O economista Guido Mantega, 53 anos, um dos assessores mais próximos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), não consegue atender à montanha de pedidos de reuniões com empresários, investidores, banqueiros nacionais e internacionais, ávidos por conhecer as propostas econômicas do candidato. Professor do departamento de Economia da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas, o economista conta que a possibilidade de vitória de um candidato de esquerda não causa mais arrepios. Mantega, nascido em Gênova, na Itália, mas que veio com três anos e meio para o Brasil (tem dupla cidadania), explica nas viagens que faz ao Exterior que o PT quer implantar no País um capitalismo humanizado, mais vigoroso, moderno e que faça justiça social.

ISTOÉ – O sr. é um dos interlocutores de Lula com empresários, investidores e banqueiros no Brasil e no mundo. Lula é visto com desconfiança por ser de um partido de esquerda?
Guido Mantega –
A questão ideológica está em segundo plano. A primeira coisa que eu falo no Exterior é que nós somos um partido de esquerda. Isso não assusta porque eles se acostumaram com a
esquerda européia, que humanizou e dinamizou o capitalismo. A esquerda tem uma estratégia mais eficiente para o fortalecimento do capitalismo
do que a direita.

ISTOÉ – O sr. voltou na sexta-feira 2 de mais uma viagem
ao Exterior para explicar o programa de governo do PT.
Como os investidores estrangeiros vêem a perspectiva de Lula ganhar a eleição?
Mantega –
Durante três dias, tive reuniões, na Inglaterra, com os maiores grupos de investimento de países emergentes e com a
diretoria do Deutsche Bank, que organizou a viagem. Eles querem saber se há coerência na nossa política macroeconômica, que propõe a
redução de juros e crescimento da economia. Também procuram sondar como ficará o relacionamento de um governo Lula com o capital estrangeiro e como abordaremos a rolagem da dívida pública. Lula é visto como um líder confiável. Isso não significa que ele seja o candidato do sonho dos banqueiros. É bom que não seja mesmo. Ninguém mais questiona se vamos cumprir a lei de responsabilidade fiscal ou duvida de que estamos preocupados com a inflação. Lá fora a imagem de Lula está cada vez melhor.

ISTOÉ – O fato de Lula não ter diploma universitário, por exemplo, é citado pelos investidores estrangeiros como um problema?
Mantega –
Nunca ninguém questionou a escolaridade de Lula. Mesmo porque vários presidentes americanos não tiveram estudo universitário. Essa não é uma preocupação do investidor estrangeiro. O presidente da Microsoft (Bill Gates), por exemplo, não tem curso universitário. Eles sabem que isso é uma bobagem. O sujeito pode ter 500 títulos e ser uma catástrofe, como pode não ter título nenhum mas ser um sujeito inteligente, capaz, que aprendeu na vida.

ISTOÉ – O que o sr. disse aos investidores estrangeiros sobre a situação econômica do Brasil hoje?
Mantega –
Mostrei as potencialidades do Brasil. Muitas vezes se confunde o Brasil com a Argentina. Mas eu expliquei que a Argentina tem indústria destroçada, a produtividade está caindo. No Brasil, a produção de soja, milho e celulose aumentou. Isso muda a percepção deles, que acabam vendo que o Brasil tem mais condições de superar o problema.

ISTOÉ – Para o atual governo, um economista do principal partido de oposição defender a imagem do Brasil no Exterior é bom, não?
Mantega –
É o interesse brasileiro que está em primeiro plano. O nosso principal problema não é atacar o governo, mas salvar o País. Tirá-lo do buraco. Temos que ser sobretudo brasileiros.

ISTOÉ – A crise de agora é pior do que a de 1998?
Mantega –
Hoje as condições externas são piores, mas as internas são melhores do que eram em 1998. Há quatro anos o que acirrava a crise era a nossa moeda, quase fixa, sobrevalorizada, os juros ainda mais altos, o baixo dinamismo do nosso setor externo. Nosso déficit de transações correntes hoje está em torno de US$ 20 bilhões para 2002, enquanto que naquela época era 33,4 bilhões de dólares. Ou seja, a quantidade de dinheiro que a gente precisava naquela época para fechar as contas era enorme. Agora, o câmbio é flutuante, o que permite o ajustamento mais fácil do fluxo de capitais, barateia as exportações e encarece as importações. Isso já causa efeito favorável na balança comercial. Tínhamos um déficit comercial na época de US$ 6,4 bilhões. Hoje, já temos US$ 4 bilhões de superávit comercial e devemos chegar a mais de US$ 6 bilhões. É claro que não é porque a economia está uma maravilha. Está encolhida, mas não deixa de ser um resultado nas contas externas. O problema maior hoje é que temos forte crise na economia mundial, principalmente nos Estados Unidos.

ISTOÉ – Lula foi bem recebido na sua primeira visita à Bovespa. A que se deve isso?
Mantega –
Em dezembro do ano passado a Bovespa me convidou para participar das discussões do plano diretor do mercado de capitais. Houve uma confluência de idéias. O atual governo não criou condições para que a idéia de popularizar o mercado de capitais se viabilizasse. O governo perdeu a oportunidade, principalmente durante o processo de privatização, cujo modelo foi o de vender o controle acionário para grandes grupos, que acabaram tirando suas ações da Bolsa. Temos
que fortalecer o mercado de capitais, como fizeram as principais economias capitalistas nos anos 80. Na Inglaterra, com as privatizações feitas por Margareth Thatcher, ampliou-se a participação do cidadão nas Bolsas. Ela deu condições para que eles comprassem ações, com desconto, com parcelamento.

ISTOÉ – Dois dos principais oponentes de Lula, Ciro Gomes (PPS) e José Serra (PSDB), são fortemente identificados com a economia. O fato de Lula não ter esse perfil não o fragiliza numa campanha eleitoral que acontece no meio de uma turbulência econômica?
Mantega –
Não, porque a saída para o País é política. O presidente pode ser um gênio da economia, mas se ele não for respaldado pela sociedade, nada funciona. O Brasil precisa de um líder político, um estadista, para fazer um pacto social em torno de um projeto.

ISTOÉ – Lula está preparado para fazer esse pacto?
Mantega –
O Lula está muito preparado. É um negociador nato, tem farta experiência política e comanda o partido mais estruturado do País. O Serra é um bom economista, não tenho dúvida. Mas será que ele tem condições de fazer essa mobilização nacional? Ciro fala muito de economia mas não sei se entende tanto. Ele tem alianças dúbias, com setores atrasados, e não possui estrutura partidária.

ISTOÉ – Numa crise como essa é factível propor crescimento de 5% como está previsto no programa de Lula?
Mantega –
Não vai ser imediato. Qualquer um sabe que não existe hoje condição de crescer 5%. A meta é criar condições para chegar a esse crescimento. De imediato, o novo governo terá que tirar os gargalos da economia. Haverá um período de transição.

ISTOÉ – A oposição pode ajudar o País a sair da crise?
Mantega –
O governo desde já deve tomar medidas e pode contar com o PT para isso. Defendemos uma minirreforma tributária, para desonerar as exportações, aumentar os recursos para financiar os exportadores, acelerar o processo de substituição de importações.

ISTOÉ – O FMI sempre foi considerado como bicho-papão pelo PT. O fato de o PT ter aceitado o acordo significa que não pensa mais assim?
Mantega –
Continuamos achando que os países devem evitar recorrer ao FMI. O Fundo já fez propostas que muitas vezes prejudicaram os países. Por isso, temos que ficar com um pé atrás. O dinheiro não sai de graça. O problema é que o governo não tomou as medidas necessárias para evitar essa ida ao Fundo e não restou outra alternativa senão pedir mais recursos emprestados para dar oxigênio ao País.

ISTOÉ – Ao estender a meta de superávit primário de 3,75% do PIB para os anos de 2004 e 2005, o FMI não está amarrando os braços do próximo presidente?
Mantega –
O superávit de 3,75% para 2004 e 2005 é inadequado, restringe a liberdade de política econômica. O novo governo deverá criar condições para superar essa restrição, estimulando o crescimento e reduzindo as taxas de juros. O acordo será revisto a cada três meses. Com o novo governo gerando superávit comercial maior, reduzindo o risco país e as taxas de juros, terá cacife para negociar lá adiante.

ISTOÉ – Outro ponto do acordo é a permissão para o
Brasil reduzir o nível de reservas líquidas em US$ 10 bilhões
(de um total de US$ 15 bilhões). Isso não poderá deixar o novo governo de joelhos?
Mantega –
O ideal é que o novo governo assumisse com um nível
de reservas mais elevado. O mínimo que se deve ter de reserva
líquida corresponde a três meses de importação. Como o País importa
US$ 4,5 bilhões por mês, deveríamos ter US$ 15 bilhões. Se a
redução das reservas acontecer, será uma restrição muito grave
para o próximo governo.

ISTOÉ – O porta-voz do FMI elogiou a Carta aos Brasileiros, documento lançado por Lula, no qual ele aceitava o cumprimento das metas de inflação e do superávit de 3,75%. Essa carta não foi uma espécie de aval para o acordo com o FMI?
Mantega –
Se o FMI elogiou a carta é porque evoluiu e reconhece que a oposição é responsável. O que Lula fez com aquela carta foi dirimir idéias falsas de que o PT era irresponsável, de que não teria preocupação com a estabilidade.

ISTOÉ – O candidato Ciro criticou o documento do PT, dizendo que era uma carta para os banqueiros…
Mantega –
As opiniões do Ciro são tão voláteis como o mercado.

Tudo igual

Redução da taxa de juros, reforma tributária, manutenção da estabilidade e respeito aos compromissos financeiros. Essas e outras medidas constam de todos os planos de governo dos principais candidatos ao Planalto, que têm poucas diferenças entre si. Os assessores econômicos de Lula, Ciro, Serra e Garotinho se reuniram na quarta-feira 7, em São Paulo, para debater na Câmara Americana de Comércio. Justamente no dia em que o FMI liberou um empréstimo para salvar o País – acordo apoiado por todos os assessores –, era esperado que os economistas mostrassem propostas palatáveis ao mercado internacional. Guido Mantega (Lula), Mauro Benevides (Ciro), Gesner Oliveira (Serra), e Tito Ryff (Garotinho) estão alinhados ao centro. Nenhum deles pregou o calote na dívida ou negou a possibilidade de privatizar. A discussão esquentou quando o assunto foi a reunião já marcada para fevereiro de 2003 para discutir a Alca (Área de Livre Comércio das Américas). Mantega afirmou que é melhor adiar a data e, antes, é preciso fortalecer o Mercosul e criar condições de competitividade. “Perdemos o bonde no comércio internacional por causa de acordos como esse. Se os EUA não baixarem suas tarifas protecionistas, o Brasil só tem a perder”, avaliou. Tito Ryff rebateu: “Um país como o Brasil não pode se negar a negociar.” Um empresário aplaudiu. E Mantega recuou: “Adiar não é fechar as portas para a Alca.” Pelo visto, bordões como “Fora FMI” e “Não à Alca” só cabem hoje nos discursos dos candidatos Zé Maria (PSTU) e Rui Pimenta (PCO) que não perderam a esperança no socialismo, mas também não somam juntos mais de dois por cento das intenções de voto.

Juliana Vilas