Paul Breitner, lateral-esquerdo campeão do mundo pela Alemanha em 1974, era homem afeito a criar polêmica. Pouco antes da Copa, posou para uma fotografia com um pôster de Mao Tse-tung na parede e um jornal de esquerda no colo. Breitner dizia-se maoísta, embora apenas namorasse idéias que mal conhecia. Carlitos Tevez, o meia argentino, atual ídolo da torcida corintiana, não perdeu a chance de ganhar algum dinheiro numa campanha de publicidade do canal de desenhos Cartoon Network às vésperas do Mundial de 2006. Na imagem, ele aparece em companhia das Meninas Superpoderosas. De Mao ao trio Lindinha, Docinho e Florzinha há 32 anos de história e imensas transformações. O futebol ajuda a explicá-las. “Ele é a síntese de seu tempo”, resume o historiador José Sebastião Witter, professor aposentado da USP, um dos grandes especialistas da bola como cultura no Brasil. “Pode-se entender o mundo por meio das Copas.” Não há oportunidade mais adequada que comparar o torneio de 1974 e o de 2006, ambos na Alemanha. Cabe lembrar que naquele tempo havia o Muro de Berlim, cujos pedaços hoje aparecem em museus ou em cantos da cidade como pano de fundo para praias muito sem graça e sol tímido. Quem abrigou os jogos foi a Alemanha Ocidental (não houve partidas em Berlim). A república oriental, comunista, classificou-se e chegou até a vencer a equipe de Breitner por 1 a 0, mas acabou desclassificada da competição. Nas eliminatórias de 1974, a então União Soviética recusou-se a entrar em campo contra o Chile de Pinochet, que meses antes aplicara o sanguinário golpe de Estado contra Salvador Allende. Neste cenário radical, de prós e contras, de sim e não, brotavam personalidades como Breitner e Mao – assim como hoje, em um planeta ideologicamente muito igual, surgem personagens como Tevez e as Meninas Superpoderosas, sem que essa constatação represente qualquer juízo de valor.

Respirava-se política, e ela entrava em campo. Hoje, não. Há um mês, Sérvia e Montenegro separaram-se por decisão em referendo. No entanto, a seleção defenderá um país que já não existe. Com a avalanche do marketing, perdeu-se muito desta metáfora do esporte como retrato das sociedades. “O que vale, atualmente, são os dólares e os euros, embora eles não consigam apagar a força do futebol quando o jogo começa”, diz Witter. “As cifras é que importam.” Cabe, nesse caminho, estabelecer uma outra comparação para entender dois mundos, o de 1974 e o de 2006: acompanhar a trajetória dos dois jogadores que, às vésperas dos Mundiais, apareciam como estrelas: o holandês Johan Cruyff e Ronaldinho Gaúcho. Cruyff, também do Barcelona, mal chegara do Ajax de Amsterdã quando, em fevereiro de 1974, o ano da Copa, teve um filho. Deu a ele um típico nome catalão – Jordi – e não Jorge, em espanhol. Vivia-se o ocaso da ditadura de Francisco Franco, com quem a Catalunha digladiava-se em sua luta separatista. O gesto de Cruyff foi político. Um dos notários indicados para registrar o nome do menino se recusou a fazê-lo, a pedido dos acólitos do generalíssimo encastelados em Madri. O escândalo divulgado pela imprensa fez reverter o veto. Cruyff, elegante como dentro de campo, não arredou um milímetro de sua decisão e tornou-se ícone não apenas do clube como também de toda a região. Ronaldinho Gaúcho limita-se a jogar futebol e a brincar diante do videogame. Vive em Barcelona, onde é adorado, mas nunca tratou da questão política. É ídolo esportivo – talvez ainda maior que Cruyff –, mas jamais alcançará o patamar simbólico do camisa 14 da Laranja Mecânica.

Ronaldinho Gaúcho, o gênio da bola, é parte de uma geração que, movida a
vastos contratos de publicidade, trocou seu país pelo sucesso profissional na Europa. São jogadores que, diante da globalização, comportam-se de maneira curiosa: são cosmopolitas porque vivem em cidades como Barcelona e Milão, mas fazem questão de transferir a família, como se estivessem transportando junto o Brasil, no avesso da globalização. “Seguem, a rigor, atrás do dinheiro”, diz Witter.
É fenômeno mundial, e também nesse aspecto pôr lado a lado 1974 e 2006
embute conclusões interessantes. Em 1974, os 22 jogadores da Seleção de
Zagallo atuavam no Brasil – agora, apenas Rogério Ceni, Ricardinho e Mineiro, reservas, batem ponto em clubes nacionais. Em 1974, a única seleção africana daquele Mundial, o Zaire, era composta de atletas que nunca tinham deixado o continente. A Costa do Marfim de Didier Drogba, sensação em 2006, está toda na diáspora, na França e na Inglaterra. Não há, portanto, para usar um jargão querido aos cronistas esportivos, ingênuos no futebol.

A tal ingenuidade começou a morrer naquele 1974 em que o brasileiro
João Havelange foi eleito presidente
da Fifa com uma plataforma muito
clara: ampliar o número de países
filiados à entidade, para fazer do
futebol o que ele é hoje, uma
máquina global. Havelange
prometeu dinheiro, Havelange
tratou o futebol como um embate diplomático para eleger-se,
Havelange associou-se aos donos da Adidas. E Havelange venceu – a ponto de o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, ter escrito na semana passada um artigo em que se dizia “verde de inveja” pela capacidade do futebol comandado pela Fifa de unir os povos – a federação da bola tem 207 filiados diante de 191 da ONU. Ninguém questiona a força do futebol, embora, tanto há 30 anos como hoje, ele seja incapaz de estancar os paradoxos que a realização do torneio na Alemanha ampliará. As seleções africanas, de países mergulhados na miséria, levarão a campo atletas que são estrelas internacionais, como o marfinense Drogba (Chelsea) e Michael Essien (também do Chelsea), craque de Gana. Em contrapartida, uma seleção rica como a da Alemanha terá atletas praticamente desconhecidos, com raras exceções como Michael Ballack, do Bayern de Munique. A explicação, segundo um raciocínio de Daniel Cohn-Bendit, franco-alemão, o líder das manifestações de maio de 1968, em Paris: como na Alemanha o código de nacionalidade foi sempre ligado ao direito de sangue e não de território, os jovens sempre se identificaram mais com o país de origem de seus pais do que com aquele em que vivem. “A seleção de Jurgen Klinsmann pagará caro por esse erro político, diferentemente do que ocorre com a França miscigenada, liderada por um filho de argelino: Zinedine Zidane”, diz Cohn-Bendit. Assim o futebol explica o mundo.