09/04/2003 - 10:00
O Brasil está em alerta. Na semana passada, com a divulgação de dois casos suspeitos de síndrome respiratória aguda grave (Sars) no País, muita gente ficou mais temerosa em relação à doença, que já se espalhou por boa parte do mundo, deixando dezenas de vítimas fatais. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), até sexta-feira 4 haviam sido notificados 2.353 casos e 84 mortes. A maior concentração de pacientes está na Ásia (China, Cingapura e Vietnã) e em Toronto, Canadá.
Por aqui, um dos suspeitos foi internado na quinta-feira 3, no Hospital São Paulo, na capital paulista. O doente é um japonês de 48 anos que mora no Brasil. Esteve no Japão e chegou com febre e tosse. Como os sintomas são semelhantes aos da Sars e ele ficara dois dias na Tailândia, onde há casos, foi encaminhado ao hospital. Até sexta-feira 4 estava em observação. A rigor, as autoridades sanitárias não o consideravam suspeito. Isso porque o governo segue os critérios da OMS, segundo os quais devem ser classificadas como possíveis contaminadas apenas as pessoas com sintomas, mas que tenham estado em locais onde há transmissão da doença. Não é o que ocorria na Tailândia. Os sete casos registrados no país eram de pessoas contaminadas em outros lugares. Mas na avaliação de Antônio Carlos Pignatari, diretor clínico do hospital, tratava-se de um caso suspeito. Segundo ele, o paciente reunia sintomas que remetiam à enfermidade. O caso estava em análise.
A outra suspeita de ser portadora da Sars é a inglesa Sally Blower, 41 anos, produtora da rede britânica de tevê ITV. Ela chegou ao Brasil na terça-feira 1º, procedente de Londres. Sally cobre a F-1 e esteve na Malásia há três semanas, no grande prêmio anterior ao de São Paulo (realizado neste domingo). A produtora deixou a Malásia, parou duas horas em Cingapura e partiu para Londres. Na segunda-feira 31, pegou um vôo da British Airways. Não se sentia bem, mas não comentou o fato com a tripulação. “Tinha febre e estava cansada, mas não tossia”, disse a ISTOÉ. Sally estava no hotel quando procurou ajuda. O infectologista Rudolf Uri Hutzler, do Hospital Israelita Albert Einstein, foi chamado. A história da produtora foi suficiente para levantar a suspeita de Sars. Seu caso, inclusive, já faz parte da lista de notificações da OMS.
Análises – Até sexta-feira 4, não estava confirmado se Sally – isolada num quarto no qual a saída do ar é dificultada – tinha a doença. Amostras de sangue e de secreções de sua garganta foram enviadas ao Instituto Adolfo Lutz (SP). Análises iniciais não apontaram a presença de bactérias, mas isso não exclui completamente essa chance. Há micróbios desse gênero que só são detectados 15 dias depois. De concreto, os resultados reforçam a suspeita de que ela seja vítima da Sars. Há fortes evidências de que a doença seja causada por um vírus – e não bactéria – da família dos coronavírus (um deles causa resfriado). Também não está descartada a hipótese de que outro agente virótico, da família dos paramixovírus, tenha papel na doença. E na sexta-feira 4 apareceu outro suspeito. Cientistas chineses anunciaram que um microorganismo parecido com a bactéria clamídia estaria associado à Sars. Como se vê, identificar o inimigo é difícil. Por isso, em relação a Sally espera-se um resultado mais esclarecedor somente em três semanas. Até agora, não há um teste disponível para confirmar a enfermidade. O único exame criado para essa finalidade foi desenvolvido pelo Centro de Controle de Doenças, o CDC, dos EUA. Mas ainda está sendo usado de maneira restrita.
Apesar da dificuldade de diagnóstico, o caso de Sally serviu para revelar algumas falhas na execução do plano de controle da doença montado pelo governo federal. Foi somente na quinta-feira 3, depois que a notícia da internação de Sally assustou o País, que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão do Ministério da Saúde, decidiu distribuir nos portos e aeroportos folhetos explicativos sobre a síndrome a todos os passageiros que chegam ao País. Antes, o trabalho de prevenção baseava-se na fixação de informativos em painéis próximos às áreas de embarque e desembarque. A estratégia foi insuficiente. Tanto assim que a produtora inglesa não recebeu nenhum papelzinho que a alertasse para o problema.
Com o jornalista brasileiro Flávio Gomes, especializado em automobilismo, não foi diferente. Como outros profissionais que acompanham a F-1, ele também esteve na Malásia. De lá, fez conexão em Hong Kong, um dos pontos críticos da epidemia, para Londres. Na quarta-feira 26 de março, retornou a São Paulo. Gomes deixou o aeroporto sem ter recebido nenhuma orientação. No entanto, se a vigilância em São Paulo falhou, o mesmo se deu em outros países. Gomes não viu folhetos onde esteve. “Ninguém disse nada nos aeroportos. E Londres tem um fluxo asiático enorme. Se lá não fizeram isso, não acho que o Brasil deva ser criticado”, afirma. Em sua opinião, o circo da F-1 não foi afetado. Nos dias que antecederam o GP Brasil, os pilotos e as equipes estavam mais preocupados com o acerto dos carros.
Na semana passada, quem corria mesmo – atrás do prejuízo – era o governo brasileiro. Logo na primeira entrevista sobre o caso suspeito, as autoridades anunciaram que estavam monitorando 25 jornalistas estrangeiros que tinham feito o mesmo percurso da produtora inglesa. Pareciam não ter notado que o contingente que envolve a F-1 é muito superior a esse número. “Comunicamos aos jornalistas que é preciso estar atento. Mas também alertamos os médicos da Federação Internacional de Automobilismo. Estamos muito vigilantes”, contou Jarbas Barbosa, diretor do Centro Nacional de Epidemiologia, do Ministério da Saúde.
Vigilância – Além de decidir pela distribuição dos folhetos, o governo pediu ajuda às companhias aéreas. Os passageiros de vôos internacionais devem ouvir na aeronave a descrição dos sinais da Sars e a orientação de procurar auxílio caso se enquadrem nas situações de risco (presença de um ou mais sintomas e proveniência de um dos países com casos de transmissão no período de dez dias anterior ao desembarque. Esses países são: Canadá, China, Cingapura e Vietnã). O Ministério da Saúde avisa que, se houver algum caso, apenas as pessoas que estiveram em contato direto com a possível vítima ficarão isoladas por dez dias. Os demais serão liberados depois de fornecerem endereços. Essas medidas foram tomadas depois da história de Sally. Neste caso, até quinta-feira 3 o governo ainda procurava os passageiros do vôo da British.
Na opinião do infectologista Vicente Amato Neto, os procedimentos anunciados são corretos. “Mas devemos observar se as normas estão sendo cumpridas”, ressalvou. Muita gente acredita que o certo mesmo seria impedir a entrada no País de pessoas oriundas das áreas de risco. De acordo com os especialistas, essa atitude é desnecessária. “Não adianta pressionar o passageiro que veio de Hong Kong para saber se está bem. Ele pode não falar nada. Atitudes severas não dão certo”, diz o epidemiologista José Geraldo Ribeiro, de Minas Gerais. De fato, causou polêmica, por exemplo, a atitude de autoridades americanas de impedir o desembarque de passageiros de um avião que pousou em um aeroporto da Califórnia, procedente de Tóquio, no Japão. Havia suspeita de cinco casos na aeronave. Mais tarde, verificou-se que era alarme falso.
A realidade é que há tanta confusão porque estamos diante de algo novo. No mundo, há uma rede de laboratórios trabalhando para entender os mecanismos da enfermidade. Mas até agora, por exemplo, não se sabe quem é o causador. No entanto, existe a hipótese de que ele seja oriundo de animais e faça parte da categoria dos chamados vírus emergentes. São micróbios novos, em geral resultantes do convívio estreito de seres humanos com animais. “A China, onde surgiram os primeiros casos, é considerada uma usina de vírus emergentes”, afirma o infectologista Celso Granato, de São Paulo. Os pesquisadores também não definiram as formas de contágio. Sabe-se que a pneumonia asiática, como a doença foi apelidada, é transmitida de pessoa por pessoa e por contato muito próximo. Mas há suspeita de que possa ser passada também por objetos infectados. “As pneumonias em geral se transmitem pela presença de agentes que se espalham no ar, por gotículas expelidas na tosse. E há a possibilidade de os germes sobreviverem um a dois dias em tapetes ou roupas”, diz o pneumologista José Rosemberg, de São Paulo.
A ciência já conseguiu pelo menos traçar uma lista dos sintomas e compreender o processo da enfermidade. Ela é diferente das manifestações mais frequentes de pneumonia porque sua evolução é mais rápida. “A Sars avança depressa para um quadro de dificuldade e até de insuficiência respiratória”, explica o infectologista David Lewi, do Hospital Albert Einstein. Até agora, a maioria dos pacientes apresenta melhora após dez dias. O tratamento baseia-se no alívio de sintomas e no uso de antivirais. E, na dúvida sobre o agente causador, há doentes medicados com antibióticos. Se não for Sars, melhoram. A maior preocupação dos médicos são os cerca de 10% dos infectados com sintomas mais graves. Nesses casos, há necessidade de suporte ventilatório (cateter e até entubação). Em geral, essas dificuldades acometem indivíduos com mais de 40 anos e portadores de outros males,
como doenças respiratórias.
Mortalidade – A forma de ataque da Sars é semelhante à das outras pneumonias virais. O agente invasor desencadeia uma inflamação nos espaços entre os alvéolos, estruturas do pulmão onde acontecem as trocas gasosas e a oxigenação do sangue, e não nos próprios alvéolos, como nas pneumonias bacterianas. A doença mata porque pode levar à insuficiência respiratória. E sua taxa de mortalidade é alta. Enquanto as pneumonias conhecidas matam 0,01% dos doentes, o índice de letalidade da Sars é de 3% a 4%. Muitas das vítimas da Sars foram justamente os profissionais de saúde que atenderam os casos iniciais. Um dos atingidos foi o médico italiano Carlo Urbani, o primeiro a perceber que o mundo lidava com uma doença atípica. Urbani era especialista em doenças transmissíveis, credenciado pela OMS, e foi infectado quando trabalhava no Vietnã. Ele morreu no dia 29 de março, na Tailândia.
É por causa de aspectos como esses – o desconhecimento do agente e a mortalidade alta – que a doença assusta. Até no mundo da economia ela já fez estragos. O Fórum Econômico Mundial adiou um encontro que faria na China neste mês. As viagens para a Ásia despencaram, assim como as ações das companhias aéreas da região. Há duas semanas, as da Singapore Airlines caíram 12%. Empresários do setor chegaram a dizer que a Sars teve mais impacto nos negócios do que a guerra no Iraque. No entanto, os especialistas insistem que não há motivo para pânico. A melhor maneira de se prevenir é adiar viagens para as áreas atingidas. Além disso, deve-se evitar o contato próximo com as pessoas que manifestam sintomas de pneumonia e estiveram na Ásia há menos de dez dias ou conviveram com quem passou por lá. Em relação ao Brasil, os médicos garantem que ninguém precisa sair correndo para comprar máscaras de proteção. “O problema existe, mas temos capacidade de enfrentá-lo. Não devemos transformá-lo em algo maior do que é”, afirma Reinaldo Salomão, infectologista da Universidade Federal de São Paulo.
A paciente inglesa
Sally Blower, 41 anos, está aborrecida. Isolada num quarto do Hospital Albert Einstein com suspeita de ser portadora da Sars, a produtora inglesa lamenta a falta de contato maior com os amigos. Ela falou a ISTOÉ por telefone.
ISTOÉ – Você recebeu orientação no aeroporto brasileiro
sobre a síndrome?
Sally Blower – Não. Estava cansada e com febre, mas não tossia. No avião, não comentei com a tripulação o que sentia. Do aeroporto fui para o hotel, de onde meu chefe chamou um médico.
ISTOÉ – Tinha sido informada sobre a Sars quando esteve na Malásia e em Cingapura?
Sally – Sabia um pouco, porém as notícias se referiam a Hong Kong. Em Cingapura fiquei apenas duas horas no aeroporto.
ISTOÉ – O que acha da sua situação?
Sally – É um momento difícil. Estou no isolamento e não posso ver meus amigos. Sou bem tratada, estou melhor e a febre foi embora. É muito chato esperar o resultado do que tenho. Mas esta pneumonia é nova para o mundo.
ISTOÉ – Como reagiu sua família?
Sally – Eles estão preocupados. Eu também. Ainda bem que a vista da cidade daqui do meu quarto é ótima. E felizmente tenho tevê, senão já estaria louca (risos).