De cigarro em punho e surpreendentemente pouco falante,
ô Soares irradiava segurança, semana passada, no palco do Teatro Cultura Artística, em São Paulo. Afinal, ele se sentia em casa, num local em que foi aplaudido tantas vezes e onde agora está completamente à vontade na função de diretor, produtor, tradutor
e adaptador da peça FrankensteinS,
do cubano naturalizado francês Eduardo Manet, espetáculo que traz no elenco Mika Lins, Bete Coelho, Clara Carvalho e Paulo Gorgulho. Encenado pela primeira vez em 1978 pela Comédie-Française, o texto narra o hipotético encontro entre as escritoras inglesas Charlotte Brontë (Mika), Mary Shelley (Bete) e
suas principais criações literárias, respectivamente Jane Eyre (Clara) e Frankenstein (Gorgulho). Na vida real, Frankenstein, romance sobre um monstro feito em laboratório, foi escrito por Mary aos 18 anos, em
1816, ano do nascimento de Charlotte, que lançaria seu clássico
Jane Eyre três décadas depois.

A idéia da montagem brasileira surgiu dos encontros entre Mika e Jô na primeira metade do ano passado. Ela procurava um texto que a atraísse. Ele estava ansioso para voltar à direção, atividade que não exercia desde 1981, quando encenou Brasil da censura à abertura, baseada em textos do jornalista Sebastião Nery. Uma matéria sobre a peça de Manet numa revista francesa trazendo um Frankenstein bem vestido, tomando chá e fumando cachimbo foi o clique que esperavam. Mika logo entrou em contato com a colega Bete Coelho e a convidou para a encenação, enquanto o apresentador encontrava-se com Manet em Paris, onde o escritor laureado e várias vezes indicado para o prêmio Goncourt de literatura ajuda a administrar a Société des Auteurs et Compositeurs Dramatique (SACD). Como desde o início Jô tinha Gorgulho como segunda opção para o papel do monstro – a primeira era ele próprio, o que foi logo descartado –, ficou faltando a intérprete de Mary Shelley, surgida somente em junho deste ano, na figura de Clara Carvalho, do paulistano Grupo Tapa de teatro.

Clones – Após dois meses de ensaio, que às vezes se estendia até o sol raiar, cinco dias por semana, o diretor se mostra feliz com a peça cujos atores se revezam como protagonistas. É um texto que pode ter as mais variadas leituras – do conflito de gerações à metáfora sobre a dominação. Mika fala em clones e na falta de privacidade gerada pelo sucesso, personificado pelos “monstros”. Gorgulho lembra da identificação imediata por parte do público, uma vez que Jane Eyre – heroína romântica que mostra a mulher em conflito com seus desejos e condição social – chegou às telas quase uma dezena de vezes e Frankenstein praticamente faz parte do cotidiano. Jô fecha a questão afirmando que, essencialmente, o texto traz à tona questões fundamentais do ser humano: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Mary Shelley, ao escrever seu romance em meio a uma brincadeira entre amigos – concorrendo com as criações de seu marido, o poeta Percy Bysshe Shelley, e de Lord Byron –, acabou criando um gênero mais tarde denominado de romance gótico. “Manet, então, inventou a comédia gótica”, diz o diretor.

Jô teceu cada detalhe do espetáculo, que tem assistência de direção de Tarcísio Meira Filho, figurinos de Cassio Brasil, iluminação de Telma Fernandes e cenografia de Cortez e Daniela Thomas, a quem Jô carregou no colo. A trilha sonora é do maestro Antonio Carlos Neves, que, a pedido do diretor, incorporou à partitura ruídos de efeitos de cena. Entre dezenas de interferências, Jô também palpitou na complicada caracterização de Paulo Gorgulho, que o obriga a permanecer impassível por quase duas horas na sala de maquiagem. Tanto Clara quanto Bete se mostram admiradas com o método de trabalho de Jô Soares. “Ele dispensa laboratórios e outros experimentalismos enquanto está levantando a peça. E é capaz de parar tudo para cuidar de um detalhe da roupa”, enaltecem Bete e Clara.

São detalhes imperceptíveis para o público, mas que afagam a vaidade das atrizes. Bete, por exemplo, está achando o máximo usar corpete, saiotes e assim adquirir uma silhueta empinadinha. “O curioso é que há muito tempo eu não vestia uma roupa de cena que não fosse presa por velcro”, conta ela. Nesse momento, Jô observa a tudo, impassível. Num dos raros rompantes, explica que aprendeu muito prestando atenção em outros atores e sempre dirigiu lembrando de seu tempo de ator. “Fui dirigido por colegas ilustres, como Cacilda Becker, em Oscar, de Claude Marnier, e Walmor Chagas, em O rinoceronte, de Eugène Ionesco.” Momentaneamente afastado do Programa do Jô, da Rede Globo, o apresentador se prepara para comandar em março de 2003 seu novo show, Rede Gordo, o sétimo solo desde a estréia com Todos amam um homem gordo, em 1978. Como o espetáculo será encenado no anexo superior do Teatro Cultura Artística, ele avisa que ficará observando atentamente de cima as sessões de FrankensteinS. A atitude faz lembrar uma piadinha de Woody Allen no filme Memórias, no qual ele afirma não ser narcisista. Mesmo porque Narciso não é seu mito favorito. Allen se identifica mais com Zeus.