Dos 37 anos de idade de Rodrigo Raineri, 18 tiveram por perto o amigo e parceiro de escaladas Vitor Negrete. Os últimos dois aniversários, aliás, foram passados junto com Negrete no Everest, nas duas expedições que a dupla fez à montanha. Em 2005, Vitor chegou ao cume usando oxigênio suplementar e Rodrigo, que começou a utilizar o oxigênio a 8.200 metros, decidiu adiar o sonho a menos de 50 metros do topo. Em 2006, Vitor tornou-se o primeiro brasileiro a chegar ao cume sem oxigênio suplementar, numa escalada solitária à maior montanha do mundo, mas faleceu no dia 19 de maio no caminho de volta. A seguir, a primeira entrevista de Raineri, contando como foram seus últimos momentos com Vitor e o que sentiu ao perder seu parceiro na montanha que tanto fascina os alpinistas.

ISTOÉ – O que é escalar o Everest sem o uso de oxigênio suplementar?
Rodrigo Raineri –
Escalar sem oxigênio é como mergulhar em apnéia. No mergulho com cilindros, é mais fácil e seguro ir mais fundo, porque você tem o ar entrando normalmente em seu corpo. Sem cilindros, somente com o ar dos pulmões, a limitação é muito maior. Da mesma forma, escalar sem oxigênio artificial é muito mais difícil, por causa dos efeitos do ar rarefeito no corpo: a respiração se acelera, a capacidade de manter-se aquecido diminui, ficamos mais lentos, o cérebro incha, o corpo desidrata, sentimos dores de cabeça e o sistema nervoso é afetado, atrapalhando o raciocínio. Escalar o Everest com oxigênio suplementar é eliminar o maior obstáculo da montanha, que é o ar rarefeito.

ISTOÉ – E para você, o que significa escalar o Everest sem oxigênio suplementar?
Raineri –
Para mim é um sonho antigo, e as pessoas são movidas por sonhos. O que me move é o desafio e a vontade de elevar o nível do esporte nacional, deixar o Brasil numa posição legal lá fora. Há dez anos, os brasileiros eram motivo de chacota no Aconcágua. Hoje somos respeitados lá. O Vitor e eu estávamos construindo a mesma coisa no Everest.

ISTOÉ – Onde você conheceu o Vitor e como se tornaram tão amigos?
Raineri –
Nos conhecemos na Unicamp. Fundei um grupo excursionista, o Gaia,
e o Vitor foi numa viagem que fizemos para o Parque Estadual do Alto da Ribeira.
Ele era forte, não tinha medo e nos ajudou bastante com o grupo. Nós o apelidamos de Rambo. Nos aproximamos bastante no projeto de escalada da face sul do Aconcágua. Convidei todos os meus amigos escaladores, mas só ele topou – e
ele nem sabia escalar em gelo direito, teve que fazer o curso para aperfeiçoar!
Eu brincava: “Primeiro a face sul, depois o Everest”, e ele dizia: “Como eu
não tenho esse sonho, vou com você, usando oxigênio, para dar mais segurança
à sua escalada.”

ISTOÉ – Quais foram seus últimos momentos com o Vitor?
Raineri
– Meu último papo com o Vitor foi no acampamento base avançado. Foi uma conversa difícil, sobre segurança: levar ou não o oxigênio para uma emergência, ir ou não com sherpa (povo das montanhas do Himalaia que auxilia os alpinistas) até o cume. Para o Vitor, subir com um sherpa era como subir com uma babá. Ele não se sentia confortável, para ele o gosto da aventura se perdia. Eu pensava diferente: não tínhamos experiência sem oxigênio acima dos 8.000 metros e levar o cilindro não mudaria a conquista, era só um plano B para uma emergência. Tecnicamente, a escalada do Everest não é perigosa. A face sul do Aconcágua é muito mais difícil. Mas a questão não era a parte técnica, mas a falta de oxigênio, que o Vitor não chegou a sentir no ano passado porque usou os cilindros a partir dos 7.500 metros. Foi um dos maiores desentendimentos que a gente teve.

ISTOÉ – E o fato de vocês decidirem subir separados, o que aconteceu?
Raineri –
Nossa aclimatação, que é o processo em que nos adaptamos à altitude e às quantidades progressivamente menores de oxigênio, se desencontrou. Eu tinha dormido no campo 2, a 7.700 metros, e voltado para o campo base avançado para descansar quando veio a notícia da janela de bom tempo. Ele estava descansado para subir, eu não. Ele queria aproveitar a janela e eu dei a maior força, pois meu planejamento era atacar o cume no dia 24 ou 25. Seria muito difícil os dois estarem bem e o clima ajudar, tudo ao mesmo tempo. Se um ficasse esperando o outro, podíamos não conseguir. Se ele não conseguisse, depois teríamos outra chance juntos, pois tínhamos tempo para descansar e tentar de novo.

ISTOÉ – Depois que vocês se separaram, no acampamento base avançado,
como você acompanhou a escalada de Vitor?
Raineri
– Acompanhei sua subida pela nossa assessoria, no Brasil, pois eu não tinha comunicação direta com ele. Ele subiu para os acampamentos 1, 2 e 3 e ligava de lá para o Brasil. Na última ligação, disse que subiria sem sherpa. Só soube da decisão quando liguei para o Brasil. Na hora pensei: “Ele sabe o que está fazendo, tomara que dê tudo certo.” Pela nossa última conversa, fiquei preocupado. Mas nunca imaginei que ele fosse morrer. A partir daí, liguei de hora em hora para o Brasil para ter notícias. Como o dia não estava dos melhores, imaginei que ele acabaria voltando. Continuei em contato com o Brasil, pois achava que ele ligaria para lá quando chegasse de volta ao acampamento 3.

ISTOÉ – Como você soube da morte do Vitor?
Raineri –
O Vitor faleceu às 2 da manhã. Por volta das 7 da manhã, a Lakpa Sherpa, uma alpinista nepalesa, trouxe a notícia de que ele tinha feito o cume e estava sendo descido pelos sherpas. Até cantei, fiquei superfeliz pela conquista. Pensei que ele talvez tivesse congelado nariz, mãos, pés, mas tinha sobrevivido. Eu estava há duas noites sem dormir, muito preocupado. Duas horas depois, veio um dos cozinheiros da expedição russa dizendo que o Vitor tinha morrido. Não acreditei. Perguntei várias vezes se ele tinha certeza que era o Vitor. Foi um choque.

ISTOÉ – Qual foi sua primeira reação?
Raineri –
Fiquei triste e puto ao mesmo
tempo. Não conseguia olhar para a
montanha. Pensei em tentar o cume, mas
aí reconsiderei. Felizmente, muitos amigos ligaram e isso me deu muita força. Eu não queria deixar o corpo dele ali na barraca,
em respeito a ele e aos outros alpinistas. Uma coisa que não é legal é passar pelo corpo de outro alpinista no caminho para o cume – passei por vários no ano passado. Tem mais um agora no caminho: o David Sharp, inglês que estava em nossa expedição e que morreu este ano. Fiquei no campo base avançado até que os sherpas que foram enterrar o Vitor desceram e me mostraram o vídeo com o sepultamento. Depois que a família decidiu que o corpo ficaria lá, me deu uma tranqüilidade. Foi quando consegui voltar a olhar para a montanha. Mas agora vejo duas imagens sobrepostas, a da montanha e a do Vitor.

ISTOÉ – Depois da morte do Vitor, você chegou a cogitar de ir até o
cume. O que o fez mudar de idéia?
Raineri
– Eu não tinha condições psicológicas para escalar o Everest sem
oxigênio. Minha família não tinha condições psicológicas de acompanhar minha escalada. Perdi a motivação. Qualquer erro poderia ser outra tragédia.

ISTOÉ – Você pretende voltar a escalar o Everest?
Raineri –
O alpinismo é a minha vida, é o que eu mais gosto de fazer. Sacrifiquei uma série de coisas, inclusive uma carreira promissora e muitos momentos de convivência com meu filho, pelo alpinismo. Vou continuar subindo montanhas e continuo atraído pelo Everest. Quero saber como é respirar sem oxigênio a 8.850 metros. Provavelmente voltarei ao Everest, pelo Vitor, pelo montanhismo e por mim. Não gostaria de envelhecer e viver pensando nisso, sem ao menos tentar essa escalada. Esse é o meu sonho, e tem também um lado prático: a escalada é essencial ao trabalho que desenvolvo em minha empresa, a Grade VI, que presta consultoria para trabalho em altura. Na montanha são desenvolvidos equipamentos e procedimentos de segurança que são adaptados para trabalhos em torres, fachadas de prédios, andaimes e lugares altos e expostos a quedas.

ISTOÉ – Que erro você acha que o Vitor cometeu?
Raineri –
Prefiro não falar de erros. Só cada um vê sentido nas próprias decisões. Se eu decidir voltar para o Everest, vão falar que sou louco, que estou “procurando”. O acerto que ele cometeu foi viver como ele gostava. Seguiu suas próprias visões, seu caminho, foi um grande parceiro. Ele não tinha medo de tomar decisões ousadas, como escalar a face sul do Aconcágua. Casou, teve filhos, amou intensamente, conheceu o mundo, viveu bem, era muito feliz.