Elegante, inteligente e sensível, a carioca Thais Corral representa a nova face do poder. Aos 45 anos, ela integra a Comissão sobre Globalização, ao lado do ex-presidente Mikhail Gorbachev e do investidor George Soros. Seu trabalho é advogar em defesa de maior participação das mulheres no poder. Formada em administração, jornalismo e com mestrado pela universidade americana de Harvard, ela foi premiada como uma das 100 lideranças que mais se destacaram na luta pela causa feminista. Fundadora e dirigente de duas ONGs, a Rede de Desenvolvimento Humano (Redeh) e a Comunicação, Educação e Informação em Gênero (Cemina), Thais se dedicou a promover o papel da mulher como agente de desenvolvimento humano. Colocou em prática idéias como a da capacitação de lideranças comunitárias para prevenir doenças, preservar o meio ambiente e promover a alfabetização digital. Seu trabalho mais inovador foi a criação de rádios comunitárias, onde 400 brasileiras expressam suas idéias. Thais foi uma das interlocutoras das necessidades femininas no Fórum Econômico Mundial, que incluiu, pela primeira vez, a participação feminina como um tema de debate, mas revelou estatísticas desanimadoras: só 13 das 180 nações são chefiadas por mulheres, que ocupam, em média, 14% das cadeiras nos Parlamentos. Thais foi uma das vozes que reverberaram no encontro
da elite econômica mundial, quando falou a ISTOÉ.

ISTOÉ – Qual o primeiro passo para reduzir a desigualdade social no Brasil?
Thais Corral

As mulheres são mais sensíveis para possibilitar esse resgate. O Banco Mundial e os governantes já entenderam que as políticas com ações que alavancam o protagonismo da mulher acabam dando certo. Não há como pensar em sair da crise sem desenvolvimento econômico e social. A liderança da mulher é importante, mas pensar nela como agente da mudança é um passo fundamental. As mulheres são vetores de desenvolvimento humano e não há como negar isso. Além de serem mães, elas são as que melhor conhecem as necessidades das famílias e das comunidades. Lidar com a pobreza é o seu cotidiano.

ISTOÉ – Quais os instrumentos que as mulheres podem usar para alavancar essa mudança?
Thais Corral

O mais importante é acesso ao crédito, ao dinheiro. Você pode dar educação, acesso à comunicação, mas ainda é preciso ter formas de gerar recursos para que os setores excluídos contribuam. A empresa capitalista é boa em criar empresas, mas não sabe como distribuir riqueza. Pensar em formas de mobilizar recursos que já existem é uma engenharia sofisticada. Mesmo nos lugares pobres existem recursos e existem empreendedores. Fazer a ponte entre essas pessoas é o grande desafio. Sobretudo na área social, as pessoas que fazem políticas públicas não estão preparadas para esse desafio, nem sabem por onde começar. Não basta distribuir coisas. Isso não funciona. Você tem que pensar de forma específica para resolver a falta de equidade social.

ISTOÉ – Por que quando se fala em inclusão social feminina se fala também em acesso ao mundo digital? Qual o ponto em comum entre esses temas?
Thais Corral

Eles têm a ver com a superação de barreiras. O acesso e o uso da tecnologia são fundamentais para o desenvolvimento. A questão da inclusão digital é chave. No Brasil, o desafio será superar dois grandes obstáculos. É preciso alfabetizar as pessoas digitalmente junto com a superação do analfabetismo básico, porque não dá tempo de fazer uma coisa antes da outra. Não dá para falar em desenvolvimento sem pensar no papel da tecnologia. Temos que vencer etapas, e o acesso à tecnologia é crítico para que se feche essa lacuna social.

ISTOÉ – Um relatório mundial revelou que o Brasil é o país mais competitivo da América Latina. Estamos preparados para competir no mundo globalizado?
Thais Corral

Um país que tem um terço da sua população abaixo da linha de pobreza não está preparado para competir globalmente. Poucos são os que fazem universidade e só 8% da população tem acesso à internet. É muito pouco. Temos carência de recursos humanos e não é fácil educar as pessoas para os desafios da modernidade. Temos que olhar para isso com realismo, criando programas que levem em conta a situação em  que vive a maior parte da população excluída, mas também os semi-excluídos, que representam uma faixa enorme no Brasil. Tão importante quanto pensar nas coisas sofisticadas da tecnologia é pensar
em tecnologias sociais para enfrentar nossos problemas.

ISTOÉ – – De que forma a agenda social pode trazer benefícios às empresas?
Thais Corral

A área social será cada vez mais importante, como se pode ver em quase todos os painéis do Fórum Econômico Mundial, que é um termômetro do que acontece nas esferas de poder. Sem equidade não existe crescimento econômico. Não tem mercado, nem capital humano, nem geração de riqueza para distribuir. A única alternativa é investir no avanço social. Foi isso o que Felipe Gonzalez (ex-primeiro-ministro espanhol) deu como conselho ao Lula, e também o que disse o presidente do Banco Mundial (James Wolfensohn). A agenda social é a praia das mulheres. Até porque são elas que têm filhos, cuidam da família e sabem alocar recursos escassos na economia doméstica para fazer render as coisas, embora isso não seja uma exclusividade delas. Em histórias de grandes homens que tiveram uma trajetória de mobilidade social, sempre há uma mãe que fez esforços enormes para que ele estudasse, virando noites para ser costureira, doceira ou o que fosse preciso. Um exemplo é a mãe do Lula e a do Jack Welch, o diretor da General Electric, que é considerado um ícone do mundo empresarial. Claro que é importante aumentar o número de mulheres nos postos de decisão, mas as executivas são muito poucas. Em compensação, são muitas as mulheres que podem contribuir para o desenvolvimento social do País.

ISTOÉ – E, no entanto, o ditado popular diz que atrás de um grande homem sempre existe uma grande mulher…
Thais Corral

Essa frase é ultrapassada e obsoleta. Não existem mais esses grandes homens, que eram os provedores, enquanto as mulheres
ficavam escondidas. Talvez isso não seja verdade para a classe alta,
mas para os setores médios e de baixa renda, as mulheres contribuem igualmente ou mais que os homens para a renda doméstica. Às vezes, elas ganham mais porque têm maior flexibilidade para fazer trabalhos domésticos e serviços de baixa qualificação no setor informal. Não é
que se deva fortalecer o papel das mulheres como mães, o que se
deve fazer é fortalecer o papel das mulheres como agentes do desenvolvimento humano. O papel da família é só um deles.

ISTOÉ – Por que as mulheres ocupam tão poucos cargos políticos?
Thais Corral

Para fazer política no Brasil, ou você é uma pessoa com retaguarda de visibilidade na mídia ou está dentro da casta política.
O que mais se vê são candidatas que pertencem a famílias de políticos, como Roseana Sarney, Vilma Maia, ou mulheres conhecidas na mídia, como Denise Frossard, que mesmo sem muito dinheiro se elegeu
em cima de um espaço que ela mesma criou. Poucos são os casos
de mulheres que emergem de uma plataforma social, como a
Benedita (da Silva, governadora do Rio), a Marina Silva (senadora
pelo Acre), que vêm do movimento social.

ISTOÉ – Foi ineficaz o sistema de cotas, que recomenda aos partidos que um terço das candidaturas seja de mulheres?
Thais Corral

Os mundos político e corporativo têm mecanismos que não incentivam nem motivam a que as mulheres façam parte deles. Na política existem vícios que limitam o acesso e os partidos não priorizam
as candidatas, a menos que elas sejam estrelas. As cotas ajudam
e no Brasil a participação das mulheres cresceu por causa disso,
mas elas, só, não resolvem. Esse sistema existe desde 1995 e menos
de 10% do Congresso é de mulheres. As pesquisas mostram que
o eleitor tende a confiar mais nas mulheres do que nos homens.
Acham que elas são menos corruptas e mais honestas, não estão contaminadas. Nossa realidade é um contingente de quase 50% de negros e pardos, que estão entre os setores mais pobres do País.
Se falamos em resgate da cidadania, temos que ter casos exemplares, como o da Benedita da Silva, que era triplamente discriminada por ser negra, favelada e mulher. Espero que possamos ter muitas beneditas.
O resgate da questão racial é central à agenda social.

ISTOÉ – Hoje existem várias mulheres em postos de comando. Isso não é um avanço?
Thais Corral

Por mais que a ascensão das mulheres nesses 30 anos tenha
sido notável, tanto na política quanto nas corporações, esse ainda é
um mundo masculino. O desafio é mudar a natureza do poder. O mundo está em crise não só de mecanismos. É uma crise de um paradigma,
de uma cultura masculina. Não digo que o mundo deva ser só das mulheres, excluindo os homens. O importante é criar uma cultura mais próxima da realidade e da felicidade humanas. O mundo da competitividade e do poder é pouco impregnado por algo crítico para superarmos as crises, que é a compaixão, o cuidado com o outro.
Até pela biologia, essas são coisas próximas do universo feminino. Precisamos ter mais mulheres não só em postos de poder, mas em todo
o processo. É assim que se muda uma cultura, com mais gente que
leve um outro jeito de ser ao que se faz nos dias atuais.

ISTOÉ – Ocupar postos de trabalho em vários setores da economia é mais urgente do que ocupar cargos de liderança política?
Thais Corral

É importante aumentar o número de mulheres na política, nas empresas e nos postos formais de poder. Mas pelo tipo de crise atual, a solução é desenvolver a liderança para ocupar todos os níveis. As mulheres que chegam ao cargo de principal executiva de uma empresa são poucas. Não daria para fazer uma revolução. Precisamos quebrar certas resistências. Se o século XXI e a globalização trouxeram algumas oportunidades, uma delas foi a de se fazer pontes. Não existe desenvolvimento econômico se não se faz esse resgate social. Só se estabelecem pontes de diálogo entre culturas diferentes a partir de visões de mundo distintas. É preciso ter coragem para adquirir as credenciais que são a linguagem que o mundo do poder entende.

ISTOÉ – A sra. sugere que as mulheres falem a mesma língua dos homens, mesmo que signifique usar gravata para ser ouvida?
Thais Corral

Se o problema é usar gravata, usa-se. O importante é o que se fala. Minha mentora, Bella Abzug, foi uma das primeiras mulheres no Congresso americano. Ela nasceu em 1920, quando as americanas conquistaram o direito de votar, e se formou advogada. Quando ia para a corte para defender um caso, os juízes achavam que ela era a secretária. Ela passou a usar chapéu porque os juízes usavam chapéu na década de 40, era um símbolo que os fazia prestar atenção nela. Se o problema é usar gravata, usemos gravata. Precisamos criar pontes de diálogo com esse mundo agressivo para convidar as pessoas para uma outra forma de viver. Ninguém deve agir como homem, mas temos que nos infiltrar no mundo deles. A Bella dizia que o século XXI seria o século das mulheres por essa garra, que foi produto do movimento feminista e da tecnologia, da superação e do acesso aos contraceptivos, que separaram a sexualidade da maternidade. Isso deu às mulheres um sentido de oportunidade. Este é o século dos serviços e das transformações. Quem está chegando tem um olhar diferente e se engaja de forma distinta. Bater na mesa sempre vai ser importante. Só que as mulheres batem com mais ambiguidade, abrindo caminho para outro tipo de diálogo. Há estudos acadêmicos que mostram que as mulheres são mais capazes de colaborar, de trabalhar em equipe. E cada vez mais os desafios na política e no mundo corporativo não dependem de um salvador da pátria. As mulheres estão mais prontas para isso, para facilitar consensos, encontrar pontos em comum no meio dos conflitos.

ISTOÉ – Mesmo nos EUA, onde a luta feminina é antiga, o salário das mulheres é 30% menor do que o dos homens. Por que essa diferença ainda perdura?
Thais Corral

Quando mais mulheres entram em determinadas profissões, o salário abaixa. É como se a profissão começasse a ser subconsiderada. Existe a desculpa de que as mulheres estão menos dispostas a
se engajar na carreira profissional. Nos países escandinavos, os
homens podem escolher tirar um ano fora do trabalho, recebendo
menos, para cuidar dos filhos. Chegou a hora de humanizar
mais essa interface entre o mundo do trabalho e a
competição em outras esferas da vida da pessoa.

ISTOÉ – Ao ter filhos, algumas profissionais perdem a disputa por altos cargos, o que explicaria tantas mulheres tendo filhos mais tarde. É possível ser mãe e almejar o mesmo posto de trabalho que um homem?
Thais Corral

Com exceção dos países escandinavos e da França, perde-se mesmo um pouco o bonde quando se tem filhos. Quem deixa o mercado
e vai se inserir depois dos 40 anos já fica no rabinho da história. As pessoas mais jovens, mais agressivas, com melhor memória e mais disponibilidade terão mais chances. Mais do que medidas fragmentadas, essa questão exige uma mudança de cultura. O trabalho deve ser uma coisa importante na vida, afinal ele é o principal instrumento de subsistência e de contribuição para a sociedade, mas não tem
que tomar toda a sua vida e todos os seus interesses.

ISTOÉ – Quais áreas oferecem melhor oportunidade às mulheres que queiram recomeçar depois de criar os filhos?
Thais Corral

Um setor onde elas têm muita chance é no empreendimento. No Brasil, 28% das microempresárias são mulheres. Elas podem fazer coisas dentro de casa, com flexibilidade de horário. O mundo caminha para lá porque o mercado formal tende a diminuir e o de serviços tende a aumentar. Esse é um mercado que vai se expandir para as mulheres. Para isso é muito importante o acesso ao crédito, à capacitação profissional e às formas de iniciar pequenas empresas. Apesar de todos os obstáculos, 40% das mulheres estão no mercado de trabalho no setor de serviços. São costureiras, doceiras, donas-de-casa e empregadas domésticas ou faxineiras. Os cursos profissionalizantes são fundamentais para a inclusão social, mas o sujeito oprimido precisa se expressar, se conectar. Na maioria das vezes, as mulheres estão isoladas nas suas desgraças.