentais assumiram a dianteira das iniciativas sustentáveis. Esse não deveria ser o papel do governo?
José Carlos Carvalho

Boa parte desses projetos foi patrocinada por um programa governamental, o PPG-7 (programa piloto para a proteção das florestas tropicais), com recursos do G-7 (as nações mais ricas do planeta). São projetos extrativistas que demonstram a viabilidade da exploração sustentável da Amazônia. Elas mostram a viabilidade do modelo baseado no uso dos recursos florestais, e não no desmatamento.

ISTOÉ – Historicamente, o desenvolvimento da Amazônia e seu desmatamento foram patrocinados por créditos federais. O que mudou no governo atual?
José Carlos Carvalho

Chegou o momento de inflexão nessa política. O desenvolvimento sustentável precisa deixar de ser um slogan para virar uma estratégia nacional que promova crescimento econômico com respeito ao meio ambiente e maior inclusão social. Havia um conjunto de políticas governamentais, crédito e incentivo fiscal que estimulavam o desmatamento. Podemos inverter essas políticas, com a criação de linhas de crédito voltadas à agricultura familiar.

ISTOÉ – Como explicar que o programa de governo de FHC, o chamado Avança Brasil, incluía propostas para desenvolver a região com danos ambientais?
José Carlos Carvalho

O próprio governo está reavaliando os eixos de desenvolvimento através de uma consultoria (a americana Booz Allen & Hamilton). Hoje, a comunidade se assenta em torno do desmatamento porque essa é a única oportunidade de emprego e de renda. Há alternativas melhores do ponto de vista ambiental e social.

 

ISTOÉ – Por que a questão ambiental está ausente da pauta dos candidatos à Presidência ?
José Carlos Carvalho

Espero que eles ainda tratem disso. Não há programa de governo sério para o Brasil se não incluir a temática ambiental e o desenvolvimento sustentável da Amazônia. Qualquer programa de governo que excluir essas questões não está sintonizado com a realidade brasileira.

ISTOÉ – Como é possível levar infra-estrutura à floresta e, ao mesmo tempo, manter a preservação?
José Carlos Carvalho

Podemos assegurar o desenvolvimento da Amazônia sem grande prejuízo à biodiversidade. É evidente que desenvolvimento pressupõe infra-estrutura, como transporte, energia, comunicação e portos. O importante é causar o menor impacto possível. No regime militar, havia o conceito de construir estradas para permitir uma penetração na floresta. Como isso não foi acompanhado de estudo de zoneamento ecológico e econômico, muita gente foi à região sem nenhuma estratégia de ocupação. Com um bom plano de zoneamento, dá para se definir as áreas com aptidão à agropecuária, por exemplo. Só não podemos ter a idéia de que o brasileiro no Centro-Sul pode ter estrada asfaltada, energia elétrica, e o da Amazônia não pode. É evidente que os mesmos benefícios têm que ser assegurados a todos. Aos amazônidas interessa um modelo diferenciado do restante do País.

ISTOÉ – Pela ação das comunidades e das ONGs pode-se dizer que a sociedade foi mais eficiente do que o governo?
José Carlos Carvalho

É evidente que a sociedade tem um papel de liderança nesse processo. É a sua visão que induz as políticas de governo. O Estado tem de responder às pressões da sociedade, quando isso coincidir com os interesses nacionais. É o caso da discussão sobre os limites de desmatamento previstos no Código Florestal. Foi a primeira vez que a opinião pública entrou para valer no debate ambiental.

ISTOÉ – Por que o debate ambiental saiu da esfera científica para virar tema de discussão política internacional?
José Carlos Carvalho

A economia mundial, principalmente dos países desenvolvidos, hoje segue padrões de produção e consumo insustentáveis. O WWF (Fundo Mundial para a Natureza) revelou que o uso dos recursos naturais é maior do que a capacidade de regeneração do planeta, o que indica, a longo prazo, uma exaustão. Como a humanidade sempre teve capacidade de reação, esperamos que isso se altere. Uma forma seria a diminuição no ritmo de consumo. É o caso da água. Com a crise de energia, os brasileiros entraram no racionamento. A população aderiu de maneira extraordinária. Poucas vezes tivemos um exemplo de cidadania como esse.

ISTOÉ – Não foi porque havia punição para quem ultrapassasse a cota de energia?
José Carlos Carvalho

A punição colaborou, mas a adesão foi vital. A sociedade poderia ter cometido uma indisciplina generalizada, mesmo com multa,e o racionamento não teria vingado. Depois do racionamento, oconsumo de energia não voltou aos níveis originais. O Brasil consome 13% menos que antes do apagão. A sociedade percebeu que estava desperdiçando energia. Com isso, há também economia de água, que gera energia. Quer dizer, cada vez que o cidadão economiza energia, ele colabora com o meio ambiente. Temos um problema cultural. Somos um país de dimensão continental com abundância de recursos naturais, o que criou no brasileiro o mito da inesgotabilidade. Só agora percebemos que os recursos são escassos, e podem terminar se não fizermos uma exploração responsável.

ISTOÉ – Qual deve ser o papel do Brasil em Johannesburgo?
José Carlos Carvalho

O País deve se mostrar como é de fato, uma potência ambiental. Temos o maior patrimônio de biodiversidade do mundo, o maior remanescente de floresta tropical e uma das maiores reservas de água doce. Isso nos diferencia e coloca o Brasil numa posição afirmativa, e não defensiva, como no passado. Investimos mais de US$ 1 bilhão de capital internacional em preservação do meio ambiente.

ISTOÉ – O sr. fez da apreensão de mogno ilegal uma bandeira de sua administração. Por que é tão difícil resolver o problema do comércio ilegal de madeira?
José Carlos Carvalho

É uma combinação de fatores. Primeiro, há um mercado favorável, interno e externo, que consome mogno. Segundo, o grande valor comercial da espécie, que estimula a ilegalidade. Em Londres, cada metro cúbico de mogno custa US$ 1.600, e apenas US$ 20 são pagos aos índios, num processo ilegal e predatório. Atingimos um recorde de apreensão de mogno, com 50 mil metros cúbicos. Além do controle e da fiscalização, temos que descobrir fórmulas para criar uma oferta sustentável de mogno.

ISTOÉ – Como o sr. pretende patrocinar essa oferta de mogno sustentável?
José Carlos Carvalho

Propomos criar uma linha de financiamento exclusiva para o manejo florestal, e só o daremos às empresas certificadas, para que o consumidor tenha certeza de que está usando um produto ambientalmente correto. Não podemos deixar de consumir madeira. Queremos apenas criar um consumo consciente. O Brasil tem obrigação de ter uma das maiores economias florestais do mundo. A natureza nos deu uma vantagem única. O que falta é transformar isso em vantagem competitiva.

ISTOÉ – Como o Brasil pode competir no mercado globalizado contra os subsídios agrícolas oferecidos nos EUA e na Europa?
José Carlos Carvalho

Não dá para pensar num só país isolado. Tudo está interligado, o que pressupõe mudanças internacionais. Os países desenvolvidos pregam o combate à pobreza e o incentivo à sustentabilidade, mas persistem numa ordem econômica que vai na contramão do que eles preconizam. É o caso dos subsídios à agricultura. Os Estados Unidos acabaram de aprovar uma lei que aumenta em US$ 50 bilhões o subsídio da agricultura. Somado à Europa, eles gastam US$ 400 bilhões ao ano para subsidiar sua agricultura. Nesse modelo, os países em desenvolvimento só são competitivos porque fazem uso predatório da natureza.

ISTOÉ – O sr. está dizendo que os países desenvolvidos promovem o desmatamento nas nações mais pobres?
José Carlos Carvalho

Indiretamente, sim. Para a madeira ser competitiva lá fora, é preciso incluir no preço final o custo ambiental da exploração. O mercado internacional deveria remunerar esse custo. Só que as mudanças internas de um país dependem de outras internacionais.

ISTOÉ – Qual será o valor prático da reunião de Johannesburgo?
José Carlos Carvalho

Ali estarão chefes de Estado, lideranças públicas, ambientalistas, lideranças empresariais, enfim… vai ser um grande caldeirão. A posição brasileira é aplicar todas as energias para elaborar um plano de ação que tire do papel as convenções aprovadas no Rio (em 1992), como a do clima, e a da biodiversidade, para que se possa iniciar um novo processo, com objetivos mensuráveis. Passou a época das boas intenções e declarações exortatórias. Não podemos sair com aqueles documentos diplomáticos: “Declaramos o nosso repúdio a todo tipo de devastação.” Isso acabou.

ISTOÉ – A recusa do presidente Bush em cumprir o protocolo de Kyoto mostra a fragilidade desse tipo de tratado?
José Carlos Carvalho

 A posição dos EUA é retrógrada. Com a adesão do Japão ao tratado, houve um certo desequilíbrio, porque os americanos esperavam a companhia de uma outra grande nação industrializada – a Austrália tem um peso político relativo. Nossa expectativa é que, com a adesão da Rússia e da Polônia, o protocolo entre em vigor e com ele a redução dos poluentes que agravam o efeito estufa. A tendência é acentuar o isolamento dos EUA. Como eles desconhecem as pressões internacionais, o governo Bush pode começar a enfrentar uma reação da opinião pública. A percepção de que os americanos também serão prejudicados pelo aquecimento do planeta pode levar o próximo governo a mudar de opinião.

ISTOÉ – As mudanças no clima podem acelerar a adoção de medidas urgentes?
José Carlos Carvalho

Não se trata mais de teoria acadêmica. O aquecimento da Terra é grave, com catástrofes perceptíveis que mexem com a vida das pessoas, e deve ser tratado com seriedade. Sei que está em jogo uma complexidade de interesses econômicos que se contrapõem à boa vontade.

ISTOÉ – Os países ricos querem priorizar o combate à pobreza. É uma forma de desviar dos temas ambientais?
José Carlos Carvalho

A pobreza é uma questão central, mas não pode desviar a atenção de outras, como os padrões de produção e consumo das economias industrializadas. Não adianta enviar cesta básica e remédio aos países pobres. É preciso abordar o desenvolvimento sustentável, com mudanças econômicas nos subsídios, transferências de tecnologia e acesso de produtos subdesenvolvidos aos mercados desenvolvidos.

ISTOÉ – Há outras questões que independem do apoio internacional, como o saneamento básico. O Brasil fez sua lição de casa?
José Carlos Carvalho

O despejo de esgoto é a principal fonte de poluição dos recursos hídricos. Há muitos lixões, que exibem um quadro de degradação ambiental e humana. Os lixões estão na entrada ou na saída das cidades. Não há sequer a preocupação de escondê-los, tamanho o desmazelo com que essa questão é tratada no Brasil.

ISTOÉ – O ecoturismo seria uma atividade viável na Amazônia?
José Carlos Carvalho

O ecoturismo não é uma panacéia. Temos que ter cuidado ao definir a capacidade de cada lugar para que não haja uma visitação além dos limites naturais. O ecoturismo não é turismo de massa. Muitas vezes, o visitante tem a audácia de entrar numa caverna para competir com as pinturas rupestres, deixando lá suas marcas. Isso é um turismo mais que predatório.