09/08/2002 - 10:00
Nem todo mundo quis ser entrevistado, como o francês Michel Camdessus,
ex-diretor administrativo do FMI. Nina e Nathan, filhos do autor, provocaram o pai por estar escrevendo um livro sobre um tema por eles considerado obscuro e remoto: o comportamento do FMI durante os turbulentos anos 90. Mas o jornalista Paul Blustein, correspondente do Washington Post na Ásia de 1990 a 1995, foi em frente e fez de Vexame – Os bastidores do FMI na crise que abalou o sistema financeiro mundial um livro sobre o Fundo Monetário Internacional que seduz até quem nunca leu uma página do Financial Times ou da Gazeta Mercantil. Blustein recebeu elogios de toda a imprensa americana no ano passado, quando o livro foi lançado nos Estados Unidos. O elogio comum, do Financial Times a Business Week, passando pela The Economist e New York Times Book Review, é de que conseguiu o que a maioria dos jornalistas especializados em economia não tenta: escrever em uma linguagem acessível a todos um thriller investigativo sobre um assunto espinhoso, uma fascinante crônica, como descreveu a agência de notícias UPI. Blustein mostra como a instituição realmente funciona – e como, na maioria das vezes, não funciona. O FMI e seus emissários, Blustein diz, cultivam a mística de donos da verdade e das perfeitas medidas econômicas emergenciais. Quando um país beneficiário de um programa não consegue reconquistar a estabilidade, as autoridades do Fundo atribuem habitualmente a culpa ao governo do país em questão por não ter cumprido as metas designadas ou não ter se esforçado suficientemente. Quando a estabilidade é reconquistada, o mérito é do Fundo. Funcionários da instituição que se manifestaram sob anonimato confessaram ao jornalista que foram muitas vezes jogados em meio a crises de origem duvidosa e com incertas perspectivas. “Todo mundo operava na base de que a única coisa necessária era adotar um programa do FMI, mas essa pressuposição revelou-se repetidamente sem fundamento”, lamentou um desses funcionários, um economista. E acrescentou: “Chegávamos a um acordo com um país e acabávamos vendo sua moeda despencar.”
O livro mostra que, enquanto o mercado afundava e se debatia tentando sair da crise, os pretensos guardiões da estabilidade financeira global estavam improvisando sem a menor idéia de como as ações iriam repercutir no mercado das economias em desenvolvimento. É essa imagem de arrogância e desprezo que a instituição tem da porta para fora de sua sede, na rua 19, centro de Washington, a três quadras da Casa Branca – um prédio de 13 andares de pedra calcária, cheio de limusines paradas na porta e uma babilônia de idiomas no átrio iluminado pelo sol com chão de mármore. “Durante todos esses anos em que faço jornalismo econômico nunca abordei assunto de maior impacto do que a crise mundial do final dos anos 90. E também nunca fiz a cobertura de uma instituição mais necessitada de rigorosa análise jornalística do que o FMI”, diz o jornalista.
A pesquisa consistiu em mais de 180 entrevistas, conversas com 50 integrantes ou ex-integrantes do FMI, além de altos funcionários do Tesouro americano, da diretoria do Federal Reserve (o Banco Central americano), de membros da assessoria econômica da Casa Branca, do Conselho de Segurança Nacional e do Departamento de Estado. Blustein escreveu o livro durante uma licença parcialmente remunerada do Washington Post, entre setembro de 1999 e janeiro de 2001, e contou com o apoio financeiro de quatro instituições de ensino. Do Instituto de Economia Internacional, ganhou uma sala e técnicos à disposição para o esclarecimento de dúvidas e seções de leitura prévia. O livro de 434 páginas será lançado no Brasil na próxima semana, pela Editora Record. Leia, a seguir, alguns trechos resumidos do capítulo “Tropeçando nas soluções”, com os bastidores da crise que culminou com a desvalorização do real em janeiro de 1999.
"Finalmente, em 13 de novembro, o FMI e os principais países industrializados do mundo divulgaram um pacote de US$ 45 bilhões de ajuda ao Brasil. Ao contrário das operações de emergência a Tailândia, Coréia do Sul, Indonésia e Rússia, esse programa foi preparado num momento de tranquilidade para o país-alvo e caracterizado como “profilático”.
No entanto, mesmo no FMI havia a impressão de que a tentativa de manter o regime de câmbio fixo parecia um ato de levitação. Em um encontro em Paris, no começo de dezembro, com autoridades européias que ainda se mostravam desconfiadas, Mussa, em conversa particular, avaliou as chances de sucesso do programa em 50%. Naquele mês, a saída de capital recomeçou, totalizando US$ 5,2 bilhões. Os funcionários do Fundo atribuíram a culpa aos cortes de juros determinados pelo Banco Central que tinham reduzido a taxa referencial overnight de 42% em 10 de novembro para 29% no final de dezembro.
Em telefonemas particulares, Fischer protestou junto às autoridades do Banco Central dizendo que as providências tomadas haviam solapado o programa e praticamente eliminado os incentivos para alguém manter seu dinheiro investido em reais. A resposta que recebeu foi que as taxas estavam muito altas, prejudicando a economia mais do que ele, Fischer, parecia peceber. Era quase certo que haveria uma recessão, tendo a maioria dos indicadores da produção caído desde o ínicio do ano, e o desemprego subido 2% para ficar em 8%.
Ter-Minassian percebeu que algo de ruim estava acontecendo em 12 de janeiro, dia tumultuado nos mercados brasileiros, porque ela não conseguiu contatar ao telefone nenhum dos encarregados da política econômica. Imaginando que Fischer teria mais facilidade, pediu-lhe que tentasse, mas antes que ele o fizesse chegou uma chamada de Pedro Malan, às seis da tarde. O presidente Cardoso havia nomeado um novo presidente do Banco Central, informou Malan. O novo presidente era Francisco Lopes, encarregado da política monetária do banco e filho de um ex-ministro das Finanças, conhecido pelo apelido de “Chico”. A primeira medida de Lopes como presidente foi mudar a política cambial, e, segundo Malan, ele telefonaria logo a Fischer para explicar a nova abordagem.
Num speakerphone em seu escritório, Fischer, em companhia de Ter-Minassian, ouviu com espanto o que Lopes lhe disse na manhã seguinte. O Brasil iria abandonar a férrea política de defesa do real, na esperança de que uma taxa menos supervalorizada possibilitaria ao Brasil caminhar no rumo da redução das taxas de juros. A medida não representaria, porém, uma ruptura clara com o Plano Real. A moeda seria desvalorizada em 8%, e novas e mais modestas faixas cambiais seriam fixadas. Especificamente, a faixa, que se situava entre 1,12 e 1,21 reais em 12 de janeiro, passaria para 1,20 a 1,32 o dólar. Fischer e seus colegas ficaram preocupados com aquela desvalorização, embora já fosse esperado algo parecido. Mas eles estavam igualmente preocupados com a maneira com a qual o novo arranjo iria funcionar. Tinham certeza de que os mercados iriam pulverizar o novo sistema cambial. A postura brasileira lembrava um garoto com o nariz sangrando, depois de uma briga, que recuava alguns passos e traçava uma linha no chão, desafiando seus antagonistas a cruzar a linha. O vice-diretor administrativo do FMI, que se lembraria daquele episódio como um dos mais inquietantes de toda a crise, não era capaz de imaginar o que viria depois. “Pensei comigo mesmo: bem, vamos perder a América Latina e a história vai recomeçar na Ásia.” A “última linha de defesa” tinha sido rompida. Tratava-se de um mortificante revés para o FMI, sobretudo depois de toda a fanfarra que cercara o anúncio do programa.
O que os senhores estão propondo não vai dar certo, disse Fischer a Lopes. Desvalorizações “controladas” foram tentadas em meio a crises em países tão diversos como México e Rússia, e os mercados concluíram – corretamente – que os governos não seriam capazes de efetuar apenas uma desvalorização. O real seria arremessado longe. Lopes retrucou que tinha ciência de que a nova política poderia se mostrar insustentável, mas as chances de sucesso dela seriam maiores se o FMI a endossasse. Se não desse certo, o Brasil poderia abandonar completamente a defesa do real e deixá-lo flutuar. Mas o FMI julgou que o enfoque de Lopes levaria o real a ficar completamente desacreditado nos mercados, arriscando despencar vertiginosamente.
As autoridades do FMI não entendiam bem o que estava acontecendo. Achavam inconcebível que Malan, o defensor-mor do Plano Real, tivesse concordado com aquelas medidas. Era notório que os rivais do ministro da Fazenda vinham tentando convencer o presidente Cardoso a tomar providências daquele tipo com o objetivo de dar uma sacudida na economia mediante a desvalorização da moeda e a rápida redução das taxas de juros. Fischer ligou a Malan e implorou que ele conseguisse que Cardoso mudasse de opinião. Malan, porém, desempenhava o papel do ministro leal e não apregoava suas restrições às mudanças.
Uma coisa o FMI sabia: Lopes não fazia muito caso do Fundo. Ele tinha feito declarações depreciativas sobre o FMI no outono de 1998, quando Malan estava em Washington negociando o programa para o Brasil. “Os burocratas em Washington estão excitados com a idéia de criar um novo pacote de resgate para o Brasil para atenuar os traços dos fracassos anteriores na Ásia e na Rússia”, declarou ele ao “O Estado de S.Paulo”.
Fischer passou parte da noite de 12 de janeiro ao telefone, falando tanto com Malan quanto com Lopes. Na manhã seguinte, às sete horas, o telefone tocou na residência de Ter-Minassian.
– Teresa, fracassei – disse Fischer – Não fui capaz de convencê-los.
– Que faremos agora? – perguntou ela.
– Bem, eles terão que aguentar as consequências.
Naquele dia, conforme Fischer e seus colegas haviam previsto, o novo regime monetário funcionou pessimamente, embora Lopes garantisse que se tratava, não de um desvio, mas de uma melhoria do passado. As ações da Bolsa no Brasil caíram mais de 10% nos primeiros minutos do pregão, embora se recuperassem um pouco para terminar o dia com baixa de 5%. O real despencou e o Banco Central teve de vender uma considerável quantidade de dólares para sustentar a moeda nacional. Mercados ficaram agitados no mundo inteiro. Os mercados estavam exaurindo as reservas do BC – com base na noção de que não poderia haver melhor chance para trocar reais pelo dólar. Em 13 e 14 de janeiro, as reservas caíram US$ 4,8 bilhões.
A enxurrada de telefonemas de Washington para Brasília transmitiu o recado: parem com essa política já, ou vão perder o apoio internacional. Fischer disse a Malan que a comunidade internacional jamais pensaria em conceder novos recursos ao Brasil se as reservas cambiais fossem ser trituradas por uma indefensável política cambial. Os brasileiros concordaram que a partir de sexta-feira, 13 de janeiro, parariam de usar as reservas para defender a nova faixa de câmbio – deixando o real flutuar, pelo menos naquele dia. Malan e Lopes viajaram para Washington com a intenção de anunciar um novo plano na segunda-feira. “Quando chegaram aqui”, recorda um economista do FMI, “eles não tinham a menor idéia do que iriam fazer. Nós também não tínhamos uma noção clara a respeito.”
As duas semanas seguintes foram um pesadelo. O curso do real lembrou o que tinha se passado com a rúpia indonésia um ano antes. Quando a nova política cambial foi anunciada na segunda-feira 19, o real caiu para R$ 1,59 por dólar, 31% abaixo do nível antes da desvalorização, e continuou a cair vertiginosamente, chegando a R$ 2 o dólar no final de janeiro. O mais perturbador era que as pessoas se descartavam dos reais a um ritmo rápido, mesmo quando o Congresso estava na iminência de aprovar as medidas de redução do déficit – controversas do ponto de vista político – e mesmo nos dias em que o Conselho do banco aumentou as taxas de juros, o que foi feito gradativamente até o nível overnight de 39% do início de fevereiro.
Logo após a chegada de Fischer a Brasília, começou a circular uma “bomba”: a notícia da saída de Lopes, depois de 19 dias à frente do BC. Cardoso escolhera Armínio Fraga, alto executivo do fundo hedge de Georges Soros, para seu substituto. A medida resultava de uma manobra de alto risco de Malan: escrevera uma carta a Cardoso sugerindo que ele próprio e Lopes deixassem os cargos. A iniciativa forçou o presidente a considerar sua disposição de alijar a política econômica ortodoxa. Em vez de demitir os dois, Cardoso demitiu Lopes e pediu a Malan que continuasse como ministro da Fazenda.
Com a palavra, o autor
O jornalista Paul Blustein concedeu a seguinte entrevista a ISTOÉ, via correio eletrônico, a partir da redação do jornal Washington Post. Foi na quarta-feira 7, horas antes da divulgação do acordo entre o governo brasileiro e o FMI. Blustein acertou em cheio os termos do programa de ajuda ao País.
ISTOÉ – A presença do FMI em um país é boa ou ruim?
Paul Blustein – Eu suponho que a presença do FMI seja ruim, levando-se em conta que ele apenas se dirige a um país quando ele já enfrenta dificuldades. A grande questão é: o FMI deixa a situação pior ou melhor do que encontrou? Apesar de muitos respeitados economistas argumentarem que o FMI piora as coisas, essa é uma posição obviamente muito difícil de se provar, já que não temos como medir o quão ruim ficaria a situação se o FMI não existisse ou não interviesse. Mas eu acho que, no caso do Brasil em 1999, a intervenção do FMI certamente ajudou e, como sugiro no livro, a crise brasileira daquele período terminou muito bem, muito melhor do que as pessoas esperavam. As intervenções não produzem milagres ou resultados maravilhosos. Ao contrário, o primeiro esforço de ajuda ao Brasil, em 1998, falhou miseravelmente. Não salvou o Plano Real, apesar do compromisso de US$ 41 bilhões do FMI e do G-7. O segundo funcionou, por duas razões: primeiro, o governo brasileiro implementou uma bem desenhada política de combate à inflação, apoiada pelo Fundo. E, segundo, o governo brasileiro, o FMI e outros governos do mundo usaram sua influência com os bancos internacionais para fazer com que eles parassem de cortar as linhas de crédito brasileiras.
ISTOÉ – Como o sr. analisa a atuação do FMI na Argentina?
Blustein – A minha análise é que a visão popular de crítica é bastante errada. Isto é, a visão de que o FMI usou sua influência para tentar forçar o país a abraçar o regime de paridade cambial e a adotar uma política fiscal muito austera. Mas, mesmo que essa visão seja errada, a política do FMI para a Argentina incluiu algumas ações que, vistas hoje, foram grandes erros. O maior deles talvez tenha sido deixar a Argentina criar grandes déficits no final dos anos 90, quando a economia do país estava crescendo, o que teria sido uma boa oportunidade para adotar uma política fiscal mais apertada.
ISTOÉ – Por que os países assinam os acordos, fazem
tudo o que o FMI manda e, meses depois, têm de voltar
para pedir mais dinheiro? Quem está fazendo as coisas
erradas: os países ou o FMI?
Blustein – A resposta depende do caso ao qual você se refere. Na Coréia, em 1997, há uma história fascinante, contada no livro, sobre como o primeiro programa do FMI falhou quando tudo o que o FMI e o G-7 fizeram foi despejar uma montanha de dinheiro no problema e exigir condições de atuação extremas ao governo. O que eles haviam deixado de fazer – e fizeram semanas depois, com grande sucesso – foi usar de influência para pedir aos bancos que parassem de cortar crédito, como ocorreu no Brasil entre 1998-99. Então, neste caso, a razão pela qual a Coréia teve de retornar para um segundo programa foi a falha da comunidade internacional no primeiro momento. Eu enfatizaria que havia pessoas ao lado do FMI e do G-7 que pediam por soluções que, vistas hoje, eram as corretas. É errado falar do FMI como se ali existisse uma instituição monolítica.
ISTOÉ – Qual sua expectativa em relação à negociação entre o FMI e o Brasil?
Blustein – Minha expectativa é de que o FMI vai fechar um acordo logo, com um pequeno montante adicional de dinheiro que será enviado antes das eleições e algum tipo de montante adicional para depois das eleições, em um acordo com o próximo governo para seguir as linhas-mestras da política do FMI. Isso será um desafio para Lula e Ciro Gomes, porque, se eles não prometerem endossar o acordo, poderão ter uma forte reação negativa do mercado, o que pode jogar o País no mesmo caos econômico em que vive a Argentina hoje.
João Paulo Nucci